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Dez passagens do livro Assassinos da Lua das Flores, de David Grann



“Houve uma pergunta, uma única, que o juiz, os promotores e a defesa nunca fizeram aos jurados, mas que era fundamental para o processo judicial. Um corpo de jurados formado por doze brancos seria capaz de punir outro branco por matar um índio? Um repórter cético comentou: ‘A atitude de um criador de gado do interior do país em relação ao índio puro [...] é bem conhecida’. Um membro importante da tribo osage pôs a questão em termos mais francos: ‘Fico debatendo na cabeça se esse júri está julgando um processo de homicídio ou não. Para eles a questão consiste em decidir se o fato de um branco matar um osage é assassinato... ou apenas crueldade com animais’.”


“(...) Para ela, como para todos os osages, o nascimento dos filhos tinha sido a maior bênção de Wah’Kon-Tah, a força vital misteriosa que perpassa o Sol, a Lua, a Terra e as estrelas; a força em torno da qual os osages tinham estruturado sua vida ao longo de séculos, esperando conferir alguma ordem ao caos e à confusão na Terra; a força que estava presente mas não se percebia — invisível, remota, generosa, assustadora, insondável. (...) Agora, alguém, alguma coisa, tinha levado antes do tempo sua filha mais velha e a preferida — talvez um sinal de que Wah’Kon-Tah suspendera suas bênçãos e o mundo deslizava para um caos ainda maior. A saúde de Lizzie piorou, como se a tristeza fosse sua verdadeira doença.”


“(...) Em 1804, uma delegação de chefes osages reuniu-se na Casa Branca com o presidente, que disse ao secretário da Marinha que aqueles índios, cujos guerreiros normalmente mediam mais de 1,80 metro de altura, eram ‘homens dos mais excelentes que já vi’. (...) Na reunião, Jefferson se dirigiu aos chefes como ‘meus filhos’ e disse: ‘Faz tanto tempo que nossos ancestrais vieram do outro lado das grandes águas que já perdemos a memória disso, e parece que surgimos nestas terras, como vocês [...] Agora somos todos uma só família’. E prosseguiu: ‘Quando voltarem, digam a seu povo que tomo todos pela mão; que de agora em diante serei o pai de vocês, que eles devem ver em nossa nação somente amigos e benfeitores’. Entretanto, quatro anos depois Jefferson obrigou os osages a abandonar o território entre os rios Arkansas e Missouri. O chefe osage declarou que seu povo ‘não teve escolha: deviam assinar o tratado ou ser declarados inimigos dos Estados Unidos’. Ao longo das duas décadas seguintes, os osages foram obrigados a ceder cerca de 40 milhões de hectares, encontrando refúgio finalmente numa área de oitenta por duzentos quilômetros no sudeste do Kansas.”


          “O governo dos Estados Unidos prometeu que o território do Kansas continuaria sendo o lar dos osages para sempre, mas em pouco tempo eles estavam cercados de colonos, entre os quais a família de Laura Ingalls Wilder, que mais tarde escreveria Little House on the Prairie [‘A casinha da planície’, mais conhecida no Brasil pelo nome Os pioneiros] com base em suas experiências. ‘Por que você não gosta dos índios, mãe?’, pergunta Laura numa das cenas. ‘Não gosto deles e ponto final. E pare de lamber os dedos, Laura.’ ‘Este é o país dos índios, não é?’, diz Laura. ‘Por que viemos para o país deles se você não gosta deles?’
          Certa noite, o pai de Laura lhe explica que em breve o governo faria com que os osages fossem embora. ‘É por isso que estamos aqui, Laura. Os brancos vão colonizar todo este país, e nós ficaremos com as melhores terras porque chegamos primeiro e pegamos o que será nosso’. (...) Em 1870, os osages — expulsos de suas cabanas, tendo suas sepulturas saqueadas — concordaram em vender suas terras no Kansas aos colonos por três dólares o hectare. No entanto, colonos impacientes massacraram muitos osages, mutilando e escapelando seus corpos. Um funcionário dos Assuntos Indígenas comentou: ‘A questão que se coloca é: quem é que é selvagem?’.”


“Em abril, milhões de flores minúsculas se espalham pelas colinas de carvalhos e as vastas pradarias no território dos índios osages, no estado americano de Oklahoma. Amores-perfeitos, magnólias, jasmins-mangas. O grande historiador e escritor John Joseph Mathews (1894-1979), de sangue osage, disse que a constelação de pétalas fazia parecer que ‘os deuses haviam jogado confete’. Em maio, quando os coiotes uivam sob uma lua enorme, plantas maiores, como o coração-roxo e a margarida-amarela, começam a despontar entre as menores, roubando-lhes luz e água. Os talos das flores se quebram, as pétalas saem flutuando pelos ares e em pouco tempo jazem sepultadas sob a terra. É por isso que os osages dizem que maio é o mês da lua que mata as flores.”


“(...) Certo dia, um comerciante passou a chamar Ne-kah-e-se-y de Jimmy. Em pouco tempo, outros o imitaram, e logo esse nome se impôs sobre o antigo nome osage. ‘Da mesma forma, suas filhas, que iam sempre à loja, receberam nomes assim’, escreveu o filho do comerciante. Foi assim que Wah-kon-tah-he-um-pah se tornou Mollie. (...) Como sua mãe, Mollie usava perneiras, mocassins, saia, blusa e manta, dormia no chão num canto da cabana da família e lhe cabiam muitas tarefas pesadas. Mas os tempos eram de relativa paz e tranquilidade: ela podia participar das danças cerimoniais e dos banquetes, brincar de pega-pega na água do riacho e assistir às corridas de pôneis conduzidos pelos homens na campina cor de esmeralda. Como escreveu o filho do comerciante, ‘lá se demoram lembranças, como um sonho meio esquecido, de uma encantadora aurora do mundo na consciência de uma criança, em sua maravilha e mistério’.”


