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Dez passagens de Jorge Amado no romance Os velhos marinheiros ou O capitão-de-longo-curso



“Afinal, digam-me os senhores com suas luzes e sua experiência, onde está a verdade, a completa verdade? (...) Está a verdade naquilo que sucede todos os dias, nos cotidianos acontecimentos, na mesquinhez e chatice da vida da imensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que nos é dado sonhar para fugir de nossa triste condição? Como se elevou o homem em sua caminhada pelo mundo: através do dia-a-dia de misérias e futricas, ou pelo livre sonho, sem fronteiras nem limitações? (...) Quem dirige as mãos dos sábios a mover as alavancas na partida dos esputiniques, criando novas estrelas e uma lua nova no céu desse subúrbio do universo? Onde está a verdade, respondam-me por favor: na pequena realidade de cada um ou no imenso sonho humano? Quem a conduz pelo mundo afora, iluminando o caminho do homem?”


“Amanheceu um sol de Dois de Julho de tão brilhante e cálido, o céu despejado, o mar como um lençol de aço reluzente cortado pelo orgulhoso ita de altaneira proa. (...) Espalhava-se pelas salas, tombadilhos e corredores a característica população daqueles Itas que durante tantos e tantos anos subiram e desceram a costa brasileira, de Porto Alegre a Belém do Pará. Quando os aviões ainda não cruzavam os céus aproximando as distâncias, encurtando o tempo e retirando às viagens toda a sua poesia e o seu encanto. Quando o tempo era mais lento e menos desperdiçado, menos gasto na sofreguidão inútil de chegar quanto antes, numa avidez de viver tão depressa que transforma a vida numa pobre aventura sem cor e sem sabor, uma corrida, um atropelamento, um cansaço.”


“Exteriormente nada mudara, velório e enterro obedeceram ao mesmo cerimonial, apareceram vagos parentes da cidade, veio o padre Justo, de Plataforma, encomendar o corpo, as mulheres despovoaram de flores seus jardins, os velhos calçaram sapatos e puseram gravatas para o funeral. No entanto, houvera uma sutil e indefinível diferença, como se a presença da morte não se fizesse sentir tão brutalmente, como se ela houvesse demorado menos tempo entre eles. Porque quando a morte, de longe em longe, passava por Periperi, não ia logo embora, apenas concluía sua macabra tarefa. Ficava por ali, mesmo depois do enterro, sua sombra gélida estendida sobre os aposentados e retirados dos negócios, sobre suas curvadas esposas, e os corações se apertavam como se a garra da morte os comprimisse, a experimentá-los. Perdia a brisa sua leve carícia, eles sentiam nas costas dobradas pelo medo o hálito fúnebre espalhado pela morte; por quem viria ela em sua próxima visita? (...) Não, não era a mesma coisa a presença da morte lá na cidade da Bahia, rápida e banal nas rodas de um automóvel, nos leitos dos hospitais, nas páginas de desastres e crimes dos jornais. Era leviana e secundária, por vezes não merecia mais de duas linhas nas gazetas, desaparecendo em meio a tanta vida a cercá-la, a tanto ruído e luta, não havia lugar para ela nos corações apressados, dissolvia-se sua sombra nas luzes, e os risos não deixavam ouvir seu murmúrio. Seu podre bafo, como iriam senti-lo as mulheres envoltas em perfume, em cálidas vagas de desejo? Passava a morte despercebida, apenas executava sua tarefa e já desaparecia, não havia tempo a perder com ela em meio a tanta ânsia e pressa de viver.”


“(...) conseguiu finalmente o tenente-coronel burlar um dia a rigidez dos horários militares. Iria fazer uma surpresa a sua mulherzinha, eternamente a queixar-se de sua ausência. (...) Comprou um quilo de uvas, fruta da predileção de Ruth. Ela rompia com os dentes os bagos sumarentos. Comprou um queijo, uma lata de marmelada. E, para completar a festa, uma garrafa de vinho português. Tomou o trem das duas e meia da tarde, Ruth estaria solitária e triste, a pobre... Não estava solitária e triste. Apenas atravessou a soleira da porta, teve o tenente-coronel a primeira surpresa: ao vê-lo, Zefa, a empregada, cuja dedicação ao casal datava de muitos anos, disparou pela porta dos fundos, a pedir socorro. Do quarto de dormir vinham sons alegres, o riso de Ruth e mais outro riso, meu Deus! Com os pacotes dependurados dos dedos, a garrafa de vinho sob o sovaco, Ananias arrombou a porta da alcova com um pontapé. Homem pouco sensível às visões estéticas, não se empolgou com o espetáculo dos corpos jovens e nus nem com a poesia das ternuras trocadas entre o talentoso estudante e a formosa coronela. Não se encheu de admiração, encheu-se de raiva, atrapalhavam-no os embrulhos (...) tiravam-lhe parte da dignidade necessária naquele momento. Foi o que salvou o jovem Paiva. Sem se preocupar com as roupas, saltou do leito, abriu a janela, alcançou a rua. Nu como Deus o pôs ao mundo, atravessou a praça cheia de gente, numa velocidade de campeão de corrida. Livre finalmente dos embrulhos, o revólver na mão, o tenente-coronel da Polícia Militar apareceu logo depois a persegui-lo com palavrões e tiros. Pela janela aberta, os curiosos mais audazes ainda puderam ver a desnuda e consolada solidão de Ruth a gritar inocência.”


