“(...) O meu momento especial sou eu quem faço. Sozinho ou acompanhado. Se bem que todo momento é especial pra mim, e tudo é motivo para um brinde; e não tem essa de deixar pra depois. Não penso na semana seguinte e mal lembro do dia de amanhã.”
“Mulheres não gastam na livraria quando estão bêbadas. Não gastam. Elas chegam na livraria pra me cumprimentar. Beber. Conversar. Gastar na livraria, não. E falam. E como falam. Falam muito. Do meu canto eu presto atenção em algumas enquanto falam. Acontece muito na madrugada, quando elas ficam mais receptivas e menos atentas. O que elas querem é se divertir. Beber. Dançar. (...) Diferente dos caras. Os caras gastam com livros quando estão bêbados. Gastam com discos. Os caras gastam com histórias em quadrinhos quando estão bêbados. (...) Uma necessidade de se mostrar. Por isso apresentam suas novas aquisições pras mulheres. Só que elas não estão nem aí pras aquisições dos caras. Elas querem é se divertir. O que conta é a diversão.”
“Se eu fosse passar uma temporada numa ilha e tivesse que levar apenas dez discos, levaria o Roberto Carlos de 1971 no pacote (...) que começa com ‘Detalhes’, a mais bela canção de amor escrita na língua portuguesa, era um dos muitos tocados nas reuniões familiares. O que me derruba. Desde a primeira faixa. Nocaute. ‘Não adianta tentar me esquecer’ é assim que começa. Na infância, eu não entendia porque minha mãe chorava quando ouvia ‘Detalhes’. Eu podia estar brincando, me divertindo, mas era só notar as lágrimas escorrerem pelo canto dos seus olhos que eu perdia a vontade de brincar. De me divertir. Não queria fazer mais nada. Na época, eu não entendia. Hoje eu entendo. Às vezes penso que viver na inocência é bem menos doloroso. Bem menos cruel.”
Playlist peneirada do livro [saiba mais aqui]
“(...) ‘Rockaway Beach’ é do tempo em que eu ia à praia tirar onda de surfista, coisa que eu nunca fui; mas achava bacana o surf; gostava de ficar entre a turma de surfistas mesmo sabendo que aquele universo não era o meu. Os papos não batiam. (...) Depois, sempre aos sábados, íamos pro Shopping Iguatemi tomar sorvete e paquerar as meninas. Em vão. Mas era legal nossas tardes de sábado. Conseguir pegar o telefone da gata era um acontecimento. E tinha um lance de turma. De ficar entre a turma que ali estava. Naquele tempo, era perceptível que as pessoas gostavam de se aproximar umas das outras. Diferente de hoje. A isolação, o oposto daquela época. Hoje, vejo uma geração trancada em seu quarto em conexão com o planeta no que melhor ele pode dar. Escolhas. E eu entendo. Não quero dizer com isso que minha geração era melhor. Que a sua, a atual, não está com nada. A minha, por exemplo, não deu em nada. Vejo é coroas rabugentos reclamando da atual e ao mesmo tempo vangloriando a sua. A minha foi legal. Mesmo. Mas isso não quer dizer que tenha sido melhor.”
“Se eu pudesse programar minha própria morte, seria de um jeito bem tranquilo à beira-mar num final de tarde de verão. Ao noventa e dois, noventa e três anos, sentado numa cadeira de praia com o fone de ouvidos do meu celular tocando ‘Manhã de carnaval’ com João Gilberto (...) e ‘A day in the life of a fool’ com Frank Sinatra. Ao longe, um navio passando, alguns pássaros sobrevoando o mar e a maresia entrando pelas narinas. Bebendo cerveja, das melhores — a essa altura não vou mais beber qualquer coisa. (...) Idealizar isso agora e ainda poder escolher com detalhes deve ser demais para os deuses. As cervejas imersas num balde de gelo. João e Sinatra. Vou lembrar de algumas mulheres. O máximo que puder com detalhes. Vou tentar lembrar dos melhores momentos. E vou lembrar dos momentos nem tão bons assim. Das brigas. Dos abortos. Do nascimento dos meus filhos. (...) Das descobertas. Das derrotas. Dos sonhos realizados (poucos); dos não realizados (muitos). De quem partiu: pai, mãe, e os demais que fizeram a diferença. (...) Do café amargo, como eu gosto. Da última fatia do bolo de chocolate, meu preferido. Os últimos contatos virtuais. Vou responder alguma mensagem, se tiver. Um velho solitário, mensagem, não acredito. O navio passando. As recordações passando. Os últimos goles. O coração dando as últimas batidas. E tudo escurecendo.”
