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Oito passagens da coletânea de contos “Soteropolitanos”, organizada por Matheus Peleteiro

 
 

“(...) ela nunca procurou saber se a Mãe mentia ou dizia a verdade apenas pensava que a verdade é essa coisa que conforme é dita se muda e desveste e se torna uma boneca russa de verdades onde dentro de cada uma há outra” [por Hosanna Almeida]


“Ouvi dizer que você é sobrinho de Geraldo.
Parte de pai.
Lembra um pouco. A cabeça redonda.
Ele era mais alto.
E mais classudo.
Quer um copo?
Eu era louca por seu tio.
Desgraçado sortudo.
Ele também era louco por mim.
Tinha motivo.
Eu morro de saudades da Geraldina.
Que Geraldina?
Como era conhecida a pirocona dele.
Eu nunca ouvi falar da Geraldina.
Sabia que ele gostava de tocar sax enquanto eu mamava a Geraldina?
Eu não toco sax. Mas posso te apresentar a Bonete.
Então a morena inclinou o corpo e agarrou meu pau sobre a calça. Apalpou. Eu tomei um gole da Coca. Depois largou.
Aliás, você não parece nada com seu tio.
Se você parar pra pensar, a Bonete é sobrinha da Geraldina.
Acontece que eu tô com fome e a Geraldina enchia o meu prato.” [Paulo Bono]


“(...) Jaiminho consegue um emprego na empresa de um parente, onde fez uma carreira absolutamente insignificante no setor financeiro, movida a bajulação aos chefes, fofocas para prejudicar os colegas, pequenos golpes com fornecedores e uma mediocridade discreta, porém consistente, que se refletia em todos os campos da sua vida. Seu casamento, sua família, seus filhos, os filmes a que assistia, as músicas que escutava, as ideias que passavam pela sua cabeça, tudo era ordinário, sem imaginação e sem graça. Se a vida real fosse um filme, Jaime seria aquele capanga do vilão que morre no primeiro tiroteio, o pedestre que atravessa a rua por trás de algum coadjuvante ou aquele sujeito que sai do elevador quando o protagonista entra (...) Os anos passavam e ele ia empurrando a vida com uma barriga cada vez maior, sempre acumulando raiva, rancor e frustração. Disfarçava seu caráter mesquinho, sua ignorância, falta de talento e seus azedumes em geral sob a cantada e decantada cordialidade brasileira, aquela que camufla os instintos e práticas mais vis sob uma casquinha de civilidade que permite que o indivíduo sobreviva na sociedade e seja, muitas vezes, até visto como alguém respeitável.” [Victor Mascarenhas]


“(...) Ele não achava que o Centro Histórico ia passar por toda aquela reforma, e que a sua simples casa no Santo Antônio Além do Carmo, ia virar point de turista rico. Me vendeu por um preço menor, mas ainda justo e, se duvidar, um pouco caro. Tempos depois, eu, cansada de trabalhar para os outros, aos poucos montei meu próprio negócio. No início era só nos finais de semana, nas minhas folgas. Sábado era o mocotó e domingo a feijoada. Parecia que não ia dar certo... Lembro de um dia que não vendi um prato de feijão que fosse o dia todo. Acendi uma vela para o meu Santo Antônio e rezei. Naquele dia ele me deu a intuição de distribuir o caldeirão todo pra todos os mendigos do centro. Resolvi dar não só para os moradores de rua, mas pra os vizinhos também. E aí, na outra semana, já tinha uma fila aqui pra pegar o feijão. Eu dei para os mendigos, e vendi a um preço camarada para os vizinhos. E o boca a boca foi se fazendo, até que todo mundo queria o feijão da Carmelita (...) Por isso, até hoje, todo ano, eu dou a minha feijoada de Santo Antônio. Eu, diferente de você, agradeço por tudo de bom que me foi dado.” [Amós Heber]


