O menino e eu
Carlos Barbosa
eu tenho dor, obrigações e conta bancária
ele tem fantasia e histórias pra contar
por isso me consumo em fortalecê-lo
quando eu partir, ele continuará
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Dez anos hoje
Carlos Barbosa
seus miúdos olhos ainda buscam os meus
que se desesperam
por entender aquele pouco brilho
quanta dor se pode suportar em silêncio?
garanti a meu pai minha companhia
até o último momento
meu pai apreciava o cumprimento de compromisso
hoje penso que se divertia
ao me ouvir murmurar:
— não tenha medo, estou aqui
pois era aquela frase que seus olhos me diziam
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Estação morte
Carlos Barbosa
Como não crer em Destino, se nos destinamos à morte?
Sabemos disso e agimos costumeiramente como se imortais fôssemos.
Empinamos o nariz, e outras partes, e arrostamos o tempo, heróis de porra nenhuma.
Alimentamos rancores e ódios, cultivamos inimizades, ampliamos distâncias.
Fabricamos couraças de arrogância e medo, crentes numa força que não possuímos.
Fazemos de conta que não há esquinas no mundo.
Então as esquinas se dobram implacáveis sobre nós, ilusionistas de merda.
Construímos casas, compramos carros, vestimos o que de mais caro houver.
Cobrimos nosso “cadáver adiado” num esforço inútil de embelezamento.
E não ouvimos a gargalhada estridente anunciando a estação final.
Jamais ouvimos, não queremos ouvir, crianças imbecis que somos.
Fingimos não saber que a estação final pode ser a próxima.
Nem mesmo aspiramos a condição de Davi perante Golias, somos derrotados de princípio.
Então criamos ficções próprias de imortalidade, alimentando a cegueira dos tontos.
E de repente, não há mais tempo.
Tempo para nada.
Para nenhuma de nossas inutilidades.
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Eles atiram em você
Carlos Barbosa
eles atiram em você
quando matam franceses
espanhóis russos ingleses
norte-americanos
muçulmanos libaneses
eles atiram em você
brotam de antigas eras
hoje como ontem e amanhã
para matar em nome de deus
sua infidelidade cristã
seus valores ateus
em você eles atiram
quando matam judeus
em você atiram
a barbárie de séculos findos
eles matam você
naquele que cai degolado
queimado afogado esfaqueado
é em você que atiram
e cada corpo tombado
seu nome ostenta
homem mulher criança
que a eles não se junta
eles atiram em você exatamente agora
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Verão
Carlos Barbosa
Vivo na Bahia, mas não vivo a Bahia.
Sou o derrotado.
Ninguém se importa mais com meus despojos.
Poucos sabem, mas sou da Resistência.
Nem mesmo a Resistência sabe que é.
Perder a memória dos cacos, ter o objeto quebrado em mente.
Provar diariamente a dor periférica, a que não mata mas aleija.
O que decidem por aí não me afeta, eu fui.
O verão não me representa, embora prefira o calor.
Podem me recadastrar à vontade, não largo o livro.
Vivo na Bahia, mas a Bahia não vivo.
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Poema do nome
Carlos Barbosa
quando eu nasci,
lá foi meu pai montado a cavalo
com um nome no bolso guardado
me incluir na saga dos desvalidos
como feito a mais de 150 mil outros meninos naquela década
em 1930 somamos uns 10 mil aos raros Carlos da terrinha
em 1940 acrescentou-se uma fornada de mais 50 mil
eu mal aprendera a caminhar em 1960
e aquela jovem guarda despejava 270 mil Carlos no Brasil
nos anos 1970 a turma de Carlos se fez um pouco menor:
260 mil, por aí
nos 80 voltou-se ao arrebanhado nos 60
para despencar nossa produção a uns
200 mil na década seguinte
e adentrar o novo século, enfim,
numa reação espetacular,
juntando mais 260 mil Carlinhos
aos que aqui pelejavam
e dizem que agora somos quase um milhão e meio de Carlos
identificados pelo IBGE
a respirar brasilidades
gostam mais de Carlos em São Paulo: 327 mil
no Rio de Janeiro fazemos sucesso: 190 mil
em Minas Gerais, terra do mais famoso Carlos, muito nos apreciam: 153 mil
para em seguida, vejam vocês, vir a Bahia: 98 mil
mas onde em proporção há mais Carlos, pasmem,
é entre os cariocas, sergipanos, maranhenses e capixabas,
o que significa absolutamente nada
e eu, que venho de longe sendo Carlos, a tudo isso desconhecia
na minha vã trapalhada em superar minha agonia
mas sei que não importa o cantar da gia
nem ser o quinto em popularidade
nem quantos Carlos há nesta cidade
sigo a sina que me deram um dia;
jamais largar a oportunidade
de em tudo na vida fracassar
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Poema para Andréia
Carlos Barbosa
fechou o abraço o silêncio
pródigo em paz e denso
como um verso seu,
um traço seu,
(seus passos ao nosso lado)
e a cobriu de si mesmo solene
poema mudo fixado
no mais profundo poço dos desejos
no inalcançável topo onde repousam
os seres alados
Em memória de Andréia Café Gallo
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Heroica
Carlos Barbosa
o herói que habitava meu pai
possuía o silêncio da faca
a fatiar por precisão o tempo
o herói que em meu pai silenciava
sofria duras necessidades
no esforço para oferecer doçuras
o herói que em meu pai sofria
calava sempre os reclamos
para calar em nós a fome
o herói que corroía meu pai
em seu sábio silêncio
trabalhava simplesmente
trabalhava
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Poema nublado
Carlos Barbosa
as varandas foram feitas
para antenas parabólicas
as leis de trânsito,
para guardas municipais
todas as sobras,
ao preparo de delícias
e o passado, incrível,
está sempre em construção
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Borboletas baianas
Carlos Barbosa
Tomo conhecimento das borboletas baianas.
