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Dez passagens do livro de ensaios Rastejando até Belém, de Joan Didion

Joan Didion (foto: John Bryson)


“Eu por acaso me sinto à vontade com (...) aqueles que vivem mais fora do que dentro, que são dotados de um sentimento de pavor tão agudo que se voltam para compromissos radicais e condenados. Eu mesma sei algo sobre o pavor, e aprecio os sistemas elaborados com que algumas pessoas conseguem preencher o vazio; aprecio todos os opiáceos que as pessoas usam, sejam eles de fácil acesso, como o álcool, a heroína e a promiscuidade, ou difíceis de encontrar, como a fé em Deus ou na História.”


“Tudo volta. Talvez seja difícil enxergar o valor de lembrar-se de si nesse estado de ânimo, mas eu enxergo. Acho que é aconselhável continuarmos aceitando as pessoas que um dia fomos, quer as consideremos companhias atraentes, quer não. Caso contrário, elas vão aparecer sem avisar e vão nos pegar de surpresa, batendo sem parar na porta da mente às quatro da manhã de uma noite maldormida, e exigindo saber quem as abandonou, quem as traiu, quem vai fazer as pazes. Nos esquecemos muito cedo das coisas que pensávamos que nunca esqueceríamos. Esquecemos os amores e as traições, esquecemos o que sussurramos e o que gritamos, esquecemos quem já fomos. Já perdi o contato com duas pessoas que um dia fui; uma delas, de dezessete anos, não representa grande ameaça, embora fosse de meu interesse saber novamente como é ficar sentada no dique de um rio, bebendo vodca com suco de laranja (...) A outra, de 23 anos, me incomoda mais. Sempre causou muitos problemas, e suspeito que ela vai reaparecer quando eu menos quiser vê-la, de saia longa demais, tão tímida que piorava as coisas, sempre se sentindo lesada, cheia de recriminações e pequenas mágoas e histórias que não quero ouvir de novo, ao mesmo tempo me entristecendo e me enfurecendo com sua vulnerabilidade e ignorância, uma aparição ainda mais insistente por ter sido banida há tanto tempo.”


“(...) vi John Wayne pela primeira vez. Vi o seu caminhar, ouvi a sua voz. Ouvi ele dizer a uma garota, num filme chamado Quando a mulher se atreve, que construiria uma casa para ela ‘na dobra do rio onde crescem os álamos’. Na verdade, eu não cresci para ser uma mulher do tipo heroína de filme de faroeste, e embora os homens que conheci fossem cheios de virtudes e tenham me levado para viver em lugares que amei, eles nunca foram John Wayne, nunca me levaram a essa dobra do rio onde crescem os álamos. Bem no fundo do pedaço do meu coração onde a chuva artificial cai para sempre, esta segue sendo a frase que espero ouvir. (...) quando John Wayne passou pela minha infância, e talvez pela sua, ele definiu para sempre a forma de alguns dos nossos sonhos. Não parecia possível que um homem como ele pudesse adoecer, pudesse carregar dentro de si a mais inexplicável e incontrolável das doenças. (...) Quando John Wayne falava, suas intenções eram inconfundíveis; ele tinha uma autoridade sexual tão forte que até uma criança era capaz de percebê-la. E em um mundo que logo entendemos que se caracteriza pela corrupção, pelas dúvidas e pelas ambiguidades paralisantes, ele sugeria um outro mundo, que talvez tenha existido, talvez não, mas que de qualquer maneira não existia mais: um lugar onde um homem podia se mover livremente, criar seus próprios códigos e viver de acordo com eles; um mundo em que, se um homem fizesse o que tinha que fazer, ele um dia poderia pegar a sua garota e cavalgar pelos vales escarpados em liberdade, e não ficar preso em um hospital com algo de errado dentro do corpo, não numa cama alta cercado por flores e medicamentos e sorrisos forçados, mas lá na dobra do rio cristalino, com os álamos reluzindo sob o sol do início da manhã.”


“Por que gostamos tanto dessas histórias? Por que as repetimos tantas vezes? Por que transformamos em herói popular um homem que é a antítese de todos os nossos heróis oficiais, um milionário do Oeste atormentado, resgatando os rastros do desespero, do poder e dos tênis brancos? Mas sempre fizemos isso. As pessoas e as histórias de que mais gostamos tornam-se nossas favoritas não por alguma virtude inerente a elas, mas porque ilustram, nos detalhes, algo profundo, algo que não admitimos. (...) O fato de termos tornado Howard Hughes um herói diz algo interessante sobre nós mesmos, algo pouco lembrado, diz que a finalidade secreta do dinheiro e do poder nos Estados Unidos não é o que o dinheiro pode comprar nem o poder pelo poder (...) mas a absoluta liberdade pessoal, a mobilidade e a privacidade. Esse é o instinto que levou a América ao Pacífico durante todo o século XIX: o desejo de encontrar um restaurante aberto caso você queira um sanduíche, de ser um indivíduo livre e viver de acordo com suas próprias regras. (...) É impossível pensar em Howard Hughes sem ver o abismo, aparentemente sem fundo, entre o que dizemos que queremos e o que de fato queremos, entre o que oficialmente admiramos e o que secretamente desejamos e, no sentido mais amplo, entre as pessoas com quem casamos e aquelas que amamos. Numa nação que parece valorizar cada vez mais as virtudes sociais, Howard Hughes continua sendo não apenas antissocial, mas brilhante e surpreendentemente associal. Ele é o último homem privado, o sonho que já não admitimos.”