“(...) Que importavam as aventuras, enrabichamentos nos castelos, xodós nas pensões, que importavam as aventuras, as inesperadas paixões nas travessias, as noites de delírio nos portos de bruma e de mistério? Amor, constante amor a construir um lar e a vida, a desdobrar-se em crianças e a conservar-lhe o nome, afeição de esposa, voz de filho a chamar, pequena cabeça crespa, a acolher-se na fortaleza de seu peito, nunca tivera, faltara-lhe tempo, estava sempre a navegar, no leito dos Barris e dos castelos, a bordo de cargueiros e paquetes. Sempre sozinho, em seu navio, com suas viagens, naufrágios, tempestades, as correntes marítimas, os ventos e os ciclones.”


“(...) Não era assim tão simples e fácil, nem dão os homens tanto valor às provas materiais. O que os levava a sustentar o comandante, a enfrentar Chico Pacheco e sua língua temível, era a própria necessidade, sentida por todos eles, despretensiosos e tímidos aposentados e retirados dos negócios, de sua ração de aventura, de sua parcela de heroísmo. Por mais circunspecto que seja um homem, mais comedida sua vida, há dentro dele uma chama, por vezes apenas uma fagulha, capaz de transformar-se num incêndio se a ocasião se apresenta. É ela que exige fugir da mediocridade, mesmo que seja nas palavras de uma história ouvida ou nas páginas de um livro lido, da chatice dos dias iguais, pequenos e mornos. Nas aventuras do comandante, em sua vida arriscada e temerária, encontravam os perigos por que não haviam passado, as lutas e batalhas que não haviam travado, os alucinados e pecaminosos amores que, ah!, não haviam vivido.”


“Junho chegara com seu cortejo de chuvas a encharcar as ruas arenosas e com as espigas de milho amontoadas nas cozinhas para os manuês, as canjicas, as pamonhas. Mês da gula, quando os aposentados e retirados dos negócios abandonavam as dietas, emborcavam cálices de licor de jenipapo, enterravam-se nos pratos saborosos. Pagariam esses excessos, obrigados vários deles a cortar o sal ou o açúcar, com o agravamento das mazelas diversas, do diabete ao reumatismo. Em muitas casas rezavam-se as trezenas de Santo Antônio, primeiro as orações cantadas ante o altar improvisado do santo casamenteiro, depois as dancinhas ao som de harmônica. Na praça elevava-se o alto poste com a bandeira de São João, preparavam-se as fogueiras para a noite santa. No fim do mês, viúvas e viúvos festejariam São Pedro, seu padroeiro. Um mês inteiro de festas, as crianças a soltarem traques e busca-pés, namoros nas trezenas, moças curvadas sobre mágicas bacias de água para nelas enxergar o rosto do futuro noivo. E a escolha do padrinho da festa de São João, honra cobiçada por todos os habitantes masculinos. (...) Festa de São João, em verdade, havia em cada casa, pois mesmo nas mais pobres abria-se uma garrafa de licor de jenipapo e oferecia-se um pedaço de canjica, de bolinho de milho ou de puba, de cuscuz de tapioca, delicada pamonha envolta em palha. Mas tratava-se da festa na praça, com diversões para os meninos pobres, filhos de pescadores e operários da Leste, alunos do grupo escolar. (...) À noite acendiam-se as fogueiras, nelas assavam-se milho e batata-doce, as faíscas crepitavam no ar, balões subiam ao céu, crescia o número infinito das estrelas.”


“Quem pode, neste mundo, escapar aos invejosos? Quanto mais se destaca um homem no conceito de seus concidadãos, quanto mais alta e respeitável sua posição, mais fácil alvo para a peçonha da inveja, contra ele se levantam, em vagalhões de infâmia, os oceanos da calúnia. Nenhuma reputação, por mais ilibada, é inatingível, nenhuma glória, por mais pura, é intocável.”


