Ikú
Wesley Correia
Para confundir a morte,
será preciso
desaterrar os espelhos,
desdobrar-se em
muitas faces de nada.
Será preciso
inventar uma língua
com que convencê-la
ir matar adiante.
Também será preciso
dançar com a morte:
beber, cantar,
alegrar-se em louvor de
seu estandarte universal.
Será preciso manipular
a ferrugem da ilusão
para confundir a morte,
num fingir-se morto
até que, sem interesse
pela jazida carne viva,
ela vá matar adiante.
À morte, será preciso
temê-la, mas
de um modo que não a assuste,
percebê-la, mas
de um modo que não
a provoque,
fugir do ângulo
de seu olho sem luz,
o que já é morrer um pouco.
E para lhe saciar o
apetite voraz,
será preciso contar
com a tenacidade dos
que desejam morrer,
dos que urgem morrer.
Para confundir a morte,
será preciso vibrar
na frequência
do baixíssimo dó
com que ela se anuncia.
Será preciso, ainda,
para confundir a morte,
acessá-la por dentro
de seu organismo pulsante,
encarnar uma
temporalidade ausente,
atingir a transparência da
sua transparência irascível,
o que já é morrer um pouco.
E ainda que em posse da mais
complexa instrumentação
e do alto engenho da fantasia,
capazes de confundir a morte,
ainda assim, alguma hora,
acaba-se por ceder ao seu encanto.
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Óri Àxé
Wesley Correia
Há de se pisar em quarto de Orixá
como quem flutua, como quem faz
de Agosto o seu universo mais tangível,
como quem se embriaga do silvo
de todos os pássaros e mergulha
na existência sem códigos
que apascentá-la.
Há de se pisar em quarto de Orixá
como quem recria a vida
segundo o fluido novo,
nascido da ânima dos animais
e da seiva das ervas
que o sol não matizou,
que o orvalho não lambeu,
que o sonho não aprisionou.
Há de se pisar em quarto de Orixá
como quem está dentro estando fora,
como no milho a pipoca
se guarda em infinitas formas,
como na terra habitam
os sentidos tantos do homem,
como quem transpassa o mal e o bem
e o derradeiro e o começo
e o nada e o tudo para,
no imperativo do rito genuíno,
descansar longe dos conceitos.
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Saudade
Wesley Correia
Verbo mortal da hora sem fim,
o adeus dito por quem se ama,
nada amolece, a tudo inflama,
abandono esculpido em marfim,
faz permanente quem se vale
desta negação para sempre sim.
Do coração infeliz, nasce o filho
avesso, feito de estações perdidas,
todo afeito a lágrimas escondidas,
exibindo o indigno do seu brilho
nas chamas que lambem a mata,
no trem louco por fora do trilho.
Que vida erige do após-ruptura
se toda semântica jaz na solidão?
Não há vista da janela nem clarão,
da boca escorre esta frieza pura.
Mas, de lá, alguma voz me diz que
também a saudade é uma forma de cura.
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D. Pérola
Wesley Correia
Mãe enfiava a linha na agulha
com pronta habilidade.
Sequer pensasse no que fazia:
de um lugar urgente do seu corpo,
a mecânica do querer explodia.
Ao pespontar, Mãe mergulhava
o tino em cada furo,
alinhavava, enviesava,
e eis um capote cerzido,
uma touca reparada,
uma meia remendada,
eis nosso calor em uníssono
tecendo a alvorada.
Chegou o dia, porém, em que Mãe
não pôde enfiar a linha na agulha,
parou, suspirou, me pediu ajuda.
Havia nela prontidão e querer,
mas cadê mecânica?
Perdera-se, talvez, em meio
às urgências da sua gaveta
de guardados,
restara na espera sombria
de um amor,
vai ver, partiu,
vai ver, descansou.
Já agora que linha e agulha
inauguram um abismo
entre minhas mãos,
penso na chuva
da presença
da ausência de Mãe,
e sinto que dispersar-se
é a matéria mais permanente.
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Inflamado
Wesley Correia
dói tanto em meus estilhaços,
mal posso amainar se vivem
cáusticas as cintilâncias em
que me banho, no regurgitável.
medo e náusea putrefazem a
fenda boa da vida, dói tanto
e de um tal modo elaborado,
que só no Triste me conjugo,
verbo alijado em cujos olhos
arde o Torpor dos anos.
dói tanto em meus pedaços,
no inflamado das funduras,
na elástica carne do drama,
que a certidão e o sonho
incinero-os todos ao sol
do meio-dia. e enquanto me
lambuzo de cinzas, a língua,
untada em sal vivo, perfaz
seu mapa de Gritos com a
destreza de um colonizador.
dói tanto em meus pedaços,
a ferrugem dos tendões
estalando no casco do trauma,
a carniça hodierna do espírito.
se eu cantar, passa? se eu morrer?
e se eu assentir, será passará?
pedem para que eu não pense,
mas dói de um tal modo elaborado
que temo já não haver chances
por fora do poema desgraçado.