“(...) Viver sem amor-próprio é passar uma noite acordada — em que o leite morno, o fenobarbital e a mão dormente sob a colcha estão fora do alcance —, somando os pecados por ação e omissão, as traições de confiança, as promessas sutilmente quebradas, os dons irrevogavelmente desperdiçados por preguiça, covardia ou descuido. Por mais que adiemos, no fim acabamos deitados sozinhos naquela cama notoriamente desconfortável, aquela que arrumamos para nós mesmos. Se dormimos nela ou não, depende, é claro, se nos respeitamos ou não.”


“(...) Cemitério Memorial Nacional do Pacífico. Todos lá parecem ter vinte anos, os meninos enterrados ali, na cratera de um vulcão extinto chamado Punchbowl, de vinte, dezenove, dezoito anos, às vezes até menos. (...) Alguns deles morreram em 7 de dezembro, outros morreram depois que o Enola Gay já havia bombardeado Hiroshima, e outros nas datas do desembarque em Okinawa, Iwo Jima e Guadalcanal; e uma longa fileira deles, segundo me disseram, morreu na praia de uma ilha de que não temos mais lembrança. Há 19 mil sepulturas na vasta cratera submersa no alto de Honolulu. (...) Fui várias vezes lá. Se eu andasse até a borda da cratera, podia ver a cidade, olhar do alto para Waikiki, o porto e suas vias arteriais apinhadas de gente, mas lá em cima era silencioso e na altura da floresta tropical, de modo que caía uma leve névoa quase o dia todo. Uma tarde, chegou um casal e deixou três colares de flores no túmulo de um garoto da Califórnia, que tinha morrido aos dezenove anos, em 1945. As flores já estavam murchando quando finalmente a mulher as deixou sobre o túmulo, pois por muito tempo ela ficara ali retorcendo-as nas mãos. De modo geral, sou capaz de imaginar os efeitos da morte no longo prazo, mas penso muito sobre o que há para lembrar, 21 anos depois, de um garoto que morreu aos dezenove anos. Não vi mais ninguém por lá, a não ser os homens que cortam a grama e os que cavam novas sepulturas, pois agora estão chegando corpos vindos do Vietnã. Os túmulos ocupados na semana passada, na semana anterior e até mesmo no mês passado ainda não têm lápides, apenas cartões de identificação de plástico, manchados pela névoa e com espirros de lama. A terra está crua e pisada naquela parte da cratera, mas a grama cresce rapidamente, perto das nuvens carregadas.”


“(...) Outubro é o pior mês de ventania, o mês em que é difícil respirar e as colinas ardem espontaneamente. Não chove desde abril. Toda voz parece um grito. É a estação do suicídio, do divórcio e do pavor arrepiante, onde quer que o vento sopre. (...) a terra dos penteados volumosos, das calças cápri e das meninas para quem a grande promessa de vida se resume a um vestido de noiva branco de cauda curta e dar à luz uma Kimberly ou uma Sherry ou uma Debbi e depois divorciar-se em Tijuana e retomar o curso de cabelereira. ‘Éramos jovens e inconsequentes’, dizem sem arrependimento, e olham para o futuro. O futuro sempre parece atraente na terra do ouro, porque ninguém se lembra do passado. Esse é o lugar onde o vento quente sopra e os velhos hábitos não parecem relevantes, onda a taxa de divórcio é o dobro da média nacional e onde uma a cada 38 pessoas mora num trailer. Aqui é a última parada para todos que vêm de algum outro lugar, todos aqueles que fugiram do frio, do passado e dos velhos hábitos. É aqui que essas pessoas buscam um novo estilo de vida, e fazem isso nos únicos lugares onde sabem procurar: nos filmes e nos jornais.”


“O que isso quer dizer? Não quer dizer nada razoável. Alguma histeria sinistra está no ar aqui hoje à noite, algum indício da perversão monstruosa a que qualquer ideia humana pode chegar. ‘Segui minha própria consciência.’ ‘Fiz o que achava que era certo.’ Quantos loucos disseram isso querendo de fato dizê-lo? Quantos assassinos? (...) E como querem lembrar aqueles que afirmam isso hoje de forma mecânica, ou melhor, presunçosa, Jesus também disse isso. Talvez todos tenhamos dito, e talvez estivéssemos errados. Exceto no nível mais primitivo — da nossa lealdade àqueles que amamos —, o que poderia ser mais arrogante do que reivindicar a primazia da própria consciência?”


