Geraldo Lavigne de Lemos
o preço fora do mercado
Geraldo Lavigne de Lemos
30 mil reais.
esse foi o preço que o judiciário deu à minha perna.
ela, que me levou por aí,
pedalou bicicleta e fez tantos gols.
ela, que saltou a poça no dia chuvoso,
esforçou-se pela minha saúde
e bailou com a pessoa
por quem eu me apaixonaria.
ela, que provocou pênalti,
pisou no bicho e machucou pessoas.
30 mil reais.
esse foi o preço que o judiciário deu à minha perna.
ela, que me faltou no dia da audiência
para vencer os obstáculos do fórum,
e continua me faltando na hora do banho,
do café e do trabalho.
30 mil reais.
esse foi o preço que o judiciário deu à minha perna.
ainda quero ter perna de novo.
não sou um louco que acredita que ela cresça feito rabo de lagartixa.
tenho esperança de um dia comprar uma perna mecânica, isso sim.
e, se o desenvolvimento da medicina seguir bem,
ainda verei pernas naturais serem implantadas com sucesso.
nesse dia, perguntarei ao juiz se ele me vende a dele.
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estudos
Geraldo Lavigne de Lemos
muito além
dos livros
: eu li pessoas
eu li as pontas dos dedos,
o toque, as mãos trêmulas.
eu li o gemido
que atravessa o corredor,
o clamor na noite fria,
os urros de alegria.
eu li as promessas de amor,
segredadas ou não.
eu li o silêncio
e a reticência
dos amotinadores
e dos desertores.
o hálito dos bêbados e dos famintos,
o odor do medo, o olhar submisso,
o suor nos momentos críticos,
eu li.
a saciedade dos fartos e dos abastados,
o ar da confiança, o passo firme,
a gargalhada incontida,
eu li.
as palavras emergem nos corpos
em desordem,
um rubor incontrolável,
alergia delineadora de letras.
eu tive visão, audição, olfato e tato leitores,
assíduos e insuspeitos, mil páginas por dia.
eu li toda gente.
eu leio você neste momento.
sim, eu leio.
se olha e desvia,
se para e relê.
repare,
seguirei lendo,
não há o que fazer.
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âmbar
Geraldo Lavigne de Lemos
tardei a compreender
a sua rútila retina
o seu olhar aberto
: diante de mim, o universo
são poucos os palmos de terra
onde existimos até que se ame
foi você a artesã
de minhas asas
é seu colo o ninho
onde repouso
a certeza diária
— rebrilha nosso tesouro
instantes preciosos
da cumplicidade a dois
guarde-me no âmbar
dos seus olhos
e seremos eternos
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o curumim
Geraldo Lavigne de Lemos
apenas eu e o igapó.
sempre foi assim.
o curare
no dardo da zarabatana
à espera da caça.
ouvi o barulho
de um corpo na água.
segui-o.
o banzeiro
agitou o igapó
— eram meus ancestrais.
baixei a zarabatana
e continuei.
perto do bacuri,
um curumim
quase imerso.
adotei-o
e o batizei:
filho do tambaqui.
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quimioterapia
Geraldo Lavigne de Lemos
a náusea líquida
infundida em minha veia
impõe um paradoxo:
sustenta a vida com a morte.
dá-me rugas e tempo para vê-las;
calvície, e dias para esquecê-la.
faz-me velho cedo
e longevo jovem,
por dias que não tinha.
a saúde retomada
com o prelúdio da senilidade,
e o preço pago é o corpo vivo.
eu a quero enquanto a rejeito,
medida controlada de veneno
que abate o fruto peco
(junto com o são).
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“tudo enfrento, nunca só.
se Deus não vejo,
vejo Deus nos que me confortam.”
“nem na moeda
a cara e a coroa
estão do mesmo lado”
“a casa que acolhe uma família
é antes a própria família
do que a casa”
Presentes no livro de poemas “Poética da existência” (Patuá, 2019), de Geraldo Lavigne de Lemos, páginas 50-51, 98-99, 34-35, 40-41 e 66, respectivamente, além dos trechos dos poemas “fé” (p. 71), “caraminguás” (p. 42) e “sob o mesmo teto de gerações” (p. 38), presentes na mesma obra.
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