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O centro da questão humana
Wesley Correia
Meio para a felicidade
é entornar o caldo
mais profundo de si,
lançar fora a urgência
de mover-se em cadeia.
Recursos à cena pública,
vender-$e, comprar-$e,
promover-$e em desespero,
tudo isso pouco importa
ao centro da questão humana.
Meio para a felicidade
é não entornar o caldo
mais profundo de si,
maquiar bem o de fora,
banhar-se, perfumar-se,
imprimir o ouro na foto
de boda$, o alvo $orriso,
que tudo isso importa
ao centro da questão humana.
Meio para a felicidade,
se houver meio e felicidade,
será pela via do sujeito:
entranhar-se em concha nua,
devassar impiedoso a carne,
engastar na fronte negra o
princípio de coisa alguma,
dançar não dançar qd
o frágil coração se aflige
e deixa por conta
de cada um
o centro indefinido
da tal questão humana.
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Teu
Wesley Correia
Ser teu como quem se guarda
no ventre oculto do silêncio,
e ali, quando nada atravesse,
cheio do mais completo vazio,
ser só teu como o mar é do rio,
como a tenra manhã é da relva,
do gás do dia às noites de pedra,
como mel colhido à flor do susto
entre o que se achou e se perdeu,
ser, assim, mais teu do que meu,
e, súbito, na glória de habitar-te,
ser muito mais do que só Teu.
como este animal que nasceu
de si mesmo, desapossado e só,
como, livre, o pronome é do pó.
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O adeus à personagem
Wesley Correia
Sem manual ou GPS,
solto numa rua qualquer,
te conduzo ao ponto
mais próximo de uma
partida ainda sem forma,
e te liberto finalmente.
Foram muitos calores,
possibilidades de orgasmo,
enganos e sensações,
dois ou três instantes de verdade
em que pude ser feliz talvez,
inesquecíveis calores,
e eu embaixo de tua pele
por medo de me queimar.
Vieram as alucinações
da minha Salvador, noite e sal
operando a cidade no melhor,
mensagens criptografadas
anunciavam: o amor está fresco!,
e eu embaixo de tua pele
por medo de me resfriar.
Se, então, de ti me desapego
é para que encontrem algum
sossego minha família, meus colegas,
é para que eles não valham
a prenda de meus pesares,
e para que eu não seja o fruto
impotente atravessando estações
feito néctar que mina pra bicho nenhum.
Neste ponto onde te deixo,
tens contigo o último lamento
da minha companhia,
daqui, sigo comigo
por caminhos
que eu mesmo comporei
à medida que caminhar.
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Por uma teoria da dissipação
Wesley Correia
Quando a penumbra desabou sobre a casa da infância,
o menino escalou rápido a mangueira no quintal
e ficou a respirar em funda suspensão,
longe da ruindade de dona Celeste,
longe da solidão de dona Vitalina
— e sua filha com doença mental —
longe do olhar grave dos amiguinhos,
longe da tormenta que afogava o seu espírito.
Quando brotaram os demônios no chão da juventude,
o assombrado rapaz saltou para fora de si
(porque já não havia mangueira no quintal)
e se obrigou a levitar sobre a náusea dos dias,
sobre o tesouro guardadíssimo de tudo,
sobre as casas desalinhadas
onde a fantasia não era redimida.
Quando em suas mãos tísicas veio pousar
o pássaro gelado da velhice,
o velho o acarinhou pacientemente,
(porque da mangueira só a vã memória)
e com ele passeou,
movendo a cadeira de rodas
pelo pequeno quarto do asilo
enquanto o aquecia,
e contemplou seus olhos redondos
numa espécie de moderada convergência
a que se reduz a existência.
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Delicado
Wesley Correia
que eu impedisse o
braço da mamãe quando
ela te esbofeteou a inocência,
que eu arrancasse o coração
alegre do papai nas noites de farra
quando ele ignorou
a tua compleição raquítica,
que eu te levasse para
brincar no campinho,
te contasse a história
de João e o pé de feijão,
mas perdoa,
minha criança adorada,
os atrasos desta vida,
pois que do tempo sabemos pouco,
apenas que passa e nunca é louco.
porque cheguei tarde,
o lúgubre havia conquistado
a geografia da
ilha
de teus olhos
e o delicado dos
meus braços
já não pôde te ninar.
Presentes no livro de poemas “Secreta ilusão” (Penalux, 2024), de Wesley Correia, páginas 33-35, 30-31, 72, 18-19, 48-49, 27-28, 13, 61-62, 25-26 e 52-53, respectivamente.
Aforismos de Wesley Correia em “Secreta ilusão”
“Tem sido muita dor pra pouca carne, tanta carne pra uma nesga de fôlego, e tem sido olhos q não mais suportam o tanto q há pra chorar”
“É com a língua do silêncio que te sopro aos ouvidos o cântico da Entrega e te experimento a nudez secular como quem, de repente, se liberta, como quem se salva da vida, como quem aceita o amor”
Aforismos presentes no livro de poemas “Secreta ilusão” (Penalux, 2024), de Wesley Correia, páginas 32 e 37, respectivamente.
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