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Dez passagens de Jorge Amado no romance Gabriela, cravo e canela



          “(...) Seu Nacib era bom, pensava ela, tinha ciúmes. Riu, enfiando o dedo por entre as grades, o pássaro assustado a fugir. Tinha ciúmes, que engraçado... Ela não tinha, se ele sentisse vontade podia ir com outra. No princípio fora assim, ela sabia. Deitava com ela e com as demais. Não se importava. Podia ir com outra. Não pra ficar, só pra dormir. Seu Nacib tinha ciúmes, era engraçado. Que pedaço tirava se Josué lhe tocava na mão? Se seu Tonico, beleza de moço!, tão sério na vista de seu Nacib, nas suas costas tentava beijar-lhe o cangote? Se seu Epaminondas pedia um encontro, se seu Ari lhe dava bombons, pegava em seu queixo? Com todos eles dormia cada noite, com eles e com os de antes também, menos seu tio, nos braços de seu Nacib. Ora com um, ora com outro, o mais das vezes com o menino Bebinho e com seu Tonico. Era tão bom, bastava pensar.
          Tão bom ir ao bar, passar entre os homens. A vida era boa, bastava viver. Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar as goiabas, comer manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço dormir. Com outro moço sonhar.
          Não queria ofendê-lo, era homem tão bom! Tomaria cuidado, não queria magoá-lo. Só que não podia ficar sem sair de casa, sem ir à janela, sem andar na rua. De boca fechada, de riso apagado. Sem ouvir voz de homem, a respiração ofegante, o clarão dos seus olhos. ‘Peça não, seu Nacib, não posso fazer.’
          O pássaro se batia contra as grades, há quantos dias estaria preso? Muitos não eram com certeza, não dera tempo de acostumar-se. Quem se acostuma com viver preso? Gostava dos bichos, tomava-lhes amizade. Gatos, cachorros, mesmo galinhas. Tivera um papagaio na roça, sabia falar. Morrera de fome, antes do tio. Passarinho preso em gaiola não quisera jamais. Dava-lhe pena. Só não dissera pra não ofender seu Nacib. Pensara lhe dar um presente, companhia pra casa, sofrê cantador. Canto tão triste, seu Nacib tão triste! Não queria ofendê-lo, tomaria cuidado. Não queria magoá-lo, diria que o pássaro tinha fugido.”


          “(...) Coisa mais tola, sem explicação: por que os homens tanto sofriam quando uma mulher com quem deitavam, deitava com outro? Ela não compreendia. Se seu Nacib tivesse vontade, bem que podia ir com outra deitar, nos seus braços dormir. Ela sabia que Tonico dormia com outras, dona Arminda contava que ele tinha um horror de mulheres. Mas, se era bom deitar-se com ele, brincar com ele na cama, por que exigir que fosse só ela? Entendia não. Gostava de dormir nos braços de um homem. Não de qualquer. De moço bonito, como Clemente, como Tonico, como seu Nilo, como Bebinho, ah! como seu Nacib. Se o moço também queria, se a olhava pedindo, se sorria para ela, se a beliscava, por que recusar, por que dizer não? Se estavam querendo, tanto um como o outro? Não via por quê. Era bom dormir nos braços de um homem, sentir o estremecimento do corpo, a boca a morder, num suspiro morrer. Que seu Nacib se zangasse, ficasse com raiva, sendo casado, isso entendia. Havia uma lei, não era permitido. Só o homem tinha direito, a mulher não tinha. Ela sabia, mas como resistir? Tinha vontade, na hora fazia, nem se lembrava que não era permitido. Tomava cuidado para não ofendê-lo, para não magoá-lo. Mas nunca pensara que ia tanto ofender, que ia tanto magoar. Daí a uns dias, o casamento acabado, acabado pra frente, acabado pra trás, por que seu Nacib continuaria com raiva?
          (...)
          Só porque a encontrara na cama a sorrir pra Tonico. Que importância tão grande, por que tanto sofrer, se ela deitava com um moço? Não tirava pedaço não ficava diferente, gostava dele da mesma maneira, e não podia ser mais. Ah! não podia ser mais! Duvidava existisse no mundo mulher a gostar tanto de um homem, para com ele dormir ou para com ele viver, fosse irmã, fosse filha, fosse mãe, amigada ou casada, quanto ela gostava de seu Nacib. Tanta coisa, esse barulho todo, só por que a encontrara com outro? Nem por isso gostava menos, menos o queria, menos sofria porque ele não estava. Dona Arminda jurava que seu Nacib jamais voltaria, jamais a seus braços. Queria, pelo menos, cozinhar para ele. Onde ele iria comer? E o bar, quem prepararia salgados e doces? E o restaurante, que estava pra se abrir?”


