“Porque não existem vítimas inocentes”
Alex Simões
Se Pasolini fosse vivo
E morasse em Salvador
na época em que o conheci,
provavelmente
me convidaria pra sair,
não como a um poeta (pelo menos eu já rabiscava uns versos),
mas como um menino da borgata
Fazenda Grande do Retiro.
Pasolini saía com meninos da borgata,
como Nilo,
que não saía comigo
porque era meu amigo,
mas igualmente gostava de meninos da borgata.
Pasolini, meu amigo Nilo,
e tantos outros amigos
gostam de meninos de borgata, ragazzi di vitta,
como fetiches de mercadoria,
ícones da resistência à cultura pequeno-burguesa
de um mundo capitalista & fascista que os criou;
o que não justifica, absolutamente,
o modo bárbaro com que ambos,
Nilo e Pasolini,
foram assassinados
e menos ainda justificaria a negligência
com que ambas as investigações
foram conduzidas:
um com a cabeça trespassada pelo pneu do próprio carro,
o outro, enterrado no quintal do assassino com o pé de fora
[(na mesma fazenda grande em que morava),
tendo o carro sido abandonado com tudo dentro (carteira e
[celular).
Duas experiências inesquecíveis:
Pasolini chegou em minha vida quando eu tinha 16 ou 17 anos;
Nilo, que conheci quando tinha 18, e que gostava muito de
[Pasolini,
me deixou quando eu tinha 21 anos.
Durante muitos domingos seguidos liguei pro telefone de Nilo
(como de costume, todas as noites de domingo, por dois anos)
e depois me dava conta que ele tinha morrido,
assassinado, como Pasolini, e talvez por isso minha memória
[sempre traga os dois, indistintamente,
como vida e obra são indistintas.
Duas vidas que me ensinaram a respeitar a morte e a repugnar [a
moral.
Porque a vida é perigosa por si só (“Viver é perigoso”, falou uma
[Rosa),
porque todo discurso moralizante é por si só perigoso
e nos coloca no lugar de juízes (e juízes não são deuses e deuses
[não existem).
Pergunto: quem foram os assassinos de Nilo e de Pasolini?
Onde estão? Como conseguem dormir?
Eu sei que um assassino, meu vizinho, escapou pela porta da
[frente 3 dias depois de ter sido denunciado pela própria mãe,
continuou fazendo a alegria de outros que gostavam de meninos
[de borgata,
mesmo sabendo de sua ficha criminal.
Não tenho ódio, nem piedade, nem dos assassinos,
Nem de Pasolini, nem de Nilo.
Porque não há assassinos individuais. Todo assassinato é um ato
[coletivo, sendo a sociedade no mínimo cúmplice, quando não
[mandante.
Apenas fui um rapaz de uma borgata,
da mesma borgata-cidade-país-mundo que assassinou Nilo,
de uma borgata parecida com a qual gerou o assassino de Pasolini,
e sei que a violência que nos constitui precisa ser lida,
não domesticada ou eliminada,
mas lida como discurso, compreendida a partir de suas condições
[de produção,
percebida como mais-valia de uma opressão que não vem apenas
[de cima,
mas que nos atravessa.
E que não há vítima ou algozes neste mundo violento
e que precisamos aprender a não repetir nossos erros
e que os erros não estão nos nossos objetos de desejo.
Os erros apenas são.
E, sim, os erros podem ser, senão corrigidos, tema para novas
[elegias,
como esta,
que apenas existiu para dizer,
aqui,
diante de todos vocês,
não importa o motivo que lhes trouxe:
Pasolini e Nilo ainda vivem em mim.
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rediáspora
Alex Simões
os refluxos gástricos e a anemia falciforme que quase ninguém
[quer estudar
o sangue O positivo que você não doa porque é testemunha de
[jeová
essa vogal anasalada por demais e essa mania de esquecer os
[plurais
a roupa branca de sexta, eu sei, você é ateu mas respeita
a tradição
a caixinha que sua mãe coordenou para comprar a primeira
[geladeira duplex nos anos 70
esse acarajé que se impõe à sua vontade ao cair da noite
o medo de varrer para a porta da rua
a vassoura de ponta a cabeça por trás da porta
a bolsa que não pode ficar no chão
o seu banzo que de vez em quando chamam de depressão
o legado da escravidão
e esse boicote disfarçado de preguiça
essa lista não acaba nunca...
volta pro mar,
oferenda!
