Memória prévia
Carlos Drummond de Andrade
O menino pensativo
junto à água da Penha
mira o futuro
em que se refletirá na água da Penha
este instante imaturo.
Seu olhar parado é pleno
de coisas que passam
antes de passar
e ressuscitam
no tempo duplo
da exumação.
O que ele vê
vai existir na medida
em que nada existe de tocável
e por isso se chama
absoluto.
Viver é saudade
prévia.
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Mancha
Carlos Drummond de Andrade
Na escada a mancha vermelha
que gerações sequentes em vão
tentam tirar.
Mancha em casamento com a madeira,
subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.
E virou mancha de sangue
de escravo torturado — por que antigo
dono da terra? Como apurar?
Lava que lava, raspa que raspa e raspa,
nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau.
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Fuga
Carlos Drummond de Andrade
De repente você resolve: fugir.
Não sabe para onde nem como
nem por quê (no fundo você sabe
a razão de fugir; nasce com a gente).
É preciso FUGIR.
Sem dinheiro sem roupa sem destino.
Esta noite mesmo. Quando os outros
estiverem dormindo.
Ir a pé, de pés nus.
Calçar botina era acordar os gritos
que dormem na textura do soalho.
Levar pão e rosca para o dia.
Comida sobra em árvores
infinitas, do outro lado do projeto:
um verdor
eterno, frutescente (deve ser).
Tem à beira da estrada, numa venda.
O dono viu passar muitos meninos
que tinham necessidade de fugir
e compreende.
Toda estrada: uma venda
para a fuga.
Fugir rumo da fuga
que não se sabe onde acaba
mas começa em você, ponta dos dedos.
Cabe pouco em duas algibeiras
e você não tem mais do que duas.
Canivete, lenço, figurinhas
de que não vai se separar
(custou tanto a juntar).
As mãos devem ser livres
para pessoas, trabalhos, onças
que virão.
Fugir agora ou nunca. Vão chorar?
vão esquecer você? ou vão lembrar-se?
(Lembrar é que é preciso,
compensa toda fuga.)
Ou vão amaldiçoá-lo, pais da Bíblia?
Você não vai saber. Você não volta
nunca.
(Essa palavra nunca, deliciosa.)
Se irão sofrer, tanto melhor.
Você não volta nunca nunca nunca.
E será esta noite, meia-noite
em ponto.
Você dormindo à meia-noite.
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Matar
Carlos Drummond de Andrade
Aprendo muito cedo
a arte de matar.
A formiga se presta
a meu aprendizado.
Tão simples, triturá-la
no trêmulo caminho.
Agora duas. Três.
Milhares de formigas
morrendo, ressuscitam
para morrer de novo
no ofício a ser cumprido.
Intercepto o carreiro,
esmago o formigueiro,
instauro, deus, o pânico,
e sem fervor agrícola,
sem divertir-me, seco,
exercito o poder
de sumário extermínio,
até que a ferroada
na perna me revolta
contra o iníquo protesto
da que não quis morrer
ou cobra sua morte
ferindo a divindade.
A dor insuportável
faz-me esquecer o rito
da vingança devida
já nem me acode o invento
de supermortes para
imolar ao infinito
imoladas formigas.
Qual outra pena, máxima,
poderia infligir-lhes,
se eu mesmo peno e pulo
nesse queimar danado?
Um deus infante chora
sua impotência. Chora
a traição da formiga
à sorte das formigas
traçada pelos deuses.
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Portão
Carlos Drummond de Andrade
O portão fica bocejando, aberto
para os alunos retardatários.
Não há pressa em viver
nem nas ladeiras duras de subir,
quanto mais para estudar a insípida cartilha.
Mas, se o pai do menino é da oposição
à ilustríssima autoridade municipal,
prima da eminentíssima autoridade provincial,
prima por sua vez da sacratíssima
autoridade nacional,
ah isso não: o vagabundo
ficará mofando lá fora
e leva no boletim uma galáxia de zeros.
A gente aprende muito no portão
fechado.
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Os tios e os primos
Carlos Drummond de Andrade
Tios chegam de Joanésia,
trazem primos crescidos e de colo,
três cargueiros pesados de canastras
e alforjes.
Apeiam, tropel-raio, em nossa casa,
batalhão invasor.
