Pular para o conteúdo principal

Oito passagens de Gustavo Felicíssimo no livro-poema Oratório das águas

Gustavo Felicíssimo (foto daqui)


“Por mais que o mar seja ilusão
ele sempre nos traduz
apesar de permanecer intraduzível
mesmo que o veja desde algum mirante
ou com o corpo estendido na praia
sem precisar qualquer palavra
pois palavra é aparência
e contemplá-lo é o que basta
Assim ele também nos contempla
com suas marés em eterno sobressalto
com seu mistério perpétuo
e as águas iluminadas da superfície
tão nem aí para mim ou para você
que me lê enquanto a vida passa”


“Estar no mar é a única forma
de fazer parte do mar
Dele me deixo ficar envolto
e me volto para as gaivotas
que contemplam o mergulho
Nada encontro além de água
porque a água é o mundo
enquanto consinto estar
Água é o que flui se flutuo
E se as ondas me levam
o meu ser, refluente, navega
— feito barco sem leme ou vela —
não à procura da estrela fatal
mas no caminho incerto do porto
onde o corpo, enfim, repousará”


“Choro como Ulisses ao avistar a sua Ítaca
quando vejo ao longe as luzes da minha terra
Choro, pois o amplo silêncio do mar é o que ouço
agora que a luz da noite vai encobrindo a do dia
Não faz mal que anoiteça tão lentamente
Me recolho quando se recolhem os pássaros
ainda que meus olhos não cansem de madrugar
junto ao mar, que por força maior, vai perdendo
o esmalte azul que a tarde pinta em aquarela
Amanhã, novamente a noite há de apagar o dia
novamente o mar há de perder o seu esmalte
outras pessoas hão de deixar suas pegadas
nesta mesma praia (que outra será) em que pisei
Apaga-se o dia como um dia nos apagaremos —
a poesia é o ato de entender esse mistério”


“Renasci sobre essas águas rútilas
em harmonia com a suavidade
onde a mansidão fez sua morada
onde o infinito se oferece à vista
e ao sossego das pálpebras cansadas
ao repouso dos pés calejados
— para os quais é feito um porto —
em compasso com o vento e o sol
com a chuva e as nuvens cinzentas
que devolvem a água para a água
feito uma ciranda aos nossos olhos”


“Os mistérios desses rios existem
para que nada se oculte em suas águas
E ainda que os firam de quase-morte
— ao enfrentar assombrosas procelas —
nada macula a imagem grandiosa
por onde a esperança navega
Seu natural é correr para o mar
mas eles correm é para dentro de mim
e eu emudeço — remanso que sou
Os deixo fluir em meus versos
e os aceito como a mim se revelaram”


“Elegeram-me as Naiades
para este canto ao qual me doei
E aqui nasceu esse Oratório
gota a gota, verso a verso
Líquido, necessita correr as planícies
para que seja mais que Nascente
para que seja um canto imaculado
além dos horizontes sonhados
Pois escrever é como percorrer
a linha d'água que se derrama
da ânfora infinita
onde moram as palavras
Escrever é oferecer-se ao mergulho
(que a tudo recompõe os sentidos)
e afundar-se no devir infindável
Por isso é necessário prosseguir”


“Sussurram e gemem entre as margens
e entre a solidão das nuvens
Essas águas de imemorial tranquilidade
avançam feito mistério primordial
(...)
E por serem tão puras quanta a inocência
há uma limpidez que cega e devassa
Há um horizonte tecido de azul
que somente essas águas alcançam
Há um existir por sobre a existência
que à própria existência ultrapassa”


“Uma alegria irrompe do meu âmago
como a nascente irrompendo a terra
se vejo das nuvens mais negras cair
a água límpida que a tudo fecunda
É um néctar que no silêncio estupendo
move as correntes e revolve nossa dor
quando vemos no infinito reflorescer
o jardim adormecido do esplendor
É uma glória e como tal não tem forma
esse cortejo luminoso que emana do céu
essas águas caindo como se por milagre
A solidão aqui é um poço de auroras
que nos transporta — uma vez mais —
às profundezas do que chamam felicidade”


Presentes no livro-poema “Oratório das águas” (Mondrongo, 2ª edição, 2021), de Gustavo Felicíssimo, páginas 60, 55, 61, 47, 40, 33, 28 e 31, respectivamente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez poemas de Carlos Drummond de Andrade no livro A rosa do povo

Consolo na praia Carlos Drummond de Andrade Vamos, não chores... A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour ? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas. Estás nu na areia, no vento... Dorme, meu filho. -------- Desfile Carlos Drummond de Andrade O rosto no travesseiro, escuto o tempo fluindo no mais completo silêncio. Como remédio entornado em camisa de doente; como dedo na penugem de braço de namorada; como vento no cabelo, fluindo: fiquei mais moço. Já não tenho cicatriz. Vejo-me noutra cidade. Sem mar nem derivativo, o corpo era bem pequeno para tanta