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Oito passagens de Pawlo Cidade no romance Rio das Almas

Pawlo Cidade (foto daqui)


“(...) Ao contrário do que se apregoava, os juma não possuíam a ferocidade dos aimoré, nem a sabedoria dos anambé, eram mansos e queriam apenas proteger o seu território e sua retidão. (...) Não queriam ser escravos, nem tampouco ajudar a destruir tudo em que eles criam. (...) A grande expedição punitiva de Teixo Santos surpreendeu os juma no Vale de Soraque, embaixo de chuva. Experiente e taciturno, o loco-tenente emboscou os índios dormindo. (...) Milhares de corpos de índios cobriram as águas, que nem os troncos ceifados das florestas e jogados no rio (...) Um tapete sem fim de corpos aglomerados e estripados, sem contrição, pela erva-daninha dos portugueses. (...) No final de toda aquela mortandade, corriqueira naqueles abrasivos tempos de extermínio (...) o ‘estripador de salteadores’ deixou, por puro deleite (...) apenas um grupo vivo (...) para que pudesse contar às demais aldeias o destino daqueles que se opunham ao trabalho forçado e às palavras dos padres da Companhia de Jesus. (...) rio Grande, depois daquele tenebroso dia, passou a ser chamado de Rio das Almas, atraindo os primeiros moradores. O morticínio indígena, chamado de ‘A batalha do vale’ pelos colonos, e de ‘O martírio dos juma’ pelos cronistas, desapareceu dos livros de história. Deocleciano Pimenta argumenta que a mentira que contam sobre os juma foi apenas um pretexto para que os ingleses, aliados do Brasil no advento da industrialização, pudessem, anos mais tarde, instalar a ferrovia e dominar toda a extração dos minérios sem a interferência e aperreação dos índios.”


“(...) Um dia, Tonho Deveras criou amizade com o boi Zulu. Nos raros intervalos em que parava para descansar, fumar ou jogar conversa fora com os filhos, dedicou seus momentos de descanso a dialogar com o bicho. (...) Foi Zulu quem argumentou, ao observar todo o trabalho dos magarefes, que as reses deveriam ser introduzidas pela mangueira que se bifurcava para um e outro lado. Usar aguilhões, aquelas afiadas lâminas presas às pontas de cabos, para forçar a entrada dos animais era muita crueldade. Bastava dar a ordem gritando: ‘Vai, boi!’ e os bois iriam, sem dificuldade, para o abatedouro. Zulu mostrou o ponto exato em que deveria ser dado o golpe nos bichos. Disse que o único que fazia aquela ação com precisão era o lendário Paulada, temido e, ao mesmo tempo, adorado pela boiada. Seu golpe certeiro impedia que fossem golpeados duas, três e até cinco vezes antes de morrer. ‘Bastava de tanto sofrimento’. (...) Euclides Viriato perguntou ao magarefe se ele não queria tirar umas férias. Enfurecido, saiu em defesa de Zulu e de todas as demais reses, bradando para que todos os outros magarefes pudessem ouvir que os animais, suspensos nos guindastes, ainda chegavam vivos quando os magarefes esfolavam e esquartejavam os bichos. Ele mesmo ouviu o pedido de socorro de uma vaca quando ele tentou desossa-la. ‘Me senti um assassino!’ — bradou ele com os olhos lacrimejantes. Euclides Viriato replicou com veemência: ‘Você é um magarefe! Este é o seu trabalho!’”.