Pisam duro, de botas,
batem portas-trovão a toda hora,
soltam gargalhadas colossais
e comem comem comem aquele peito
de galinha que é meu de antiga lei.
Uma prima bonita? Que me importa.
Se rouba minha cama, é inimiga,
e humilhado vou dormir no chão.
Arrebatado meu lugar na mesa,
profanadas gavetas-santuário
de figurinhas, selos e segredos,
escorraçado no meu reino,
odeio os monstros da família.
Uma semana inteira eles passeiam
os pés em minha paz. Serão eternos?
Contrai-se a casa enorme: vira ovo
de gema irada e clara de ciúme.
Eis que um dia
arreiam-se cavalos. As canastras
descem as escadas com ribombo.
Os tios volumosos,
os primos estrondeantes se despedem
num triturar de abraços, prometendo
voltar ano que vem. Ah, uma bomba
espanhola, que eu sei pelo jornal,
um breve terremoto
afunde cavaleiros e cavalos
na descida da serra...
Meu Deus, peço o absurdo?
Mas poupe aquela prima
bonita (eu sinto agora)
que deixou no lençol a dobra do seu corpo.
Regresso à minha cama, perturbado.
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Cometa
Carlos Drummond de Andrade
Olho o cometa
com deslumbrado horror de sua cauda
que vai bater na Terra e o mundo explode.
Não estou preparado! Quem está,
para morrer? O céu é dia, um dia
mais bonito do que o dia.
O sentimento crava unhas
em mim: não tive tempo
nem mesmo de pecar, ou pequei bem?
Como irei para Deus sem boas obras,
e que são boas obras? O cometa
chicoteia de luz a minha vida
e tudo que não fiz brilhar em diadema
e tudo é lindo.
Ninguém chora
nem grita.
A luz total
de nossas mortes faz um espetáculo.
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Crônica de gerações
Carlos Drummond de Andrade
Silêncio. Morreu o Comendador.
Merecia ser eterno
com seu poder, seu gado, suas minas,
seu dinheiro na burra.
Então morre — silêncio — o Comendador
e não desabam as montanhas
e o mundo, já vazio, não acaba?
Injusto ele morrer — o filho exclama.
Por que, em seu lugar,
o Senhor não chamou seu netinho enfezado,
esse menino aí, fracote, feio?
O menino ouve e come estas palavras,
assimila-as no sangue, e cresce e é forte
e poderoso mais que o Comendador.
Nasce-lhe por sua vez um filhinho enfezado
mas este
cresce sem maldição, fica por isso mesmo.
Nem sempre o Senhor chama. Ele às vezes esquece.
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Caçada
Carlos Drummond de Andrade
Nada acontece
na cidade. O último crime
foi cometido no tempo dos bisavós.
Ninguém foge de casa, ninguém trai.
Repetição de cores e casos, ó bolor
da vida longa, no chão pregada a oitenta pregos!
As pessoas se cumprimentam, se perguntam
sempre as mesmas coisas, esperando
lentas confirmações
milimetricamente conhecidas.
Ai, tão bem-educadas, as pessoas.
Que fazer para não morrer de paz?
Cada morador limpa sua carabina,
convoca o perdigueiro, saem todos
a matar veado, capivara e paca.
Três dias a morte campeia
no mato violento.
Voltam os caçadores triunfantes,
assunto novo para três meses
e se fotografam entre bichos mortos
com inocência de heróis
regressando de Troia.
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Doido
Carlos Drummond de Andrade
O doido passeia
pela cidade sua loucura mansa.
É reconhecido seu direito
à loucura. Sua profissão.
Entra e come onde quer. Há níqueis
reservados para ele em toda casa.
Torna-se o doido municipal,
respeitável como o juiz, o coletor,
os negociantes, o vigário.
O doido é sagrado. Mas se endoida
de jogar pedra, vai preso no cubículo
mais tétrico e lodoso da cadeia.
“Boitempo II (Menino antigo)” está incluído em “Nova reunião: 23 livros de poesia” (Companhia das Letras, 2015), de Carlos Drummond de Andrade, donde esses poemas foram peneirados, páginas 596-597, 564, 617-618, 597-598, 569, 589-590, 619, 556, 579, 580, respectivamente.
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