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soneto armado
Alex Simões
a Palestina fica ali do lado.
desce primeiro o salto do sapato,
desce o segundo salto em staccato.
tem Congo na sua rua, nos sobrados.
o Haiti é mais perto que o supermercado.
logo depois vem o Irã e vem o Iraque.
há mais japas e chinos que shitakes,
e a Palestina fica ali do lado.
esta terra é sem lei, mas as fronteiras
são marcadas a ferro e a fogo aceso.
em cada esquina, tem um homem preso.
a cada quadra, uma mulher à beira
de uma explosão de craque e gravidez:
sacis pululam onde o sem-perna é Rei.
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a uma placa da Biblioteca
Alex Simões
não sei quem mais necessita de restauro:
a memória da Bahia
a biblioteca pública da Bahia
ou meu coração.
o livro antigo demanda digitalização.
para poupar gastos públicos futuros
digitalizo meus dedos e escrevo
de modo bárbaro e tecnicizado
para acesso exclusivo
do departamento dos desejos binários.
pode ser uma solução.
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breados
Alex Simões
numa cidade de pedra
os homens são de veludo
mas suas caras não negam
vivem cansados de tudo.
este silêncio gigante
força-os a ver estrelas
e contá-las como excesso
de deuses sem estribeiras
por que não viram nascentes,
fontes de água divinas?
ou diamantes celestes
de dureza nordestina
salvando a pele lascada
pelo sol do meio-dia,
a vida, a dignidade,
o que o garimpo não cria.
nem de batatas da serra
nem de bananas caturras
tratam os versos que chamo
dose diária de surra.
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pequena morte
Alex Simões
podia ser sobre o acontecimento
de uma adriana varejão ter sido
finalmente expografada em pleno auge
em uma cidade um tanto quanto óbvia
para recebê-la. porém não,
porque uma cidade um tanto quanto óbvia
não poderia se chamar Salvador
e, desse modo, o título deste relato seria referência da referência
porque Fontana apud Varejão remete a fissuras
e a um modo muito francês de referir-se ao torpor
que alguns de nós temos após o orgasmo
e minha memória sobre os quadros a la fontana
dizem muito disso aqui
entre as fissuras corpóreas:
porque o quadro é o quadro mesmo
e um rasgo sobre sua superfície pode ser qualquer coisa
depois de ser um rasgo sobre sua superfície.
e uma pequena morte é um modo afrancesado de se pensar o orgasmo,
não o que ele é, senão o logo depois de ele ser.
mas não,
essa pequena morte é um modo de dizer
que fiz um aniversário enquanto
atravessava o abismo de me tornar
o que de fato só deixará de ser quando a morte não for pequena —
quem sou
e tive um susto ao encontrar-me.
tanto, que ficou no olvido
contra o sem sentido
apelo do não.
eu me esqueci um pouco
e fui, assim, me entretendo.
encontros com o acaso
e um desejo equivocado pelo não
que se concretizou pequeno.
ali eu vi o amor que tenho por ela
e tão imenso que sua ausência
por pequena que fosse
seria uma tamanha ausência
e uma fissura na superfície
de um quadro
ou de um poema.
resultado de sístoles
e diástoles
que nem aqui: este encontro.
eu falando o que seja
e você me ouvindo,
quem seja
você,
que é você
e existe aqui
nesta cidade
onde escuto
sístoles
e diástoles.
e as pequenas mortes
após os orgasmos
fazem barulho
suficiente
para eu gostar
de estar
vivo
e, bem assim,
de dentro,
nas fissuras
e nos equívocos,
esta folha de papel, quando rasgada,
fará a tinta azul ficar roxa
porque existir sangra
e fissuras trazem vísceras dentro.
só pode padecer de pequena morte
aquele
ou
aquela
que está
irremediavelmente
vivo, viva,
aqui
dentro.