          “— Como você explica, João Fulgêncio, o caráter de Gabriela? Pelo que você conta, ela gosta mesmo de Nacib. Gostava e continua a gostar. Você diz que a separação para ela e muito mais dura do que para ele. Que o fato de botar-lhe os chifres não significa nada. Como assim? Se gostava dele, por que o enganava? Que explicação você me dá?
          (...)
          — Para que explicar? Nada desejo explicar. Explicar é limitar. É impossível limitar Gabriela, dissecar sua alma.
          — Corpo formoso, alma de passarinho. Será que tem alma? — Josué pensava em Glória.
          — Alma de criança, talvez — o Capitão queria entender.
          — De criança? Pode ser. De passarinho? Besteira, Josué. Gabriela é boa, generosa, impulsiva, pura. Dela podem-se enumerar qualidades e defeitos, explicá-la jamais. Faz o que ama, recusa-se ao que não lhe agrada. Não quero explicá-la. Para mim basta vê-la, saber que existe.
          (...)
          — A fidelidade é a maior prova do amor — dizia Nhô-Galo.
          — É a única medida com que se pode calcular as dimensões de um amor — apoiava o Capitão.
          — O amor não se prova, nem se mede. É como Gabriela. Existe, isso basta — falou João Fulgêncio. — O fato de não se compreender ou explicar uma coisa não acaba com ela. Nada sei das estrelas, mas as vejo no céu, são a beleza da noite.”


          “(...) o juiz perguntou se ela não se importava de desfazer o casamento, como se nunca tivesse casado. Avisara-lhe que assim não, teria direito a nada do bar, do dinheiro no banco, da casa na ladeira. Dependia dela. Se não aceitasse, ia demorar na justiça, ninguém podia saber como o processo terminaria. Se ela concordava... Não queria outra coisa. O juiz lhe explicara: era como se nunca tivesse sido casada. Melhor não podia ser. Porque, sendo assim, não havia motivo pra seu Nacib tanto sofrer, pra seu Nacib se ofender. Com as pancadas, importava não... Mesmo se a matasse, não morria com raiva, ele tinha razão. Mas se importava de estar expulsa da casa, de não poder vê-lo, sorrir para ele, escutá-lo falar, sentir sua perna pesada em cima das ancas, os bigodes fazendo-lhe cócegas no pescoço, as mãos tocando-lhe o corpo, os seios, a bunda, as coxas, o ventre. O peito de seu Nacib como um travesseiro. Gostava de adormecer com o rosto enfiado nos cabelos do largo peito amigo. De cozinhar para ele de ouvi-lo elogiar a comida gostosa. De sapatos, gostava não. Nem de ir de visitas às famílias de Ilhéus. Nem das festas, dos caros vestidos, das joias verdadeiras, custando tanto dinheiro. Gostava não. Mas gostava de seu Nacib, da casa na ladeira, do quintal de goiabas, da cozinha e da sala, do leito do quarto.
          O juiz lhe dissera: mais uns dias e já não seria casada e nunca tinha sido. Que engraçado! Era o mesmo juiz que a casara, aquele que antes tanto quisera botar casa para ela. Ainda agora lhe falara nisso. Queria não, um velho sem graça. Mas boa pessoa. Se já não seria casada, e nunca tinha sido, por que não podia voltar para a casa de seu Nacib, pro quartinho dos fundos, cuidar da cozinha, da roupa lavada, da arrumação?”


