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Dez passagens de Pawlo Cidade no romance O povoado das onze mil virgens

Pawlo Cidade - foto daqui


          “Um dia, ao abrir a loja, Virgílio de Jesus deparou com várias prateleiras vazias. Pensou ter havido um grande roubo na joalheria. Quase entrou em desespero. Todavia, para sua surpresa, quando o mercador chegou, sorriu maravilhado. Disse para Virgílio que fecharia a loja, pois estava cansado do comércio e iria embora da capitania com a família. (...)
          — Mas o senhor não disse que fecharia a loja! — Contestou o outro.
          — Mudei de ideia! Cansei desta vida de joalheiro! Vou embora — Disse o mercador determinado.
          (...)
          Só acreditou mesmo que aquela situação era real quando foi dispensado pelo mercador, do mesmo jeito em que os açougueiros dispensavam as tripas de porco no mercado municipal. Seu semblante desabou. Aquele trabalho era o sustento de sua família. O pouco que recebia era o suficiente para sustentar os cinco filhos. Quem iria empregar um preto, beirando os quarenta anos, naquela sociedade que havia abolido a escravidão há pouco tempo?
          — Pode ir embora. Não preciso mais de você. — E estendeu um envelope branco. Dentro dele, uma Carta de Recomendação com os dizeres:
          A quem interessa possa.
          Este preto é bom de trabalho e honesto.
          Mas não sabe ler nem escrever.
          Entregou a carta para ele dizendo:
          — Esta carta pode te ajudar a encontrar um outro trabalho. Só faço isso porque é por você, hein! — Ironizou. — O tempo que você trabalhou aqui, são os tempos que eu te paguei. Portanto, não te devo nada. — E deu as costas para o outro.
          (...)
          Virgílio de Jesus ficou um tempo ali, parado, sem saber o que fazer. A única imagem que lhe abarrotava os pensamentos trazia sua mulher e seus cinco filhos abandonados, esquálidos, costelas à mostra, rostos comprimidos, olhos encovados, pernas e abdomens inchados, cada um com uma cuia na mão implorando por comida.”


          “Dona Janina da Ressurreição dos Últimos Dias se sentou no caixão meio zonza, sem saber direito onde estava. A primeira coisa que disse quando voltou dos mortos foi:
          — Estou com sede! Quem pode me trazer um pouco d’água?
          A porta ficou pequena para o número de apavorados que tentou passar por ela. Labão, João e Demas ficaram entalados na janela, presos às nádegas da Professora de Canto. (...) A beata Maria do Rosário quase foi pisoteada pelos mais jovens que queriam a qualquer preço fugir daquela assombração. Margarida e a lavadeira fugiram pela cozinha aos gritos de pedido de socorro. O Padre Sizínio congelou, frente ao caixão, com os olhos estatelados para a morta, que agora estava viva. Isaura Cornejo se jogou na parede, por trás das cadeiras, feito lagartixa, bem desorientada e exageradamente ofegante. Quase teve uma parada cardíaca.
          Seu Ananias (...) ao invés de berrar, apavorado, como todos os outros, começou a rir. Foi uma gargalhada alta e demorada. Dona Janina, ao se dar conta que a causa de todo aquele deus-nos-acuda era ela, e que estava assentada dentro do seu próprio caixão, deu um pulo espetacular, tal qual salto com vara, e foi parar no meio da rua. Dona Ruth, maravilhada com a ressurreição da amiga, batia palmas.”


          “(...) Doutor Bandeirante foi um dos primeiros passageiros do “Mamãe me leva” quando o coronel inaugurou a linha Povoado-Vila Bela. O médico criara até uma versão meio engraçada para o apelido do ônibus.
          Ele contava que todas as tardes uma mulher saía correndo de casa para pegar o bonde que levava ao Campo Grande, no Rio de Janeiro. Ela deixava o filho mais novo aos cuidados do menino mais velho. Quando saía de casa, o mais novo gritava:
          — Mamãe, me leva! — E ela dizia não.
          O menino repetia incansavelmente:
          — Mamãe, me leva! — E ela não levava.
          — Mamãe, me leva!, e nada.
          Um dia, furioso, quando ela saiu, o menino gritou bem alto:
          — Mamãe, me leva, senão eu digo para meu pai que a senhora tem um amante!”


