LXI
Jovina Souza
Nunca amei os homens com verdade,
vinham no fim das festas, rejeitados,
por necessidades.
Apenas pegavam nos meus joelhos,
afastavam e miravam minha buceta.
Sequer um riso. Não falavam em beijos.
Nunca amei os homens por inteiro.
Eles chegavam como pedacinhos
de quase nada.
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XXIII
Jovina Souza
Agradecer ao tempo decorrido
não me conforta.
É insensato abraçar a morte,
tornam-se áridos os fios da vida.
Não abraço a pretensa vitória
de estar viva.
Não ignoro que morro a cada
pedacinho do tempo vivido.
Não há vitória sobre o tempo.
Mesmo quando ele se vai lento,
nos oferta em pequenas fatias
a hora do passamento.
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XLVII
Jovina Souza
Vejo o filme das mães sujas de sangue.
Sangue vivo escorrendo dos seus braços
igual ondas de um mar histórico de sofrer.
Pregos cravados nas suas peles azeviches
são tatuagens das suas vidas infelizes.
Mães violadas nas bocas de seres brancos
que levantam punhais e não se apiedam
dos vencidos
e
limpam suas lâminas no cabelo dos escalpes.
São homens e mulheres. Eles erguem medalhas
nas ruas e nos bares. Todos disputam nas praças
corpos no refugo das carcaças.
São meus vizinhos com seus broches de ouro,
com suas flâmulas de foda-se
e títulos de doutores e doutoras honoris causa.
Tocam cítaras
e
quebram o que se levanta do crepúsculo.
O ódio das suas mãos, vem dos seus espíritos
com ares de eternidade.
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LXII
Jovina Souza
Não me espere no encontro marcado,
a vida é brevíssima para minha pele.
Passarei no vento do fuzil da facção
fardada.
Ela guarda as calçadas e cumpre
sua premissa:
se o corpo é da pele da cor preta,
bala.
Não me espere para nosso encontro
daqui a meia hora, será improvável
minha chegada.
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XIV
Jovina Souza
Sou um colibri a lamber palavras,
caindo nas lacunas da semântica
que sequestram sentidos libertais.
Eu os levanto no acordar das lutas
para reaver memórias, enterradas
nos canaviais.
Eu sou operária das vontades
nas revoluções do verbo
e vivo nas solidões que marcam
minha pele com seus murais.
Se busco o fio dos equilibristas
sobre esse rosário de abusos
é porque
sou alvo dos seus vidros
e dos cemitérios de almas
no fundo dos seus cristais.
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VII
Jovina Souza
Vivo na intersecção das diferenças
e na verve insidiosa da episteme.
Sou o alvo nesse lugar de guerra.
Minha pele é a primeira no paredão
que engole corpos
e o carrasco impõe a roleta russa
aos meus ouvidos.
Quando meu escalpo geme,
o amor prende o verbo
no fundo do silêncio.
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I
Jovina Souza
Essas velhas paredes altas
com espessas coberturas
deitam sobre minha cabeça
e
ao redor de mim são obscuras
de texturas cimentadas,
compactas,
sacramentadas
em vastas agonias.
Meu sonho delira na fresta.
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XIX
Jovina Souza
Procuro minha menina pisando a terra
a caminho do rio de ternuras e calmas.
Um dia partiu nas fumaças das neblinas
para o mar.
Ela se foi senhora das ondas altas e flor
da perene liberdade de mais e mais amar,
sem os medos que encurtam os passos
no firme chão insular.
Ela se foi sem o desejo pelas bússolas
para a festa do arco-íris sobre os montes.
Foi planar nas asas do condor ao vento,
e ser menina aprendiz com os horizontes.
Procuro a minha menina de pés corajosos.
Quem me dera que ela voltasse destemida!
Com um agdá de unguentos e alfazemas
para banhar meus pés,
andarilhos das feridas.
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XXX
Jovina Souza
Nas várzeas das minhas saudades
tem meus acordes solitários, saindo
pela janela das ilusões de ontem.
Mas, o meu coração é caminhante.
Ele corre ventos, ele corre oceanos
toma a direção do colorido e vai
aportar paisagens do belo nos meus
porões.
Meu coração é rio de muito viver.
Seus afluentes desaguam girassóis
voando para o nascente das manhãs
nos dias amarelos.
Onde espero aquele amor que me disse
ser eterno.
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XXXI
Jovina Souza
Saio à rua como a própria vida
voando na brisa, sempre indo
rumo ao que não se advinha,
ao que não tem a completude.
A vida é controversa quando
se quer eterna, pois ela é feita
do novo e do recomeçar sempre
na lâmina do adeus
e nas saudades lúdicas.
Ela oferta às almas o que suspira,
atende às ilusões do pensamento.
Recebo, hoje, a vida como música
do desejo primeiro que se desfaz
e vai se enrolando em alucinações
do fim
nos precipícios dos meus castigos.
Presentes no livro de poemas “Estampas do abismo” (Malê, 2023), de Jovina Souza, páginas 129, 55, 103, 131, 37, 23, 11, 47, 69 e 71, respectivamente.
Aforismos de Jovina Souza em “Estampas do abismo”
“Meu corpo lhe negou o último prazer. Homens gostam de foder na despedida. O deixei sem essa vantagem para contar aos amigos”
“Estou no fio da memória dos enterrados vivos ontem. São duras as cenas dos séculos que habitam em meus olhos”
“Meu riso ficou entre os dentes, sonhando viver nos lábios, achando graça das coisas”
“Eu sou a bilionésima voz e grito longínquo do sentir agudo moribundo de eco permanente”
Aforismos presentes no livro de poemas “Estampas do abismo” (Malê, 2023), de Jovina Souza, páginas 43, 117, 93 e 25, respectivamente.
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