Geraldo Lavigne de Lemos
sentimentos gravados
Geraldo Lavigne de Lemos
meu coração é de pedra
porque não se apaga
o que nele se escreve
ou precisa de muita água
muita água da rara
da fonte dos olhos
que mine escorra lave
lave
lave
e desgaste
a parte gravada
todavia se reescrito
torço que encerre o ciclo
pois quando é polido
meu coração fica menor
e
inscreve
diminutas
palavras
--------
reflexão
Geraldo Lavigne de Lemos
debruçado sobre o peitoril
numa tarde morna
em um miramar
eu fitava
com olhos vagos
o horizonte
em pensamentos rasos
por um instante
sonhei voltar no tempo
voltar ao tempo
em que não existiam lembranças saudosas
de lugares e pessoas
e eu vivia momentos eternos
eu quis voltar
mas não pude
então voltei a mim
com a conclusão
de que a vida
é como aquele mar
onde
as
ondas
continuadamente
ruem-se
umas
sobre
as
outras
--------
pertencimento
Geraldo Lavigne de Lemos
o meu umbigo
foi enterrado
nas terras do curral
no meio do mijo
e do esterco
os meus pés virgens
foram postos
nos atoleiros
e nos charcos
as minhas mãos
foram dadas
ainda cedo
às coisas do campo
os meus braços
conheceram a tiririca
e as minhas pernas, o cansanção
contra minha pele
investiram muriçocas
abelhas e marimbondos
fui içado
sobre o cavalo
e dele caí
feito aprendiz
quando chego aos caminhos
que conduzem a este solo
retorno ao meu peito
e habito o meu coração
não há lugar no mundo
que substitua
a lama
que consumiu o meu umbigo
--------
contradição
Geraldo Lavigne de Lemos
o amigo fala
o par reclama
o irmão discorda
a mãe perturba
o opositor encrenca
e nós? insatisfeitos
falamos do amigo
reclamamos do par
discordamos do irmão
perturbamos a mãe
encrencamos com o opositor
queremos alguém igual
queremos a unanimidade
somos inflexíveis
exigindo a flexibilidade
queixamo-nos,
porém não entendemos.
não adianta buscarmos,
que não conseguiremos.
nós somos humanos.
nós somos pensantes.
nós somos iguais nas diferenças.
--------
de coração para coração
Geraldo Lavigne de Lemos
ao encostar
meu peito || no seu
para cuidar
| de seus soluços |
eu gostaria
que você pudesse
ouvir:
— o meu coração
— ele bate
— em linguagem direta
e compreensível
assim saberia:
meu coração
| é seu |
o quanto
| de você |
vive em mim
--------
costumes banais, costumes cabais
Geraldo Lavigne de Lemos
ligam-se os laços da informação,
conectam-se as redes da interatividade,
amontoam-se os seres.
tudo tão perto, tão perto de nada.
um fio, um vidro, um plástico, um ferro,
um sentimento perene.
as portas tecnológicas abertas,
as portas sólidas trancadas,
e continuamos mendigando a cura.
acenei para o meu vizinho
e tive por retribuição
o meu reflexo no vidro.
na época esquecida,
costumava-se conversar,
costumava-se abraçar.
--------
não há mais tempo
Geraldo Lavigne de Lemos
corra corra
você está atrasado
vai perder a abertura
do mais novo novíssimo raro
tem o doutor:
13:30
a entrevista:
13:30:01
o seu trabalho:
13:30
se perder o ponto
diminui o salário
e não adianta pular da ponte
saltar do avião
ou deitar na estrada
todos estão muito ocupados
esqueci da escola do seu filho
é logo após o almoço viu?
aliás que almoço?
deixe esse troço insosso
deixe seu prato limpinho
corre ande logo
já já tudo é passado
e aí vai precisar desenfreadamente
acabar correndo para o outro lado
os olhos fundos são normais
o carteado jogue fora
a dor nas pernas é resultado
o cansaço cura nas seis horas
ora bolas
vejam só
o mais novo novíssimo raro
é mero objeto empoeirado
--------
racional
Geraldo Lavigne de Lemos
a razão cria
o fio tênue do equilíbrio,
constitui a ligação delicada
entre o corpo,
o espírito
e o mundo.
a loucura persiste
em todo o universo que resta.
manter a razão
é uma tarefa diária.