“(...) No início da década de 1870, os osages tinham sido transferidos de suas terras no Kansas para uma reserva pedregosa, supostamente sem valor, no nordeste do estado de Oklahoma, onde décadas mais tarde foram descobertos alguns dos maiores depósitos de petróleo dos Estados Unidos. Para prospectarem o petróleo, os interessados em explorá-lo tinham de pagar royalties e arrendamento aos osages. No começo do século XX, cada pessoa inscrita na lista passou a receber um pagamento trimestral. De início, a quantia não ia além de uns poucos dólares, mas com o tempo, à medida que se extraía mais petróleo, esses dividendos chegaram a centenas e depois a milhares de dólares. Os pagamentos aumentavam a cada ano, como os riachos da pradaria que se encontravam para dar lugar ao largo e barrento rio Cimarron, até que os membros da tribo acabaram acumulando, em conjunto, milhões e milhões de dólares. (Só em 1923, a tribo recebeu mais de 30 milhões de dólares, o que equivale atualmente a 400 milhões de dólares.) Os osages eram considerados a população mais rica do mundo em fortunas particulares. ‘Acredite se quiser!’, comentou o semanário Outlook de Nova York. ‘O índio, em vez de morrer de fome [...] desfruta de rendimentos que fazem os banqueiros morrerem de inveja.’”


“(...) O governo americano, alegando que muitos osages eram incapazes de cuidar de seu dinheiro, incumbira o Escritório de Assuntos Indígenas de determinar quais membros da tribo sabiam administrar seu patrimônio. Com veementes objeções dos osages, muitos indígenas, entre eles Lizzie e Anna, foram considerados ‘incapazes’ e obrigados a ter um curador branco para supervisionar e autorizar todos os seus gastos, até o dentifrício que compravam na loja da esquina. Um osage que havia servido na Primeira Guerra Mundial lamentou: ‘Lutei na França por este país e mesmo assim não me autorizam a assinar meus próprios cheques’. Os curadores normalmente eram escolhidos entre os mais destacados cidadãos brancos do condado de Osage. (...) em 1921, da mesma forma como outrora adotara o sistema de rações para pagar aos osages pela terra a eles tomadas — assim como sempre transformava sua ladainha iluminista num martelo de coerção —, o Congresso aprovou uma lei ainda mais draconiana para controlar o modo como os osages podiam gastar seu dinheiro. Os curadores não só continuariam a fiscalizar as finanças de seus curatelados como, pela nova lei, os osages com curadores ficariam ‘restritos’, ou seja, cada um deles poderia retirar, de seu patrimônio, não mais que uns poucos milhares de dólares por ano. Pouco importava se precisassem do dinheiro para pagar a educação dos filhos ou as contas de hospital de uma criança doente. (...) Numa sessão do Congresso, Bacon Rind, outro chefe osage, declarou que os brancos ‘nos empurraram para um fim de mundo, a parte mais árida dos Estados Unidos, pensando: Vamos levar esses índios para aquele monte de pedras e deixá-los num canto’. Agora que o monte de pedras valia milhões de dólares, ele disse, ‘todo mundo quer ir para lá e pegar um pouco do dinheiro’.”


“Comecei a procurar outros curadores de osages daquela época. Um deles tinha onze curatelados, dos quais oito haviam morrido. Outro tinha treze curatelados, dos quais mais da metade era dada como morta. Um dos curadores tinha cinco curatelados, e todos morreram. E assim por diante. Os números eram estarrecedores e desafiavam claramente a taxa de mortes por causas naturais. Como a maior parte dos casos nunca fora investigada, seria impossível determinar precisamente quantas dessas mortes eram suspeitas, para não falar dos possíveis responsáveis pelo jogo sujo. (...) Embora o Bureau calculasse em 24 o número de osages assassinados, o número real é sem dúvida maior. A agência encerrou as investigações depois de pegar Hale e seus comparsas. Mas pelo menos alguns agentes sabiam de muitos outros homicídios que permaneceram sistematicamente em segredo, escapando a suas iniciativas de detecção. (...) Estudiosos e investigadores acreditam que o número total de mortes se conte às dezenas, se não às centenas. (...) Louis F. Burns, o eminente historiador dos osages, observou que ‘não conheço uma só família osage que não tenha perdido pelo menos um dos seus por causa das concessões’. E pelo menos um detetive da agência, que saiu do caso antes da chegada de White, tinha percebido a existência de uma cultura do assassinato. Segundo a transcrição de uma entrevista com um informante, o agente disse: ‘Há muitos desses casos de assassinato. São centenas e centenas’.”


“(...) Quando indagavam a um chefe osage por que não adotava os hábitos do homem branco, ele respondia: ‘Estou totalmente satisfeito com minha condição. As florestas e os rios suprem perfeitamente todas as necessidades da natureza’.”


Presentes no livro “Assassinos da Lua das Flores — Petróleo, morte e a criação do FBI” (Companhia das Letras, 2018), de David Grann, traduzido por Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra, páginas 247, 33, 51-52, 54, 15, 59-60, 16-17, 74-75+98-99, 321+323-324 e 53, respectivamente.

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