“‘Homem não chora’, cresci ouvindo isso. Funcionava para uns meninos. Para mim, não. O único momento em que eu poupava as lágrimas era quando minha mãe me batia. Só de pirraça, não chorava. Eu sacava que ela ficava irada. E eu gostava de ver a ira nos olhos de quem me machucava — somente por isso não chorava nessas horas. (...) Regras. Detesto quando alguém impõe o que não estou a fim de fazer. Ter que ceder para agradar. Eu não sou esse cara — em qualquer relação. Não sou.”
“(...) ainda bem que eu tenho o meu universo próprio. O meu ‘Mundinho’, como já foi dito por algumas ‘Ex’. O que elas dizem no final da relação são coisas terríveis de se ouvir. São perversas. Seguram a onda durante a relação e deixam para vomitar bem no fim. Botam tudo pra fora no apito final. É o desabafo. E fica a impressão de que estão fazendo tudo isso porque sabem que acabou e não tem volta. ‘Agora posso falar.’ E falam. Berram. Expurgam (...) Diferente do começo, quando parecem entrar na onda. Só que não dura muito. E no final vem a voadora no peito.”
“Depois que abri a segunda cerveja e sentei no sofá, fiquei pensando nos jovens que se matam cedo demais por não suportar o peso da vida. E fiquei pensando na vida da minha mãe. Da barra de ter que suportar este peso, sozinha, aos vinte e um anos quando meu pai faleceu (ele aos vinte e três de acidente de carro), deixando ela com dois filhos pra criar (eu com dois anos, e meu irmão com nove meses). Esses jovens não sabem o que é isso. Partiram cedo demais. Uns ídolos. Uns amigos. Uns conhecidos. Muitos desconhecidos. Bem nascidos. Bem criados; e seus destinos. Cada um, cada um. (...) Quanto a mim, que também já pensei em tirar minha própria vida algumas vezes, vejo a vida passar pela tela enquanto minha mãe se diverte com suas amigas, e fico imaginando a hora em que ela vai chegar, bêbada, aos sessenta e sete anos, esbanjando seu belo sorriso.”
“Quando eu terminei nosso namoro, ela pensou que existisse outra mulher em minha vida. Questionou, bradou, e disse que eu não sei o que eu quero. ‘Um perdido no mundo’. Como se eu estivesse procurando algo. Até parece. O que sempre procurei foi um canto com a música saindo do headphone. Alto. E os livros, ali. Um mundo que eu possa chamar de meu. Intocável, mas nem tanto. Ela não entendeu. Escrevi uma carta explicando os motivos. Ela não aceitou. (...) O inverno foi tenebroso. A primavera, tranquila. Ela já tinha caído fora e eu estava sozinho. Quando estou sozinho, solteiro (mesmo), me sinto melhor. Em casa. Nas ruas. No meu trabalho. Porque não tem ninguém pra dizer como devo. Ninguém ali pra. Egoísta, devo ser. Se vivo melhor assim, do meu jeito, e sou egoísta por escolher este caminho, então que eu seja um egoísta. Sem problemas. (...) Eu adoro o que eu faço: vendo livros, discos e histórias em quadrinhos. Tenho o prazer de trabalhar bebendo cerveja (...) Neste momento, escuto Closing Time, a música. É instrumental. De cortar o coração. Triste. Solitária sensação. Triste, triste. Eu não disse que viver sozinho é viver alegre. Eu optei. É assim. Um estilo de vida. Um jeito melhor de aplacar a dor e as agruras do mundo.”
“(...) Música tem isso: pode bater de primeira. Pode bater depois de algum tempo. E pode não bater nunca.”
“Os caras chegaram e foram direto pro banheiro — dois caras. Ela tá com eles e veio conversar comigo. ‘Moço, você acha que eles foram cheirar ou dar o cu um pro outro?’. Eu ri e respondi: ‘Eu não sei’. Ela me pareceu aflita. ‘Sabe, é que um deles é viado’. Eu não conheço ela, por isso fiquei na minha. ‘Ai moço, se eles tiverem dando o cu eu vou ficar puta’. ‘Você namora com qual?’, perguntei. ‘Eu fico com o de laranja. Mas se ele der o cu, ou se comer o outro eu vou ficar com ciúme’. (...) Conversamos. Ela me faz várias perguntas sobre a livraria. Eu respondi pacientemente todas as perguntas. Depois ela veio com essa: ‘Moço, eles tão demorando muito. Ai, um deve tá comendo o cu do outro, entra lá, vê se tá rolando alguma coisa’. ‘Menina, para com isso; pede uma cerveja. Relaxa’. ‘Tá, vou pedir uma cerveja. Mas se eles tiverem trocando de cu vão se ferrar’.”
