Martha Galrão (foto: Haroldo Abrantes)
[sem título]
Martha Galrão
Chove
Não resiste acesa
nenhuma fogueira
Noite austera
escura, erma
nem uma fogueira
acesa
Cumpro a sina
de nomear tochas
para iluminar meu enigma
O silêncio torna a encobri-lo
Tudo é noite
não posso dizer
mais do que posso.
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[sem título]
Martha Galrão
Somos muitas mulheres
que sentiram as mãos do tio, pai, padrasto
entre as coxas
e o sussurro indecente no ouvido:
papai pode
vi o olho roxo da minha amiga
pintado por um murro de seu pai
as que apanharam dos irmãos,
namorados, maridos,
são muitas, são todas,
sou eu e é você
são putas
somos todas putas
e quem não é
está à beira de ser.
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[sem título]
Martha Galrão
Vento frio, mãos frias, coração apertado,
reverberação de palavras
se pudesse escreveria um poema, agora,
a poesia me olha de lado:
fique aí com sua agonia pois não estou aqui
pra isso.
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Urdidura
Martha Galrão
se vou cair no corpo
sem fundo
a palavra me ampara
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[sem título]
Martha Galrão
Fui pleno manguezal.
Como minha bisavó, minha avó,
minha mãe
eu pari uma menina
eu pari uma mulher.
Não há, meus orixás, nesse mundo,
felicidade maior que essa.
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“Não sei de onde vem
a velocidade do mal estar.
Errei o caminho.
A cigarra fere a acácia
e deixa que o secreto escorra
entre a raiz e os ramos.
Quero fazer do meu corpo
um arco nu e alongado
mas o veneno da Língua
me fere como um machado.”
“Ao ver dois homens juntos
esperar crueldade
novos decretos, novas palavras
para designar velharias.
Carregar o mistério do mundo
no âmago da alma
como o corpo carrega, sombrio,
sangue e tendões.”
“você me lambe com sua Língua
você me lambe com sua lábia
as suas lambidas me deixam molhada
em minha vulva sua voz encorpada”
Presentes no livro de poemas “Maturando pernas em rabo de peixe” (Organismo, 2021), de Martha Galrão, páginas 25, 38, 30, 11 e 56, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Desnorteamento” (p. 32), “O testamento de Maria” (p. 33) e “sem título” (p. 44), presentes na mesma obra.
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