          “Porque, naquela noite, inesperado e fulminante, sem previsão alguma, derrotando os sábios do Serviço Meteorológico, contrariando as previsões do tempo, assombrando os rudes e velhos marinheiros, desencadeou-se sobre o porto e a cidade de Belém temporal nunca visto, furacão sem exemplo, a maior tempestade de todos os tempos na história daqueles mares do equador.
          Vieram os ventos furiosos, desatados. Vinham com raiva, zunindo de ódio, apressados e inclementes. Dos quadrantes do mundo vinham num tufão de vingança, dispostos a tudo destruir para salvar o sonho.
          Veio o ardente simum com o fogo do deserto, levantando as areias como espantosa muralha. As monções chegaram do Oceano Índico, por onde tanto navegara o comandante, vinham em cerrado grupo e arrancavam as casas de seus alicerces, revolteando-as no ar como folhas mortas de árvores. Negro, a assoviar uma canção de morte, harmatã chegou da África, em rodopios, e desamarrou paquetes, atirando-os contra o cais, rompendo-lhes os mastros e os bueiros. Os ventos alísios naufragaram barcos, veleiros e jangadas. O mistral tomou do iate vindo da Guiana Francesa e, numa brincadeira macabra, colocou-o de volta a navegar, rasgou-lhe as velas, arrancou-lhe o leme, arremessando-o para os lados de Marajó, onde as espantadas tartarugas invadiam aldeias. O frio da morte a pairar sobre a cidade veio das estepes da Sibéria nas asas brancas dos ventos do inverno glacial. Vinham de longe, traziam meia hora de atraso, mas quando chegaram foi o fim do mundo. Os ventos do nordeste, o terral e o aracati, ocuparam-se do barco inglês e do navio do Lloyd, desamarrando-os de suas insuficientes amarras, batendo um contra o outro num rumor de cascos rotos. O vento aracati jogou o navio do Lloyd mar afora, sem mastros, cobertas, tombadilho. O terral, nacionalista apaixonado, demorou-se a maltratar o cargueiro inglês, passando sua língua de faca afiada pela garganta dos loiros marinheiros, sua língua de morte nordestina. Terral naufragou o cargueiro perto do cais, num torvelinho, para que ali ficasse plantado como lembrança e advertência.”


          “— Não tenho família.
          — Viúvo?
          — Solteirão. Não tive tempo para casar. Nessa vida de mar, sempre embarcado.
          — Não pensou nunca em casar-se? Jamais?
          O comandante segurou o cachimbo na mão, perdeu-se também o seu olhar no céu infinito:
          — Não tive tempo...
          — Só por isso? Nada mais? — e a dama deixou escapar outro suspiro como a deixar claro que ela tivera motivo mais sério e doloroso.
          Suspirou igualmente o comandante:
          — Recordar, para quê?
          — O senhor também? — e ela suspirou de novo. — Esse mundo é triste.
          — Triste para quem é sozinho — disse ele.”


Presentes no romance “Os velhos marinheiros ou O capitão-de-longo-curso” (Companhia das Letras, 2009), de Jorge Amado, páginas 271-272, 179-180, 35-36, 27-28, 205, 74, 65-66, 49, 265-266 e 187, respectivamente.


Aforismos de Jorge no romance

“Os amigos são o sal da terra”

“Um marinheiro não se dobra à tristeza”

“O sonho (...) é a liberdade do homem, a que jamais pode ser domada, oprimida ou roubada, aquela que é seu último e definitivo bem”

“Podia tanta coisa assim emocionante acontecer a um único homem, ser tão rica uma vida quando tão medíocre e pobre fora a de todos eles?”

“Um altissonante sobrenome daquela nobreza local perfumada do sangue recente dos
escravos, um bocado arruinada com a abolição”

“Amigo de falar, inimigo de ouvir”

“De absurdos é feito o universo, cada vez se convencia mais”

“Tudo no mundo tem um fim, mesmo o segredo mais bem guardado. Tudo termina por conhecer-se, todo o mistério encontra um dia sua explicação”

“Já falei acerca de seu caráter: quiziloso e arreliento, má-língua, homem da dúvida e da malícia, cheio de arestas”

“Como pode terminar um amor assim ávido e total, senão com a morte?”

“Uma coisa é um doutor ou um oficial, outra, muito diferente, é um infeliz sem diploma. Para os primeiros, todos os privilégios e regalias, para os demais a dura lei”

Aforismos presentes no romance “Os velhos marinheiros ou O capitão-de-longo-curso” (Companhia das Letras, 2009), de Jorge Amado, páginas 137, 149, 112, 68, 105-106, 57, 104, 130, 53, 48 e 113, respectivamente.

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