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Joan Didion pelo olhar de Hilton Als

Joan Didion (foto: Brigitte Lacombe)
Hilton Als (foto: Ali Smith)


“Todos viemos de algum lugar. E o trabalho do artista é questionar os valores que fizeram parte da construção desse lugar. O que você também vai perceber na não ficção de Didion é como sua célebre clareza se torna ainda mais afiada quando a inquietação provoca fricções no banal, ou quando ela está na presença de corpos indefensáveis”


“Uma das formas pelas quais as crianças se apegam à beirada do mundo é pensando que estão no centro dele. Na Califórnia ou em qualquer lugar. Ao crescer, você inevitavelmente começa a ver que a distância entre a terra firme que você pisa e a escarpa da beirada do mundo é na verdade bastante curta, e que você e outras pessoas, sem falar nos seus pais, são doidos e solitários, porque todos somos.”


“(...) Repetidas vezes ao longo da carreira, Didion lutou com a ideia, e com a realidade, do que compõe o status quo, do que constitui a tradição e como o ‘bad boy’ forasteiro ou o evento imprevisto que perturba o mundo conhecido por pessoas como os Didion, ou pessoas com quem eles se relacionavam em Sacramento. Uma das maneiras pelas quais esses ‘bad boys’ modificavam o mundo era o sexo ou, mais precisamente, a projeção do sexo. John Wayne, que Didion viu pela primeira vez em um filme quando era criança — ‘Ele tinha uma autoridade sexual tão forte que até uma criança percebia’ — continuava a atrair a jovem escritora em parte porque ele parecia saído do nada e tinha uma história que ‘não era história alguma’, ou seja, nenhuma biografia poderia explicá-lo. (...) Didion também se interessava por escritores mais tradicionais que emitiam uma energia similar na escrita, caras que relatavam seus estados extremos de consciência em um texto atrás de outro, carregados de sexo e morte e do que pudesse dar errado quando o status quo era rompido por forças que não podia domar. Didion no ensino médio, andando com garotos que não estavam nem aí para a escola, Didion observando Frank ao piano, ou vendo John Wayne na tela quando criança, exalando sexualidade — tudo isso é fascinante em parte por ser incomum: uma mulher olhando para homens sem desviar o olhar. Joan Didion inverteu o padrão masculino-feminino ao desenvolver o olhar de Didion.”


“Em 1952, a escritora que vinha se desenvolvendo foi aceita na Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde se graduou em Letras. Berkeley não era sua primeira opção. Ela tinha se candidatado a Stanford, mas não havia passado, uma decepção sobre a qual ela escreve em ‘Sobre não ter sido escolhida pela faculdade que você escolheu’, seu texto de 1968. Nele, Didion descreve o dia em que recebeu a carta de não aceitação (...) Ao longo de toda a sua vida, Joan Didion voltaria àquela carta, para se lembrar não apenas de quem ela era, mas de como as coisas dão errado e não devem sempre dar certo: são as expectativas frustradas que fazem com que você consiga sair da caixa, do que você acha que ‘merece’, e se lembrar de como entrar em Stanford, ou Yale, ou Harvard em geral tem a ver com seguir o roteiro escrito por outra pessoa. O roteiro dos pais.”


“Para o homem negro no centro deste drama específico, o horror que é impingido a ele e seu momento de diversão no parque é mais uma prova da ‘angústia e horror’ que a cor de sua pele provoca no mundo branco. (...) Diferente de outros escritores de não ficção que ela admira, Graham Greene entre eles, Didion não incorpora sua personalidade na cena; ela não consegue editorializar, ou não o faz, porque para ela os pesadelos dizem algo por si sós e o trabalho do escritor é estar desperto quando o pesadelo ou o inquietante se apresenta. Porque ele vai se apresentar. O éthos de Didion não está tão associado a uma escola, mas é um modo de ver específico de quem ela é, do mundo que a tornou quem ela é, um modo de ver que, em última análise, revela a escritora para si mesma.”


“(...) Didion empunhou o personagem em primeira pessoa, o que equivale a dizer que o fez com a verdade e o ponto de vista que se aplicava a ela ou que, para ela, tinha apelo. Desde o início, a não ficção de Joan Didion se radicalizou pela rejeição à ideia de que o mundo possa ser filtrado pelos preceitos do jornalismo e desembocar do outro lado como ‘verdade’. A sua não ficção narrativa é um questionamento sobre a verdade. E, se a sua não ficção é sinônimo de algo, diz Didion texto após texto, é da ideia de que a verdade é provisória e que a única coisa que a garante é quem você é no momento em que escreveu isso ou aquilo, e que as suas alegrias, os seus vieses e preconceitos também fazem parte da escrita.”