“Francisco Lino, no limiar de sua melhor idade, um dia acordou com o mastro erguido, pronto para pôr a vela ao vento. Era um mastaréu de causar inveja a qualquer mancebo de Rio das Almas. Sentiu que aquela era a hora de pôr o motor de corpos cavernosos para navegar em águas profundas. Um feito inusitado para um homem que acabara de completar setenta e cinco anos. Maria Judite coava o café quando ele entrou afobado no puxadinho que servia de cozinha, gritando pela mulher. Sem perda de tempo, quis reviver os tempos de juventude ali mesmo, em meio ao cheiro do café e das broas de milho que assavam no forno, acabando de uma vez por todas com um jejum de quase vinte anos, quando ‘deixou de ser cavalo para ser égua’ (...) Se tivesse dado ouvidos à Maria Judite e procurado o médico quando as primeiras manchas vermelhas cobriam toda a glande e prepúcio (...) talvez não precisasse passar pela vergonha de não poder mais ser quem sempre fora nos tempos da Casa de Matilde. Francisco, ou como chamavam as meninas de Matilde, ‘Chico Rola’, orgulhava-se de dar conta de meia dúzia de mulheres por noite no bordel (...) ‘Agora sou um homem de pau morto, doutor. Minha vida acabou!’ (...) Entretanto, a natureza, por si só, deu a resposta e trouxe Chico Rola de volta à vida, a sua masculinidade, naquela semana de tantos acontecimentos no povoado. (...) Maria Judite, por sua vez, não se fez de rogada, atendeu ao desejo do marido ali mesmo, no chão duro de terra batida, ao lado do fogão a lenha, o que depois lhe deixou com uma tremenda dor nas costas (...) depois de três horas, as pernas sambando e a bunda pinicando, ainda permanecia com o mastro erguido. Mal se deu conta dos estalos engraçados que vinham de sua cintura, à medida que saía e entrava em sua companheira. Maria Judite se levantou reclamando, as coxas assadas (...) e o estojo ardendo que nem pimenta mexicana (...) correu para o banheiro e se debruçou sobre uma bacia de água morna, com folhas de malva rosa (...) Chico Rola andava flutuando, leve, em paz com ele mesmo. Só depois que se abancou na poltrona da sala, ainda com as calças arriadas (...) foi que percebeu que o mastro ainda continuava erguido. Tão viril quanto acordara. (...) — Maria Judite! — gritou outra vez”.


“(...) Quando o odor de enxofre chegou à superfície, os trabalhadores (...) prenderam a respiração com a própria camisa, tentando minimizar aquele cheiro horrível de ovo podre. Nem as mulas suportaram. (...) O cheiro foi potencializado com os redemoinhos que se formaram em todo o Vale. Ao invés de subir e se dissipar, o enxofre desceu misturado ao vento até o Vale dos Absurdos e se fundiu na poeira fina e vermelha da fazenda dos Santos. (...) ganhou força, formando uma nuvem enorme e ameaçadora que cobriu todo o céu de Rio das Almas. (...) o cheiro de enxofre ficou por muitas horas em todo lugar. Aquele odor insuportável de ovo podre ficou impregnado nas roupas do varal, nas paredes das casas, nos bancos da praça do Chafariz, no pelo dos cachorros, nas penugens das aves e no couro dos bois e porcos, nas calças e vestidos das pessoas e até mesmo no hálito de quem abria a boca. (...) as crianças começaram a sentir fortes dores de cabeça. (...) as mulheres começaram a ficar enjoadas, com ânsia de vômito, provocando uma náusea contínua que foi se ampliando. Os animais corriam de um lado a outro pelas ruas e becos,nos quintas e dentro das casas, assaz eufóricos, em um estado de felicidade tão exacerbada que pareciam alucinados (...) O padre Antão, ainda indignado com o trabalho que teve com os fiéis para limpar o templo, comentou que o fedor nada mais era que ‘o peido do cão’. No dia seguinte, o povoado inteiro amanheceu com a certeza de que o diabo havia cagado na mina.”

Pawlo Cidade e os seus romances.
Leia trechos do outro aqui

“Um dia, Euclides propôs um concurso inusitado. Queria saber qual dos mancebos ali presentes (...) conseguiriam bater mais bronhas que ele. (...) O único que achou esquisito um bando de homens mexendo no mastaréu, um na frente do outro, foi Deocleciano. Ele só topou porque ficou sabendo que o prêmio seria uma noite com a prostituta mais cara do bordel, Pombinha, apelido carinhoso que Deocleciano espalhou pelo bordel e rapidamente a órfã foi assim batizada. (...) Euclides (...) sagrou-se vencedor no concurso, realizando impressionantes dezessete ejaculações. Na última já não aguentava mais segurar o pinto todo esfolado, quase em carne viva. Uma cena bizarra e, ao mesmo tempo, asquerosa. Todavia, o que mais chamou a atenção de Deocleciano foi o fato de Euclides não tirar os olhos do mastro de Chico Rola enquanto disputava a competição.”


“— Se todos aqui não tivessem os pecados mais vis, realizando as coisas mais inomináveis, acreditam mesmo que ainda estaríamos aqui, neste lugar, discutindo sobre a morte? Claro que não! Deus já teria queimado esta terra, como fez com Sodoma e Gomorra. Todos nós temos segredos que se fossem aqui revelados, cairia um raio do céu e fulminaria cada um de nós! Deus proibiu a morte de estar entre nós! Este é o nosso castigo. Ele quer que vivamos até apodrecer! (...) Se vocês ainda não acreditam que sou a prova viva de que a morte nos abandonou, vejam o pobre Jacinto, acamado, dependente dos outros, com aquela doença sem cura há mais de dez anos. Vocês acham que ele não quer morrer? Perguntem a ele. Só que ele não pode. A morte foi aniquilada de Rio das Almas! Perguntem a Céo! (...) Ela foi testemunha viva das mais de mil (...) tentativas frustradas de acabar com a minha própria vida. (...)
— Suicídio é pecado — reafirmou Euclides Viriato, firme.
— Eu não quero morrer! — Maria Amélia sacudiu a cabeça.
— Nem eu — disse Francisco alisando a barba comprida até o peito.
— Mas eu quero morrer! Todos vocês aqui sabem disso há vinte anos.”