          “— Demas, essa é a professora de piano do meu filho. Convidei ela para ser a Diretora de Cultura de Vila Bela, o que acha? — Questionou o Prefeito.
          (...)
          — Você não é a esposa do Presidente da Câmara de Vereadores?
          — Sim! Geraldinho é meu marido. — Novo sorriso. Desta vez, mais longo e confiante.
          — Parabéns! — Retorquiu.
          O Prefeito olhou de esguelha para o Administrador do Povoado como que tivesse percebido um certo ciúme do outro naquela indicação. De fato, Demas já havia dito que queria estar mais perto do governo. De preferência, ao lado do Chefe do Executivo. Só que no quesito indicação política, Demas não conseguia seduzir o Prefeito. O chefe sempre saía com a frase:
          — Você é minha boca e meus olhos no povoado!
          Ele saiu da sala revoltado, dizendo para si mesmo, mentalmente, que havia sido traído pelo beijoqueiro.”


“(...) Eles entraram na casa dele sem pedir autorização, derrubando tudo que encontraram pelo caminho. Virgílio foi abatido e enlaçado como um vitelo, na frente dos filhos. Sua mulher ainda tentou impedir, mas foi covardemente agredida pelos militares. A mulher e o filho mais velho do mercador acusaram-no de ter roubado toda a mercadoria (...) Não houve julgamento. Virgílio foi encarcerado sem o direito de defesa. (...) no cárcere, apanhou dia e noite. Foi torturado, forçado a confessar um crime que não havia cometido. Contou a história do patrão e do que (...) havia feito com a mercadoria. Falou ainda do mapa. Os Homens do Mato riram, admirados daquela engenhosa desculpa. Quando perceberam que ele não confessaria, jogaram-no em um buraco, num despovoado da mata, onde os Homens do Mato costumavam eliminar certos presos. Ele permaneceu nu, com sede, frio e fome, durante três dias. (...) Na manhã do quarto dia, encontraram ele tremendo. Tiraram-no do buraco e trouxeram novamente para a cadeia. (...) Ela o encontrou meses depois, no meio de outros detentos, encarcerados injustamente. Jurou que ajudaria o esposo e que não desistiria enquanto não tirasse ele dali.”


Pawlo Cidade com o seu romance - foto daqui


          “— Se sua mãe não me deu um filho homem, você me dará!
          E arrastou-a para o quarto para cometer o incesto. O choro e os berros desesperados de Úrsula não impediram o pai de cometer o pecado. Ló quebrou os votos de castidade de Úrsula e descumpriu a promessa de Raquel. Não satisfeito, fez o mesmo com cada uma das irmãs, dia após dia, durante o período em que Raquel se recuperava de uma malária.
          Quando a esposa melhorou, percebeu nos semblantes carregados e abatidos de suas filhas que algo de errado havia sucedido. Nenhuma delas quis contar o que ocorreu. Porém, pressionada pela mãe, a mais nova relatou todo o acontecido. Raquel tomou um susto tão grande que entrou em convulsão, perdeu a voz, tremeu três dias e três noites até desfalecer. Ao acordar, no quarto dia, não sabia mais quem era. Passava os dias sentada na varanda (...) À noite, corria pela floresta atrás de um fogo-fátuo, que ela dizia tê-la chamado. (...) Dona Raquel nunca mais voltou para casa. Depois do afastamento da mãe, o abuso do pai sobre as filhas continuou por muitos dias.
          Arrebentada, abatida, esgotada, Úrsula reuniu todas as irmãs e juntas decidiram dar cabo da própria vida. Amarram-se umas às outras e pularam da centenária ponte de madeira (...) Todas morreram afogadas. Ao encontrar o corpo das filhas (...) rasgou as roupas, enlouqueceu e saiu correndo pela mata. Dizem que até hoje, quem passa pela mata escura em noite de lua cheia ouve os gritos do fazendeiro. (...) ele foi comido pelas bestas feras da floresta e as filhas foram enterradas no fundo da Sede da Fazenda.”