“(...) Era um país feito de pedidos de falência e anúncios de hastas públicas e notícias corriqueiras de assassinatos fortuitos e crianças criadas em lugares impróprios e lares abandonados e vândalos que não sabiam escrever bem nem os palavrões que rabiscavam. Era um país onde famílias desapareciam com frequência, deixando para trás rastros de cheques sem fundo e documentos de reintegração de posse. Adolescentes vagavam sem rumo de uma cidade destroçada para outra, tentando se livrar tanto do passado quanto do futuro, como cobras que trocam de pele; garotos a quem ninguém havia ensinado, e agora já não iam mais aprender, os jogos que mantinham a sociedade coesa. Havia pessoas desaparecidas. Crianças desaparecidas. Pais desaparecidos. Os que ficavam para trás faziam registros confusos dos desaparecidos e depois também seguiam em frente. (...) Não era um país em plena revolução. Não era um país sob ataque inimigo. Eram os Estados Unidos da América no final da fria primavera de 1967, quando o mercado estava estável, o PIB alto e havia muita gente articulada que parecia comprometida com as questões sociais. Poderia ter sido uma primavera de grandes esperanças e promessas para o país, no entanto não foi, e cada vez mais gente tinha a preocupação inquietante de que não seria. Só o que parecia claro era que, em algum momento, tínhamos abortado a nós mesmos e arruinado o que estava em nossas mãos e, como nada mais se mostrava tão relevante, decidi ir para San Francisco (...) era o lugar onde as hemorragias sociais estavam dando as caras. Era o lugar onde os garotos desaparecidos se reuniam e se denominavam ‘hippies’.”


“Eu feria pessoas com quem me importava e insultava as que não me importavam. Me desliguei da pessoa que era mais próxima de mim do que qualquer outra. Chorava até não me dar conta de quando estava ou não estava chorando, chorava em elevadores, táxis e lavanderias chinesas, e quando fui ao médico ele disse apenas que eu parecia estar deprimida e deveria ir a um ‘especialista’. Anotou o nome e o endereço de um psiquiatra para mim, mas eu não fui. (...) Em vez disso me casei, o que se revelou uma decisão acertada, mas em má hora, pois eu ainda não conseguia andar na Madison Avenue de manhã, não conseguia falar com as pessoas e continuava chorando nas lavanderias chinesas. Nunca antes eu havia entendido o significado da palavra ‘desespero’, antes eu havia entendido o significado da palavra ‘desespero’, e não tenho certeza se entendo agora, mas naquele ano entendi.”


Presentes no livro de ensaios “Rastejando até Belém” (Todavia, 2021), de Joan Didion, traduzido por Maria Cecilia Brandi, páginas 69, 140-141, 40 a 42, 76 a 78, 144-145, 191-192, 17-18, 160-161, 89-90 e 233, respectivamente.


Aforismos de Joan Didion em “Rastejando até Belém”

“A inocência termina quando arrancam da pessoa a ilusão de que ela gosta de si mesma”

“O caráter — a disposição de aceitar a responsabilidade pela própria vida — é a fonte de onde brota o amor-próprio”

“Estava apaixonada pela cidade [Nova York], do jeito que você se apaixona pela primeira pessoa que toca seu corpo e nunca mais volta a se apaixonar da mesma maneira”

“O instinto é socialmente suicida e, como reconhecemos que isso é verdade, desenvolvemos formas viáveis de dizer uma coisa e acreditar em outra”

“Neste país tão sinistro e terrível que viver nele é viver na antimatéria, é difícil acreditar que ‘o bem’ seja uma variável conhecida”

“O denominador comum de tudo o que vemos é sempre, de forma transparente e desavergonhada, o implacável ‘eu’”

“Na Califórnia da minha infância, tudo o que há de constante é o ritmo do seu desaparecimento”

“Minha abordagem da vida cotidiana varia da negligência extrema à simples ausência”

“O fato triste é que o amor-próprio não tem nada a ver com a aprovação dos outros que, afinal das contas, são enganados com bastante facilidade”

“Não existe uma resposta possível ou adequada, então damos sempre respostas genéricas, como todos costumam fazer”

“O triunfo irrelevante, porém perigoso, de estar acima do nada”

“Naquele molde perfeito, era possível verter os anseios inarticulados de uma nação onde todos se perguntavam em que passo exatamente haviam perdido o caminho”

“Olhos brilhantes e levemente messiânicos, uma risada forte e a aparência geral de um homem que, a vida toda, tentou seguir um arco-íris imperceptível mas fatalmente desviante”

“A Califórnia (...) se parece com o Éden: presume-se que aqueles que se ausentaram de suas bênçãos tenham sido banidos ou exilados por alguma perversidade de coração”
 
Aforismos presentes no livro de ensaios “Rastejando até Belém” (Todavia, 2021), de Joan Didion, traduzido por Maria Cecilia Brandi, páginas 143, 146, 225, 77, 159, 138, 174, 135, 144, 234, 72, 42, 60 e 173-174, respectivamente.

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