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Mostrando postagens de março, 2016

Seis passagens de Marina Colasanti no livro de contos O leopardo é um animal delicado

Marina Colasanti (foto daqui ) "Aos poucos, a camada de pintura branca que cobria a casa de Jeffrey entrou em entendimento definitivo com o sol e com a chuva, fundindo sua obediência a ambos numa única tonalidade cinzenta, que somente sob as calhas permitia-se escurecer. Começou a descascar. Enormes escamas quebradiças abriam-se feito conchas na velha superfície, entregando a madeira ao tempo, sem que pérola rolasse. (...) Crescia a grama ao redor, manchada aqui e acolá pelas lascas mais frágeis que em constante outono desprendiam-se das paredes e caíam volteando, enquanto na imobilidade do corpo de Jeffrey, outro movimento se processava. Vinda dos pés – ou seria da nuca? – a paralisia que já lhe havia tomado os membros rastejava por dentro, buscando alcançar-lhe o coração. (...) Na cidadezinha, todos se referiam a ele como se já estivesse morto. (...) E todas as manhãs, sua mulher o barbeava e lavava, mudando-o, ela mesma, da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, fa

Oito passagens de João Silvério Trevisan no livro Troços & destroços

João Silvério Trevisan (foto daqui ) "(...) Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é a solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz." "(...) havia as brincadeiras bem mais concretas. De encoxar, por exemplo. Ou meter. A mãe lavava roupa pra fora. Não sobrava dinheiro para as figurinhas. Quando então ele ganhou o álbum na escola, pra encher. Combinou com a molecada da vizinhança, porque gostava. Iam pro mato depois das aulas, ele curvado, a bunda de fora. Uma figurinha, só encoxar. Três figurinhas, põe a cabeça. Seis figurinhas, então podia pôr tudo. Mas olhava as figurinhas, antes de deixar. Pra ver se não tinha repetida ou fácil demais. Senão, não a

Sete passagens de Sérgio Sant'Anna no livro A senhorita Simpson

Sérgio Sant'Anna (foto daqui ) "(...) desconfio que não apenas eu, mas todos nós, nos sentimos inexistentes. Por isso é que é paradoxal o egocentrismo, no que Galileu estava certo, se é que entendem a relação. Então fabricamos acontecimentos e histórias para podermos narrá-los, uns aos outros, convencendo-nos reciprocamente de que existimos. E é assim que produzimos cada vez mais carma e acontecimentos, fazendo rolar a história maior da espécie, que talvez já devesse estar extinta, sem nenhum prejuízo para todas as outras espécies, diga-se de passagem." "– Como fazer literatura aqui? – ele disse, com um gesto largo e bonachão para a praça cheia de vadios, largando-me o braço. – Aqui, nesta paisagem sórdida. A não ser uma literatura também sórdida, nem mesmo proletária, com essa multidão de lumpens e pequenos criminosos. Falta o mistério (...) Aqui o sexo e a nudez são por demais escancarados, algo bruto, e a corrupção está no rosto das pessoas, os homens com

Mbira, uma música cinematográfica

Presente no álbum Civilização & Barbarye (2006), de Ramiro Musotto .

Nove passagens de Ana Cássia Rebelo no livro Ana de Amsterdam

Ana Cássia Rebelo (foto daqui ) "Aparece aos domingos para visitar os filhos. Volta e meia, tenta beijar-me. Diz ainda que me ama. Toca-me como se eu fosse uma prostituta. Roça as mãos no meu peito e no meu rabo. Aproveita os momentos em que a Dá está presente, mas distraída a olhar para a televisão ou entretida a alimentar o peixinho encarnado. Sabe que não gritarei para não a assustar. Quero poupá-la ao sofrimento e à minha miséria. São gestos que mal se notam, não deixam marcas visíveis, mas que ele executa com a intenção de me humilhar, de me paralisar, para mostrar que continua a ser meu dono. Peço-lhe para parar. 'Sei que queres...', diz-me com despeito. Eu nunca quis. À despedida, volta a olhar-me como que a avisar que sou um corpo que lhe pertence. Quando a porta se fecha e voltamos a ser só nós quatro, arregaço as mangas e mordo os braços até magoar. Tenho nojo do que fomos. Mas também tenho medo. Não é fácil a gente livrar-se do medo." "Pesa-me