Não das que vejo nos jardins, mas daquelas que voejam em casamentos.
Nossas borboletas fazem sucesso em casórios Brasil afora.
Viajam de avião, em caixinhas com furos para ventilação.
As borboletas são exigência de noivas românticas.
Querem com elas embelezar suas histórias de amor.
Mas são caras nossas borboletas, muito caras.
Precisam ser contadas para o devido pagamento.
Para tanto, colocam as caixas por um tempinho em geladeiras.
É que assim as borboletas desmaiam.
E é possível fazer a contagem, business is business.
As caixas são levadas ao pé do altar, onde quer que esteja.
E lá aguardam pelo grande momento, as sobreviventes.
Na saída do novo casal, as borboletas são soltas.
Mas estão fragilizadas, tontas, quase mortas.
Então as cerimonialistas dão o último toque ao show.
Batem nas caixas para espantar as borboletas.
Que se projetam no ar em último arquejo de vida.
Para morrer em seguida em pleno voo.
Ou onde pousarem.
Depois de obterem o aplauso da plateia.
E ares de extremo contentamento dos nubentes.
Aquele batalhão de borboletas baianas.
Borboletas que viajaram de avião e desmaiaram no gelo.
Em suas curtas vidas de tortura e horror.
Para beleza e glória do amor.
Do amor?
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Esperança
Carlos Barbosa
O que dilata tempo e narinas.
Parecença de sonho.
Descola do chão duro corpos.
Instala o riso em penumbra.
Cega, desarrazoada, prenhe.
Acrescenta brasa e sopro.
Cessa aqui, nasce acolá.
Aura.
Amplia passos, ignora abismos.
Empurra, alevanta, avoa.
Ninguém constrói, brota.
Escorre, exala, ignora.
A esperança também se cansa.
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Queda
Carlos Barbosa
ainda caminho
de lado
com as mãos na parede
para não cair
como fazia
na minha primeira infância
tão corroída na memória
eu caminho
de lado
para não cair
definitivamente em mim
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O que inquieta
Carlos Barbosa
tudo que acontece
para lá do meu alcance
pode me contaminar
daquilo sei quase nada
disso desconheço a fonte,
o lance,
o que se quer plantar
ontem não soube de muito
hoje me engano em ver
a história merece não sei que releitura
nem para mim mesmo
minha história posso mais contar
tomar pé na maionese
do discurso dominante
dicotômico, excludente
antes bem antes do meu sangue jorrar
acordar sozinho
andar sozinho
decidir sozinho
o rumo fora de qualquer cerca
e principalmente
permanecer vadio
subversivo
a inquietar aquilo e quem me acossa
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No caminho dos sessenta
Carlos Barbosa
Fui o cara das respostas,
agora só pergunto.
Eu me perco no varejo
e me acabo no abstunto.
Manquitolo, manco e tolo,
em veredas comerciais.
Não me reconheço mais
no meu basto miolo.
O quê???, já não escuto
meus próprios uis e ais.
Encontra-se embaçado,
meu olhar fino e arguto
Tudo já me é passado,
antes mesmo de enxuto.
Me canso de ficar puto,
não sonho de estressado.
Refaço o que já fiz
mil vezes sem conta,
por não lembrar do caldo
que mastiguei na janta.
E assim se me apresenta
a estrada dos sessenta,
sem margens, reta, ampla.
O pouco que acrescenta,
assusta e me espanca:
sou eu quem por ela avança
ou em mim essa estrada,
devagar, desanda?