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Novíssima Canção do Exílio
Alex Simões
a João Bandeira
Minha terra tem ladeiras,
Bunda pra lá e pra cá!
As mãozinhas para o alto,
Tira os pés do chão, oba!
Aqui sempre é micareta,
Nossos negros têm mais dores,
Expectativa de vida,
Maior pros brancos senhores.
Quer sair sozinha à noite?
Se for mulher, nem pensar!
Minha terra tem ladeiras,
Bunda pra lá e pra cá!
Minha terra tem fedores,
Mijo com lixo no ar.
Quer sair sozinho à noite?
Alguém pode lhe assaltar.
Minha terra tem ladeiras,
Bunda pra lá e pra cá!
Quer sair sozinho à noite?
Bicha, é bom não arriscar!
Sapatão, vão te estuprar!
Travesti, vão te matar!
Minha terra tem ladeiras,
Bunda pra lá e pra cá!
Minha terra tem estertores
Como em qualquer lugar,
Mas também tem suas flores,
De dendê, maracujá
E por mais que ande no mundo,
Sempre eu falarei de cá.
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os ventos do mar me seguem
Alex Simões
os ventos do mar me seguem
na frente e no fundo, os ventos
vão e vêm, num movimento
curvilíneo e dissonante,
para o alto e avante. durmo
enquanto voo sobre o mar.
esse sonho desde sempre
me acompanha e me designa
um lugar ao sol. não sendo
Ícaro, tampouco Dédalo,
não ouso alcançar o Astro-
Rei. me perco diariamente
em labirintos que não
sei quem desenhou, decalco e
tamborilo sete vezes
cinquenta traços no mapa
e cheiro a rosa dos ventos
despetalada no sonho
no qual voo sobre o mar.
lembro que a poeta Kátia
Borges me contou em crônica
dominical sobre o susto
que uns cientistas levaram,
ao descobrirem, em Galápagos,
pesquisando o modo como
fragatas enfrentam os ventos,
que as aves dormem planando
e podem até sonhar.
e volto ao sonho do qual
de fato nunca saí.
enquanto sigo planando
em silêncio, o astrolábio
de sete faces me guia,
presente de um marinheiro
chamado Waly Sailormoon.
e não desvio dos ventos,
pois quero viver da brisa
que tremelica Bandeira,
— cada país com a sua —
Pátria Minha tem um Mapa:
estou no ar e o vento,
o que vem da eternidade,
me faz planar para sempre
refrescando a minha cara
num sonho que sonho em looping
sobrevoando a Baía
entre Ítaca e Itaparica,
canto o delírio de um pássaro:
os ventos do mar me seguem
na frente e no fundo, os ventos.
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as buzinas em Salvador me fazem lembrar
Alex Simões
dos modos de ser e estar em sociedade,
dos conflitos de classes,
da tensão gerada na contradição do cronotoposentrelugarejo que
[faz alguém se sentir em casa estando na rua*,
das máscaras caindo no que concerne
aos mitos,
do bom-mocismo sacana soteropolitano
&
da democracia racial
olerê
olará
que eu não tenho carro
e devo me proteger de um repentino banho de lama
sempre que ando na rua
quando chove.
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refazenda: grande
Alex Simões
não aquela dos meus sonhos
que não sonhava em menino.
sonhos que sonho que sonho
que não se põem por escrito.
nem aquela que doeu
e ainda dói de só ver
fora dela, mesmo que eu
dela nunca saia, há-de
vir a outra que não é
sendo assim no que faz mancha
no papel, som na super-
fície e pode tudo, até
ser ela mesma, aqui, por
acaso, vamos supor
Presentes no livro de poemas “Minha terra tem ladeiras” (Caramurê, 2021), de Alex Simões, páginas 39-41, 47, 32, 49-51, 27, 55-57, 59-60, 49-51, 15 e 53, respectivamente.
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