          “(...) era preciso trazê-la de olho, dar-lhe mais atenção, comprar-lhe um presente melhor, fazer-lhe promessas de novo aumento. Boa cozinheira era coisa rara em Ilhéus, ninguém o sabia melhor do que ele. Muita família rica, donos de bares e de hotéis deviam estar cobiçando sua empregada, dispostos a fazer-lhe escandalosos ordenados. E como iria continuar o bar sem os doces e os salgados de Gabriela, sem o seu sorriso diário, sua momentânea presença ao meio-dia? E como iria ele viver sem o almoço e o jantar de Gabriela, os pratos perfumados, os molhos escuros de pimenta, o cuscuz pela manhã?
          E como viver sem ela, sem seu riso tímido e claro, sua cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz a dizer-lhe ‘moço bonito’, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor do seio, fogueira de pernas, como? E sentiu então a significação de Gabriela. Meu Deus!, que se passava, por que aquele súbito temor de perdê-la, por que a brisa do mar era vento gelado a estremecer-lhe as banhas? Não, nem pensar em perdê-la, como viver sem ela?
          Jamais poderia gostar de outra comida, feita por outras mãos, temperada por outros dedos. Jamais, ah!, jamais poderia querer assim, tanto desejar, tanto necessitar sem falta, urgente, permanentemente, uma outra mulher, por mais branca que fosse, mais bem-vestida e bem tratada, mais rica ou bem casada. Que significavam esse medo, esse terror de perdê-la, a raiva repentina contra os fregueses a fitá-la, a dizer-lhe coisas, a tocar-lhe a mão, contra o juiz ladrão de flores, sem respeito ao cargo? Nacib perguntava-se ansioso: afinal que sentia por Gabriela, não era uma simples cozinheira, mulata bonita, cor de canela, com quem deitava por desfastio? Ou não era tão simples assim?”


“De indignação estava cheio seu peito, contra os homens em geral. Eram covardes e hipócritas. Quando, nas horas de mormaço do meio da tarde, a praça vazia, as janelas das casas de família fechadas, ao passar sozinhos ante a janela aberta de Glória, sorriam para ela, suplicavam-lhe um olhar, desejavam-lhe boa tarde com visível emoção. Mas bastava que houvesse alguém na praça, uma única solteirona que fosse, ou que viessem acompanhados, para que lhe virassem a cara, olhassem para outro lado, acintosamente, como se lhes repugnasse vê-la na janela, os altos seios saltando da bordada blusa de cambraia. Vestiam o rosto de ofendida pudicícia mesmo os que antes lhe haviam dito galanteios ao passar sozinhos. Glória gostaria de dar-lhes com a janela na cara mas, ah!, não tinha forças para fazê-lo, aquela chispa de desejo entrevista nos olhos dos homens era tudo que possuía em sua solidão. Demasiado pouco para sua sede e sua fome. Mas, se lhes batesse com a janela, perderia até mesmo aqueles sorrisos, aqueles olhares cínicos, aquelas medrosas e fugidias palavras. Não havia mulher casada em Ilhéus, onde mulher casada vivia no interior de suas casas, cuidando do lar, tão bem guardada e inacessível como aquela rapariga. O coronel Coriolano não era homem para brincadeiras.”


          “— Glória, seu doutor, é uma necessidade social, devia ser considerada de utilidade pública pela intendência como o Grêmio Rui Barbosa, a Euterpe 13 de Maio, a Santa Casa de Misericórdia. Glória exerce importante função na sociedade. Com a simples ação de sua presença na janela, com o passar de quando em quando pela rua, ela eleva a um nível superior um dos aspectos mais sérios da vida da cidade: sua vida sexual. Educa os jovens no gosto à beleza e dá dignidade aos sonhos dos maridos de mulheres feias, infelizmente grande maioria em nossa cidade, às suas obrigações matrimoniais que, de outra maneira, seriam insuportável sacrifício.
          O juiz dignava-se em concordar:
          — Bela defesa, meu caro, digna de quem a faz e de quem é feita. Mas, aqui para nós, não é mesmo absurdo tanta carne de mulher para um homem só? E um homem pequeno, magrinho... Se pelo menos ela não estivesse o dia todo à vista, como está...
          — E o que é que o senhor pensa? Que ninguém dorme com ela? Engano, meu caro juiz, engano...
          — Não me diga, João! Quem se atreve?
          — A maioria dos homens, digníssimo. Quando dormem com as esposas estão pensando é em Glória. É com ela que dormem.”