--------
timoneiros
Geraldo Lavigne de Lemos
os punhos dos afogados
erguem-se
nas águas da Ilha Grande,
na baía de Camamu.
homenagem
à resistência dos homens
que, embora nascidos na terra,
antes nadam do que andam,
antes governam do que dirigem.
vida sábia desse povo
que segreda as intimidades da natureza.
mansos,
lembram:
— o mar tem suas vontades.
--------
magarefe
Geraldo Lavigne de Lemos
não descabelo mais o porco
com água fervente
enquanto ele sangra pelas ventas
e grita os meus pesadelos
não marreto mais
a testa do carneiro
antes de abrir a veia
entre os espasmos
nem trespasso mais a lâmina
na garganta do garrote
apeado aos meus pés
hoje o máximo que me ocorre
é ver um frango
circular sem cabeça
tingindo o piso
sento em minha cadeira de couro curtido
e da varanda vejo as moscas
cobiçarem o meu jazigo
peço às larvas
que esperem o meu corpo esfriar
antes de me terem engolido
--------
diplomata
Geraldo Lavigne de Lemos
palavras moderadas pela astúcia
gestos refreados pelo ardil
e um pouco de sátira
ou de ironia
quando a tolice é contumaz
ligeiras entrelinhas
da verdade censurada
— o silêncio fala mais
a diplomacia é a arte da náusea
--------
desbravador
Geraldo Lavigne de Lemos
retiro com as unhas a pele morta de meus calos
e lembro do cabo do facão corneta
as vinte polegadas de lâmina a abrir caminho
cortando mato e cipós com golpes enérgicos
e os braços fustigados pela tiririca
na memória ainda sinto a bainha tocar a minha coxa
sobre a calça de tecido manchado e puído
o suor em gotas na camisa entreaberta
exalando o destemor de quem enfrenta qualquer fera
sob o chapéu que defende a visão
e quando levanto para me recolher
o calcanhar trava e faço força
viciado pela lama que envolveu as minhas botas por léguas
e me deu pés macilentos úmidos e fétidos
recordo das tantas cobras imobilizadas por minhas solas
e de ter necessitado ser mais bravo do que a selva
porque se algum dia desbravasse sem vigília
o animal indômito teria me negado
a piedade que eu lhe neguei por toda a vida
--------
o paradoxo da cigarra
Geraldo Lavigne de Lemos
após anos esquecida sob a terra
a cigarra abandona a carapaça da imaturidade
sai
para cantar
os breves dias que lhe restam
e viver tudo o que calara
ensina
com o desesperado exemplo
o que parece indecisão
mas é aproveitamento:
— e se...
se...
se...
se...
se...
--------
a metáfora da esperança
Geraldo Lavigne de Lemos
a esperança envelhecida
tem cor de palha
o homem a queimará
como um trago
e ficará com as mãos sujas
das cinzas do costume
--------
as sete representações
Geraldo Lavigne de Lemos
deita no canto o moribundo as carnes maceradas
e entrega
simplesmente entrega
na vida real
seu destino fatal
um corpo perdido e indeterminado
um corpo sobre outro corpo
canta na esquina o artista coisas quaisquer
e segue
simplesmente segue
na vida banal
que ele julga cabal
um passo perdido e indeterminado
um passo sobre outro passo
mostra nos murais o revoltoso a sua revolta
e para
simplesmente para
a luta moral
sem motivo factual
um sentimento perdido e indeterminado
um sentimento sobre outro sentimento
gesticula no alto o político os braços enérgicos
e fala
simplesmente fala
a realidade ideal
sem empenho parcial
um discurso perdido e indeterminado
um discurso sobre outro discurso
labuta na vida o trabalhador sem cessar
e cansa
simplesmente cansa
da rotina infernal
no labor integral
um destino perdido e indeterminado
um destino sobre outro destino
ordena a cadeira o aristocrata tudo o que quer
e manda
simplesmente manda
sem lembrar da Terra
sem lembrar das pessoas
mil destinos perdidos e indeterminados
mil destinos sob outro destino
vivem no mundo as pessoas de olhos vendados
e calam
simplesmente calam
na situação atual
que entendem normal
uma realidade perdida e indeterminada
uma realidade sobre outra realidade
Presentes no livro de poemas “Primeira poesia revisitada” (Patuá, 2023), de Geraldo Lavigne de Lemos, páginas 182, 199, 232-233, 41, 185, 45, 37-38, 178, 122, 246, 175, 250, 254, 244 e 27-28, respectivamente.
Comentários