“(...) Desde que Donizete virou chefe, faz uma semana já, o coitado só arranja problema pro lado dele. Segunda passada foi o cano que estourou dentro do escritório. Molhou tudo, perdeu uma documentação toda importante lá que seu Afonso guardava no arquivo. Aí, terça o forno quase botou fogo na padaria inteira. Te juro! Não. Numa hora dessas, minha filha? O coelho é que vai assumir. Sobrou pro gerente, é claro, pra Donizete. Pois é. Espere, que tem mais: quarta de manhã, a gente ainda com remela na cara, este homem, menina, tomou um tombo, mas um tombo! Bem na hora que ele tinha chamado a equipe pro escritório. Falando, falando, porque ia mudar a escala do fim de semana, porque tal e berebebê. Nisso ele senta na cadeira e pã! O encosto quebra. Quando eu vi, tava ele virado com os dois cambitos pra cima, naquele jeito: (voz roufenha) ô, véi, na moral, me ajuda aqui, véi, majudaqui! Todo estronchado. To. Do! E, pra piorar, no outro dia ele ainda me aparece com a tal da zica. Mancha vermelha na pele, olho inchado, coceira: zica mesmo. Nunca mais tinha visto. Foi aí que o converse começou, sexta-feira. Quem me falou foi Jacinta, mas quem espalhou a história da mandinga eu acho que foi Leidiane, que aquilo não presta, é intriguenta de marca maior e ai de quem cai na dela.” [Breno Fernandes]


“ao contrário das grandes histórias que esperava, encontrou no diário de helena divagações, textos falando sobre se sentir vazia, a dificuldade de se pôr no mundo e como as palavras lhe pareciam distantes de valor e sentido, quando se via traduzindo as juras de amor e os cantos de saudade dos seus vizinhos em palavras desenhadas, modificando as ordens e conjugações para soarem melhor, se via diante da grande farsa que era. (...) sabia nada do amor, da saudade e das grandes coisas da vida. sentia-se mais distante ao falar de sua forma polida e formal perante seus familiares que falavam de forma chula e mal pensada. não se sentia superior, apenas estrangeira, longe do amor e da saudade que lhe mostravam de forma torta e sem rima. (...) o seu silêncio era resultado de um amor pelas palavras, por acreditar que falar e escrever bonito a levaria longe e lhe faria entendedora do mundo e de si, mas quanto mais conhecia as palavras mais se sentia distante de tudo.” [Laize Ricarte]


“Deve haver uma razão para o sumiço das aves, penso. Ando obcecada em dar sentido às coisas. Invento uma lógica improvável para os acontecimentos. E é possível que seja eu a descobrir a cura, de tanto que a espero. Avisto ao longe um sanhaço cinzento com ares de não vou lá. Olho para ele, aceno. Sinto que tem receio. Quem sou eu para duvidar do medo? Eu que não consigo entender um sentimento.” [Kátia Borges]


“Lembrei da nossa primeira semana, quando decidimos fazer ‘date’ todos os dias. A gente nem tinha muita intimidade ainda e eu fui o caminho inteiro cantando alto ‘O patrão nosso de cada dia’, enquanto gargalhava sobre a história maluca de ter usado escondido TODOS os cremes do banheiro da minha chefe numa social na casa dela, enquanto disfarçava o choro quando ele me disse que meus olhos eram lindos porque eram abismos de dor. Quando bati a porta do carro dele pra entrar em casa, ele me disse pela metade da janela: ‘ei, você é tão intenso que, se houvesse dois, explodia’.” [Murilo Melo]



Presentes na coletânea de contos “Soteropolitanos” (2020), organizada por Matheus Peleteiro, páginas 120 [por Hosanna Almeida], 54 [Paulo Bono], 87-88 [Victor Mascarenhas], 29 [Amós Heber], 23 [Breno Fernandes], 103 [Laize Ricarte], 14 [Kátia Borges] e 93-94 [Murilo Melo], respectivamente.


Gostei dos contos:

1) “O sonho da Nossa Senhora”, de Amós Heber
2) “Meu tio Geraldo”, de Paulo Bono
3) “Um cidadão de bem”, de Victor Mascarenhas
4) “O casamento do astronauta”, de Murilo Melo
5) “O sal da terra”, de Breno Fernandes
6) “Helena não fala”, de Laize Ricarte
7) “Desde que começamos a contar os mortos”, de Kátia Borges
8) “Dorinha chanceler”, de Hosanna Almeida
9) “Clínica do povo”, de Achel Tinoco
10) “À espera”, de Clarissa Macedo

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