          “De quem herdara Malvina esse amor à vida, essa ânsia de viver, esse horror à obediência, a curvar a cabeça, a falar baixo na presença de Melk? Dele mesmo talvez. Odiara desde cedo a casa, a cidade, as leis, os costumes. A vida humilhada da mãe a tremer ante Melk, a concordar, sem ser consultada para os negócios.
          (...)
          Ela nem perguntava escritura de quê, se comprava ou vendia, nem procurava saber. Sua festa era a igreja. Melk com todos os direitos, de tudo decidindo. A mãe cuidando da casa, era seu único direito. O pai nos cabarés, nas casas de mulheres, gastando com raparigas, jogando nos hotéis, nos bares, com os amigos bebendo. A mãe a fenecer em casa, a ouvir e a obedecer. Macilenta e humilhada, com tudo conforme, perdera a vontade, nem na filha mandava. Malvina jurara, apenas mocinha, que com ela não seria assim. Não se sujeitaria. Melk fazia-lhe vontades, por vezes ficava a estudá-la, cismando. Reconhecia-se nela, em certos detalhes, no desejo de ser. Mas a exigia obediente. Quando ela lhe dissera querer estudar ginásio e depois faculdade, ele decretara:
          — Não quero filha doutora. Vai pro colégio das freiras, aprender a costurar, contar e ler, gastar seu piano. Não precisa de mais. Mulher que se mete a doutora é mulher descarada, que quer se perder.
          Dera-se conta da vida das senhoras casadas, igual à da mãe. Sujeitas ao dono. Pior do que freira. Malvina jurava para si mesma que jamais, jamais, nunca jamais se deixaria prender.”


“(...) como a maioria da população, não media pelo nascimento o verdadeiro grapiúna, e, sim, pelo seu trabalho em benefício da terra, pela sua coragem de entrar na selva e afrontar a morte, pelos pés de cacau plantados ou pelo número de portas das lojas e armazéns, pela sua contribuição ao desenvolvimento da zona. Essa era a mentalidade de Ilhéus, era também a do velho Segismundo, homem de larga experiência da vida, de ampla compreensão humana e de poucos escrúpulos (...) não foi com eles que progrediram as cidades do sul da Bahia, que se rasgaram as estradas, plantaram-se as fazendas, criou-se o comércio, construiu-se o porto, elevaram-se edifícios, fundaram-se jornais, exportou-se cacau para o mundo inteiro. Foi com tiros e tocaias, com falsas escrituras e medições inventadas, com mortes e crimes, com jagunços e aventureiros, com prostitutas e jogadores, com sangue e coragem. Uma vez Segismundo lembrara-se de seus escrúpulos. Tratava-se da medição da mata de Sequeiro Grande e lhe ofereciam pouco para o vulto do caxixe: cresceram-lhe subitamente os escrúpulos. Em vista disso queimaram-lhe o cartório e meteram-lhe uma bala na perna. (...) Desde então ficou ele menos escrupuloso e mais barateiro, mais grapiúna ainda, graças a Deus. Por isso, quando morreu octogenário, seu enterro transformou-se em verdadeira manifestação de homenagem a quem fora, naquelas paragens, exemplo de civismo e devoção à justiça.”


“Clemente não tinha ofício. Labutara sempre no campo, plantar, roçar e colher era tudo o que sabia. Ademais viera com a intenção de se meter nas roças de cacau, tinha ouvido tanta história de gente chegando como ele, batida pela seca, fugindo do sertão, quase morta de fome, e enriquecendo naquelas terras em pouco tempo. Era o que diziam pelo sertão, a fama de Ilhéus corria mundo, os cegos cantavam suas grandezas nas violas, os caixeiros-viajantes falavam daquelas terras de fartura e valentia, ali um homem se arranjava num abrir e fechar de olhos, não havia lavoura mais próspera que a do cacau. Os bandos de imigrantes desciam do sertão, a seca nos seus calcanhares, abandonavam a terra árida onde o gado morria e as plantações não vingavam, tomavam as picadas em direção ao sul. Muitos ficavam pelo caminho, não suportavam a travessia de horrores, outros morriam ao entrar na região das chuvas onde o tifo, o impaludismo, a bexiga os esperavam. Chegavam dizimados, restos de famílias, quase mortos de cansaço, mas os corações pulsavam de esperança naquele dia derradeiro de marcha. Um pouco mais de esforço e teriam atingido a cidade rica e fácil. As terras do cacau onde dinheiro era lixo nas ruas.”


Presentes no romance “Gabriela, cravo e canela” (Companhia das Letras, 2008), de Jorge Amado, páginas 226-227, 351+352, 349+352, 350, 187, 103, 153, 242-243, 48 e 94, respectivamente.

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