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O que sonha
Carlos Barbosa
o que sonha
no pesado sono noturno
escapa ao amanhecer
feito urina turva
tragada pelo vórtice da descarga
o que sonha
no agitado sono diurno
escorre no suor
que respinga no piso empoeirado
do lugar antigo que habita
o que sonha
acordado
ladeia seus atos
feito cão faminto
tratado a pontapés
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O que acontece na varanda
Carlos Barbosa
Algo me impede de olhar a varanda.
Lá, tudo acontece o tempo todo.
Movimentação contínua, barulho permanente.
Agora nenhum ruído chega de lá.
O sol se recusa, o vento varre.
A chuva se esbate na vidraçaria.
E uma penumbra teimosa reina na varanda.
Temo demais romper essa sombra.
É que tudo acontece com mais intensidade, sinto.
O silêncio instalado procria.
Procria.
O que não percebo, mas está.
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No caminho dos sessenta III
Carlos Barbosa
Sempre amei a noite
e detestei as manhãs.
A lua jamais agride
a alma que se irmana
à sua magia louçã.
Eu amo a penumbra
e rejeito a claridade.
A sombra acolhe a dor
feito um manto lanoso
no colo de uma madre.
Prefiro o mistério
ao veredito imposto.
O mundo veio comigo
e comigo se esvai
sem revelar seu rosto.
Quis tudo conhecer,
travei a luta inglória.
Tomado pela febre,
medi o pulso do cânone,
provei da fama ilusória.
Não faz tempo descobri:
perdi a validade.
Nem livro, nem saber,
tampouco a luz da arte
têm lugar na sociedade.
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Brasil, país sombrio
Carlos Barbosa
Deitado eternamente na sombra.
Evita câncer de pele e garante o afago da brisa.
E nenhuma fotografia sai boa o bastante.
A mão boba se move impunemente.
Não se sabe jamais se a direita ou a esquerda.
Nem se à direita ou à esquerda.
Intenções nascem, crescem e morrem sem dar frutos.
Prolifera apenas o sombreamento.
Tudo muito quieto, o barulho fica do lado de fora, ao sol.
Ninguém sabe bem quem faz o quê, onde e quando.
Sabe-se muito pouco sempre do passado.
Vê-se quase nada do presente.
E o futuro aparece em slogans e frases feitas.
Da sombra se vem, na sombra se vive e, vez em quando, se morre.
Quem algo faz pensa fazer outra coisa.
Quem nada faz desconhece o que na sombra se engendra.
Na sombra reside o melhor filtro solar.
Sair da sombra não se cogita.
Na penumbra, in dubio, safado.
Por conta alheia, res publica.
A verdade não passa de um lusco-fusco, de um fio.
Tudo o mais, sombrio.
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Cotidiano
Carlos Barbosa
todo dia
tomo uma dose de corticoide
um anti-hipertensivo
e dois comprimidos para o combate à gota
todo dia
despejo em meu olhos gotas
de dois colírios para prevenir glaucoma
de manhã e de noite
todo dia leio, durante horas, a melhor literatura
toda semana
mando pro bucho quinze miligramas de metotrexato
quimioterápico que se presta, em dose pequena assim,
a reduzir a inflamação das juntas
a cada quinze dias
aplico eu mesmo a injeção de adalimumabe
no modo subcutâneo
entre uma dose e outra
viajo ao amor incondicional de minha filha
me espalho no calor daquela que a mim o seu querer entrega
respiro minha família
persigo a frase que dirá belamente certa façanha do herói
depois outra que a iguale ou a supere
aprumado sempre na trilha dos meus amigos-mestres
e por assim palpitar
meu animado cotidiano
nada me diz que importe difamação ou desmerecimento
que em verdade difamam e desmerecem aqueles
tristes irmanados elementos
de qualquer que seja o poder babugentos
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No caminho dos sessenta II
Carlos Barbosa
Se feliz eu fui um dia
deve ter sido de tarde,
pois de manhã já sofria
a dor moída na carne
da noite mal dormida
em feroz intensidade
Se feliz eu fui um dia
devia de tá desmaiado
pois de resto lembraria
um dia assim gozado
por certo na companhia
de alguém muito amado
Se um dia eu fui feliz
não foi o dia inteiro:
pincelada de verniz
num retrato fuleiro,
um ou dois goles de anis
virados em copo alheio
Terá sido um bafejo
de brisa vinda do rio,
carícia breve, um beijo
roubado quase a frio,
quem sabe até sobejo
do tempo finório, vadio
Feliz um dia eu fui se
quiser assim redizer,
no lugar do não, sim
em vez de dor, prazer
pra cada erro, um “venci!”
em vez de mim, um outro ser
Carlos Barbosa - Foto: Mário Espinheira
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