“Esqueço tudo. Ou quase tudo. O aluguel venceu hoje e não pude pagar. Mandei mensagem pro proprietário de madrugada quando cheguei da livraria. Disse que vou pagar no final da semana. Ele entendeu, pelo visto. Não respondeu, mas também não me procurou. (...) A esta hora não enxergo mais nada. A luz do farol. Nada. Tarde demais. (...) sinto como se estivesse deitado num barco à deriva olhando para as estrelas num céu sem lua. Sem a lua, não tenho como dispersar. A lua faz a gente perder o foco. Sorrio por dentro. (...) Neste momento, o proprietário do imóvel passa pelo corredor. Não me disse nada, nem olhou pra dentro. Tudo certo, pelo visto. (...) Há uma bronca do João [Gilberto] com o Tom porque o maestro não convidou seu parceiro na ocasião da gravação com Sinatra em 1967 do álbum Francis Albert Sinatra & Antônio Carlos Jobim (retirado do catálogo de Sinatra pela gravadora dois anos depois). Se João tivesse participado, seria antológico este encontro. A batida do violão do pai da bossa nova faria a diferença. Seu canto. Tom é maestro. Compositor. Cantar e tocar violão ao lado de Sinatra (esta parte deveria ser concedida a João). Aí sim, o mundo viria brotar a perfeição em forma de música. Mas deixa isso pra lá.”
“(...) Eu estava no bar do Adriano, quando, por volta da meia-noite, fui pra casa. Era um domingo e todos já estavam dormindo. Só o vagabundo aqui não tinha compromissos no dia seguinte. Compromissos com nada. Toquei o interfone. Ninguém escutou. E no prédio não tinha porteiro. Voltei pro bar e fiquei até a hora em que o Adriano resolveu fechar — por volta das duas horas da madrugada. Então fui me sentar num banco na calçada próximo à banca de revistas, que estava fechada. Não dava para deitar. O banco era pequeno. Vi carros passando. Motos. Ônibus. Só não vi pessoas passando. Aliás, vi um catador de latas que tentou se aproximar me pedindo dinheiro. Eu disse que não tinha de um jeito que ele ficou assustado. Disse num misto de tristeza e de fúria. Ouvi cães latindo. Ouvi gatos transando. Ouvi gente transando também. Ouvi buzinas. E ouvi o vento sibilando entre os flamboyants. Naquela noite, eu não dormi. Não consegui. Fiquei esperando o amanhecer. Sem sono. Sem esperança.”
“Sou urbano. Desde pequeno que o movimento das cidades grandes mexe comigo. A pulsação é diferente das cidades do interior. Pequenas, nelas batem uma melancolia indescritível no final do dia. Em qualquer dia da semana, a melancolia bate, assim, forte. A melancolia das pequenas cidades é cortante. O canto dos pássaros e das cigarras como trilha sonora. O badalar do sino da igreja que fica na praça principal. É no momento do badalar do sino que a melancolia bate mais forte. E como bate.”
“(...) ‘O estrangeiro’ é perturbador. Aos quarenta e cinco anos, nunca imaginei que um livro fosse bater tanto. Uma prosa que parece simples. Mas não é. É acessível, como uma estrada esburacada cheia de galhos de árvores caídos com espinhos por todos os lados; mas tem as brechas e você sabe que vai passar. Você vai conseguir. Uma vez do outro lado, ficam as marcas. Nódoas. A prosa do Camus gruda. Tentei ler dois livros depois, de autores diferentes, mas tive dificuldades. A todo instante, me lembrava do Mersault, o condutor do livro. Dele no momento do enterro da mãe. Na piscina com a amiga. Na praia. Agora, a música Killing an Arab do The Cure faz mais sentido. Passei a ouvi-la de outro jeito (a percepção mudou). Dele no tribunal. Atrás das grades. As imagens são claras. Te fazem refletir a todo instante. Quando me indicaram Camus nos idos dos anos noventa — minha amiga e poeta Denise Costa adora, e vivia falando pra mim — eu prestava atenção, mas nunca tive curiosidade. Acho que por já ter tentado vários livros de filosofia e achado chatos. Achei que fosse acontecer o mesmo com Camus. Hoje, vejo que não. Não é nada do que imaginei. É o tempo. E a vida é cíclica.”
Presentes no livro de crônicas “No canto da quadra” (Reformatório, 2018), de Tarcísio Buenas, páginas 122, 35, 111-112, 77-78, 45-46, 63, 123, 30, 17-18, 43, 110, 20 a 22, 27-28, 55 e 48, respectivamente.
Aforismos de Buenas no livro
“As mulheres desaparecem, radiantes, sem deixar rastros”
“Eu tenho nojo de políticos e odeio os bandidos fardados”
“Na arte não existe certo, nem errado”
“Sempre caminho quando estou triste”
“Não acredito que existe suicida que bebeu e se matou. Suicidas são sóbrios. Ou estão sóbrios quando resolvem tirar suas próprias vidas”
“A maior parte das minhas amizades foram feitas através da música”
Aforismos presentes no livro de crônicas “No canto da quadra” (Reformatório, 2018), de Tarcísio Buenas, páginas 36, 116, 85, 53, 31 e 41, respectivamente.
Comentários