Nove passagens de Raimundo Carrero no livro O senhor agora vai mudar de corpo

Raimundo Carrero (foto daqui ) "Começa a decidir que tudo isto, toda esta imensa contorção do Homem deve ser colocada no papel, escrita, para desvendar seu mundo interior, sua completa derrota, sua frágil, inquieta e tenebrosa condição humana. Está na hora de se despojar de todas as vaidades e honrarias, das manifestações exibicionistas de vitória, e de sucumbir diante do inevitável, do aterrador, do horroroso, misturando-se ao pó inquestionável da vida, das cinzas que são desmanchadas pelo vento." "(...) A manhã do Recife, lerda e lenta, é a manhã do Recife, apesar do sol quente. Permanece na ambulância, preocupado com o anúncio da dor feito pela sirene... O que não gosta deste mundo é da proclamação da dor, como se faz em todos os lugares e por qualquer motivo. Lamenta o excesso de exposição. Quando estará em condições de ver novamente os jardins, as ruas quebradas, as praças desta cidade? Quando menino, gostava de andar nas calçadas recolhendo frutos. Às veze

Seis passagens de Renato Russo no livro Só por hoje e para sempre

Renato Russo (foto daqui ) "O guitarrista da Legião Urbana é uma das pessoas mais admiráveis que já conheci. Além de grande generosidade de espírito, inteligência, coragem e sensibilidade, ele é um raro exemplo de beleza física aliada a sex appeal: belo, sensual e de personalidade marcante (raramente beleza vem acompanhada de inteligência e charme). Pois bem, não confundo trabalho com sentimentos de ordem afetiva e nunca tinha me deixado afetar com sua companhia, até que vim a saber que Fernanda, sua esposa, e empresária da Legião de 84 a 87, se ressentia comigo, por achar que eu estava interessado em seu marido. Na verdade nunca tinha pensado nisso, mas, assim que soube de seu medo, passei a perceber Dado com outros olhos e, embora nunca tenha levado meu interesse às vias de fato (só em pensamento), as fantasias começaram. (...) Ele era o motivo para me esforçar, levar meu trabalho em frente, ter ânimo quando estava desinteressado e força quando estava prestes a desistir. M

Sete passagens de Caio Fernando Abreu no livro de contos Os dragões não conhecem o paraíso

Caio Fernando Abreu (foto daqui ) "– Tu não avisou que vinha – ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-bem-vindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil. Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido - cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro. – A senhora não tem telefone – explicou. – Resolvi fazer uma surpresa. (...) Ela fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela. – Vim, mãe. Deu saudade. Riso rouco: – Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Q

Flica 2015 — Resumo oficial

Resumo da 5ª edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira , a Flica 2015 , que aconteceu de 14 a 18 de outubro, na charmosa cidade histórica de Cachoeira, recôncavo baiano, com realização da CALI e Icontent/Rede Bahia. O Governo do Estado da Bahia apresentou a Flica 2015, que teve o patrocínio da Oi e Coelba através do Fazcultura, Secretaria de Cultura, Secretaria da Fazenda, Governo da Bahia, Petrobras e Governo Federal, com apoio da Prefeitura Municipal de Cachoeira, Odebrecht, Caixa e Oi Futuro. Site oficial aqui Registro audiovisual: Create Produtora de Vídeo e Conteúdo Não consegue visualizar o player? Veja aqui

Sete passagens de Caio Fernando Abreu no livro de contos Morangos mofados

Caio Fernando Abreu (foto daqui ) "(...) não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma? Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia, ela para e pede, preciso tanto tanto tanto, cara, eles não me permitiram ser a coisa boa que eu era, eu então estendo o braço e ela fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e velha demais e completamente bêbada, eu não tinha estas marcas em volta dos olhos, eu não tinha estes vincos em torno da boca, eu não tinha este jeito de sapatão cansado, e eu repito que não, que nada, que ela está linda assim, desgrenhada e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho ao acaso o 'Noturno número dois em mi bemol' de Chopin, eu quero deixá-la assim, dormindo no escuro sobre este sofá amarelo, ao lado de papoulas quase murchas,