“A repressão do ‘conteúdo’ de Frank. Como isso afetou Didion antes de ela ter a linguagem para descrevê-lo? Isso teria levado a colegial que amava Hemingway e Joseph Conrad — escritores que exploraram, repetidas vezes, o fracasso do amor, o romance como um sonho que azeda a alma, ou que faz de alguém apenas uma sombra de si mesmo, seja lá quem tenha sido — a desejar outra forma de realidade material, que não se escorasse em Highballs, em valores fundiários e conselhos comunitários, um cara que simplesmente ligasse o foda-se para tudo o que Sacramento considera correto e seguisse por um caminho completamente diferente? Caras assim eram desajustados e não queriam se ajustar; eles não se pareciam em nada com os homens que Didion conhecia.”


“(...) Nos primeiros ensaios reunidos aqui, Didion está dizendo que o ‘eu’ de uma mulher — seu olhar, e seu eu — não precisava de qualquer um desses artifícios para contar uma história; Didion precisava era de uma situação que provocasse uma reação e lhe entregasse sua história, em todos os sentidos da palavra. A crise existencial que ela experimentou no fim de ‘Alcançando a serenidade’ é um grande exemplo disso, e um grande exemplo de como a linguagem afeta o escritor que ama as palavras, mas que sabe como elas também podem nos perturbar. Quando comecei a ler Didion, em fins dos anos 1970, ficou claro para mim, depois de um tempo, que um dos seus grandes temas era a própria arte da escrita (...) parte deste livro é justamente sobre a escrita como tema, a escrita como um estilo de vida. Ela fala muito sobre essa arte em seu ensaio de 1998 sobre Ernest Hemingway (...) o que afastou ainda mais a sua escrita do ‘individualismo romântico’ de Hemingway, hoje muito datado, foi a mecânica ou a energia da escrita de Didion, que ela talvez chame de ‘brilho’. E é essa energia ou brilho que joga uma espécie de luz terrível e linda em um mundo que vislumbramos, mas não queremos ver, um mundo no qual o perigo potencial é um dado empírico, o bicho-papão talvez seja seu pai e a esperança é uma defesa débil contra o pavor.”


“(...) É possível dizer que Didion, que entalhou suas palavras no granito da especificidade, talvez tenha se sentido pouco inspirada pelo estilo de escrita da Guerra Fria, popular em ambas as costas norte-americanas quando ela era estudante; em todo caso, é difícil imaginá-la como uma ‘vagabunda iluminada’. É pose demais. O que Didion buscava era a naturalidade da expressão controlada pelo entendimento real do ofício, a melhor forma de descrever o inefável, o inquietante do cotidiano. Mas como ela alcançaria isso? Pelo ato de escrever, tornando-se uma escritora. (...) Como todo escritor sabe, a escrita é inseparável do corpo; é você, você é o cantor e a canção. Ao longo da carreira, Didion viveu ou projetou um ‘eu’ na página, ao mesmo tempo que manteve certa distância, um desejo de desaparecer de modo que as imagens e as pessoas que fazem a história pudessem contá-la ao menos em parte.”


“Ao ler o que alguém escreve em uma revista ou em um jornal conhecido, estamos na verdade lendo dois autores. Existe a pessoa que tem algo a dizer e a que tem que fazer esse algo caber. Em sua maioria, as colunas ‘Points West’ tinham espaço limitado. Didion tinha menos de duas mil palavras para a coluna e tinha que usá-las para contar o que viu, sentiu, pensou, o que significa que às vezes ela usava o didatismo como ferramenta. E até mesmo nessas condições ela conseguia reparar alguma injustiça ideológica no próprio pensamento, sem dar as costas para o mistério.”


Presentes no prefácio do livro de ensaios “Vou te dizer o que penso” (HarperCollins Brasil, 2023), de Joan Didion, escrito por Hilton Als e traduzido por Mariana Delfini, páginas 15, 19, 21-22, 23, 15, 09, 20, 11-12, 26-27 e 10, respectivamente.

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