          “— E vai dar certo mesmo?
          — Claro que vai. O senhor contrata umas bandinhas locais, dá uma mixaria para cada uma, enfeita o povoado com bandeirolas, solta um monte de fogos, depois distribui um monte de cestas básicas na Rua das Putas Tristes, dizia o Administrador.
          — E ainda tem puta nessa rua? — Perguntou mostrando todos os dentes, como que estivesse interessado.
          — Só as velhas! — Riu. O Prefeito também.
          — Neste mesmo dia o senhor assina o decreto do feriado da padroeira. — Prosseguiu.
          — A ideia é boa. Mas o povo quer calçamento, saneamento, escola, posto de saúde funcionando... — Alertava o Prefeito.
          — A gente sabe disso. Mas se tem pão e circo, em época de eleição, engana qualquer cidadão! — Gargalhou. E acabou convencendo o chefe do executivo que, ao abrir as pernas por baixo da mesa, para se espreguiçar, chutou com o pé direito, involuntariamente, o joelho doente do Comprador. Demas — verdadeiro nome de batismo do Administrador do Povoado — fechou ligeiramente os olhos sentindo muita dor. O Prefeito se desculpou, mas já era tarde.”


“Tudo começou com a crise que assolou a economia e as pragas que destruíram os cafezais. Com a falta de dinheiro, os prostíbulos foram às mínguas. Todas as noites, as meretrizes sentavam-se na varanda do casarão, na esperança de que um abençoado cliente batesse a porta. Aquele ambiente se transformara na varanda das lamentações, no espaço do pranto e ranger de dentes. Uma dúzia de putas tristes chorava todas as noites. Aos poucos, elas foram partindo. A última a sair foi Rosa, a albina, a mulher de confiança do coronel Lameque (...) Quem passava pelas cercanias, e via aquele ambiente macambúzio, pesado, infeliz, chamava de Rua das Putas Tristes. E assim está até os dias de hoje.”


          “O mundo estava em guerra naquele ano de 1942. As forças nazistas alemãs de Adolf Hitler invadiram a Polônia, explodindo assim a Segunda Grande Guerra Mundial. Uma guerra que mobilizou mais de cem milhões de militares e já havia matado milhares e milhares de pessoas, especialmente, civis. Enquanto o maior e mais sinistro conflito mundial da história se desenrola em solo europeu, o Povoado das Onze Mil Virgens se perguntava se os cavalos encantados e selvagens, desprovidos de asas, de Seu Ananias, realmente haviam existido. (...) Na hora da entrada do Repórter Esso a dar as últimas notícias da guerra, [Dona Janina] fingia não ouvir o aparelho. Tinha receio de que um dia, aquele conflito distante pudesse chegar ao Brasil. (...) A Professora de Canto se dizia ressabiada de tudo que ouvia dos programas transmitidos pelas rádios.
          — Eles passam a imagem de um país muito certinho, harmonioso, indivisível e sem conflitos sociais. — Dizia.”


          “(...) Depois da morte do Mestre Virgílio, todos pensaram que a missão do Profeta havia sido cumprida e ele partiria logo. Porém, quando ele entrou no Clube dos Idosos naquela tarde, dona Isaura Cornejo deu de costas, tentando se arrastar pela parede, que nem caranguejo. O subdelegado acompanhou com os olhos a entrada silenciosa do andarilho, à procura da sua próxima vítima. (...) Dona Ruth e dona Janina se abraçaram, resfolegando. As pernas balançavam que nem gelatina no prato quando o Profeta as encarou. Isaura Cornejo suspirou aliviada. O Comprador de Almas (...) baixou a cabeça para não encarar Matusalém. O subdelegado continuou com os olhos compenetrados. Desejoso de um movimento mais agressivo do Profeta para que ele pudesse atuá-lo ali mesmo. (...) Antes de abrir a boca, Matusalém resolveu dar mais uma volta no salão. Dona Janina desfaleceu nos braços de dona Ruth, não se sabe se foi de alívio ou de desespero. (...)
          — (...) vocês, irmãos, ficarão nas trevas por um tempo. Não deixem que sejam surpreendidos pelo ladrão. Vocês todos são filhos do dia. — Voltou-se para dona Ruth — Não somos da noite, nem das trevas! — Ela fez o sinal da cruz três vezes seguida. (...) — Fiquem atentos e sóbrios. — Retornou ao padre Sizínio. – Pois os que se embriagam, embriagam-se de noite. — O padre engoliu em seco. A beata Maria do Rosário esticou um tímido sorriso no canto da boca. Tudo que se oculta, um dia se revela, pensou ela.”




Presentes no romance O povoado das onze mil virgens (Teatro Popular de Ilhéus, 2019), de Pawlo Cidade, páginas 54 a 56, 187-188, 148-149, 38-39, 57 a 59, 32-33, 37, 77-78, 110-111 e 119 a 121, respectivamente.

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