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Cinco poemas e três passagens de Elieser Cesar no livro Os cadernos de Fernando Infante

Elieser Cesar

Considerações sobre a rua K e sua gente
Elieser Cesar

Acordar é andar sempre sobre os mesmos passos
e não conhecer parte alguma.
A rua é escura como os homens.
Acaso sabem, os homens, por onde andam
a estrela que se dividiu
e o grito que se projetou em cada peito?

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Tempo das pedras
Elieser Cesar

Preparemos a resposta para o tempo que virá.
A dureza atual é iniciação; ensaio.
O mundo sangra
como uma veia aberta para a eternidade.
Já exibe, o tempo dos rudes,
seus contornos de pedra.
Pouco sobrará da nossa pureza.
Preparemos, já, nossa resposta,
pois o tempo dos brutos,
mesmo rude, admite revolta:
semente de semente
para outra semente;
adubo, trato para a terra.
Seco e desolado,
o tempo dos rudes se aproxima.

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Morte do pai
Elieser Cesar

Nesse momento a vida
                   (contrariada)
à morte se entrelaça.
Milhares morrem, outros
                           (cansados),
refazem a jornada.
O sol se põe e de manhã
                              renasce,
cinza das cinzas
de sua escura face.

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O último trem para o lago azul já partiu
Elieser Cesar

Não construí o amor. Trilhei equívocos.
Como uma sombra no escuro, ignorei-me perdido
e me perdi.
Vivi certezas, vaguei esperas: o amor, não construí.
Não construí o amor: persisto a busca
(um sinal débil, talvez)
na geometria das estrelas distantes.

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Canção de abril
Elieser Cesar

Pertenço à casa dos sérios
dos que não tiveram infâncias
dos que não choraram, nem riram;
casa dos sérios.
Pertenço à casa dos febris, dos pusilânimes
dos pálidos que não tiveram pernas
para correr do medo de não terem pernas
para correr do medo.
Pertenço à casa das sombras
onde só moraram aqueles
que não possuíram espelhos
e não se viram homens,
mas hienas e onças,
duplamente fera.
Pertenço à casa
(oh, porque logo a esta fui pertencer?)
dos que estavam ausentes
quando as ninfas chegaram
e pintaram o arco-íris,
distribuíram as flores
e romperam o silêncio e a solidão
                                          com flautas.
(E tampouco se fizeram presentes
quando as ninfas partiram
pintando o arco-íris,
distribuindo as flores
e rompendo o silêncio e a solidão
                                          com flautas).
Pertenço à casa dos que retrocederam
após os primeiros passos da partida.
Pertenço à casa partida.

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“O amor é mais um modo de enganar os dias
e adiar o confronto com nós mesmos.
(...)
Tive certezas e morri com todas elas.
Mas a vida, cavalguei com incertezas.
Vou além de mim e não encontro nada.”


“Não sei viver sozinho.
Nem comigo mesmo estou sozinho.
Sou tão estranho a mim mesmo,
como o homem que sou
é estranho ao homem que planejei ser.”


“Fico parado como as árvores
e como as árvores estou em todo canto.
Em toda árvore está a mesma árvore
e na maçã mordida,
o fruto que não será plantado.
Também a vida em que morri na vida
está na morte em que vivi na morte.

Os homens seguem seus caminhos
e o caminho é único.
Os passos não fazem o caminho
e o caminho não desenha os passos.
Os passos definem-se nos caminhos
e o caminho justifica-se nos passos.”


Presentes no livro de poemas “Os cadernos de Fernando Infante” (EGBA, 1997), de Elieser Cesar, páginas 33, 56, 44, 28 e 15-16, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Vida do morto” (p. 58-59), “Antes da queda” (p. 64) e “A canção do irmão de Nínive” (p. 54-55), presentes na mesma obra.

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