“(...) Dona Santaninha dos Santos cedera ao desejo desvairado e esdrúxulo do marido de fazê-la se esticar até ficar de sua estatura, para que os filhos, quando nascessem, tivessem o mesmo tamanho dos pais. (...) Todas as manhãs, antes mesmo do sol cobrir todo o Vale dos Absurdos, Jairo Santos deitava a mulher sobre o ‘estirador’, um instrumento que inventou para alongar a estatura do corpo, embora um aparelho similar tenha estado em uso durante toda a Idade Média, sobretudo por padres inquisidores que o utilizavam para extrair confissões e que ficara conhecido com a alcunha de ‘cavalete’. O objeto retangular tinha a aparência de uma cama de madeira, com um rolete em cada extremidade, que girava sobre seu próprio eixo com ajuda de polias e alavancas. Dona Santaninha era amarrada pelos pulsos no rolete acima de sua cabeça e pelos calcanhares no rolete abaixo de seus pés. Jairo Santos girava lentamente uma manivela que acionava o mecanismo que ia aumentando a tensão nas cordas. Ele queria alongar as juntas de Dona Santaninha e fazê-la ficar do seu tamanho. De tanto esticar as fibras musculares de Dona Santaninha, ela ficou sem conseguir dobrar os pés e as mãos. A dor era tão lancinante que Jairo colocava um pedaço de jaqueira entre os dentes para ela suportar a ‘esticadura’. O som das cartilagens se rasgando ou os ossos quebrando era horrível. ‘É tudo por amor’, dizia Jairo, com a boca cheia de saliva e o coração palpitando que nem burro desenfreado.”


“Maria Eunice e Deocleciano (...) se conheceram na passagem do grupo folclórico mais tradicional do povoado, os bantus, em plena Festa da Confraternização Universal, a mais importante comemoração do lugar. (...) Além do significado de um novo recomeço a cada ano, a data também marcava a chegada dos primeiros povoadores e da fundação do povoado. A festa tinha início às 4h da manhã, com rojões, atrás da Estação Ferroviária, quando o mais velho ancião de Rio das Almas acendia o pavio. A banda de música, formada por cinco pífaros, dois tambores e um prato, liderada por Edson da Flauta, se encarregava de animar o povo desfilando pelas ruas do povoado. A bandinha tocava a mesma música a manhã inteira, sem perder o ritmo e a cadência. Os músicos ganhavam presentes e bebida da comunidade; os homens usavam máscaras de papel e cola e se vestiam de túnicas coloridas feitas com retalhos de panos e fitas furta-cor. (...) Eles saíam chamando os vizinhos para acompanhar o cortejo. Por onde passavam iam acordando o povo. (...) Em pouco tempo a festa parecia uma romaria e o povoado, em polvorosa satisfação, cantava em coro as músicas ligeiras puxadas por Edson da Flauta. Quem acompanhava também trazia búzios enormes que encontravam no Monte Marrom, onde se dizia que há milênios o mar havia chegado até ali; pá, enxada, panelas, latas se transformavam em instrumentos de percussão. Batiam, cada um no seu compasso, sem ritmo, tentando acompanhar o som dos pífaros e moviam-se desgraciosamente, como se estivessem desconjuntados, transformando cada gesto em uma dança divertida. (...) As máscaras, feitas de papelão e uma massa de papel picado embebido em água, coado e depois misturado com cola, vinagre e farinha de trigo, depois de secas eram forradas de fitas coloridas ou pintadas de azul e preto, branco e amarelo, ora cobertas de sisal desfiado ou até mesmo decoradas com cipós, foram batizadas de caretas. (...) Quem não gostava muito da aparência assustadora das caretas eram as crianças, que as confundiam com as histórias contadas por seus pais de bicho-papão, lobisomens, sacis, duendes e outros seres das matas. Muitos corriam para a alcova, escondiam-se embaixo de camas e armários e urinavam de medo.”


Presentes no romance “Rio das Almas” (Chiado Books, 2020), de Pawlo Cidade, páginas 218-220, 144-145, 83-85, 121-125, 136-137, 37, 22-23 e 105-107, respectivamente.

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