João Silvério Trevisan (foto daqui)
"(...) Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é a solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz."
"(...) havia as brincadeiras bem mais concretas. De encoxar, por exemplo. Ou meter. A mãe lavava roupa pra fora. Não sobrava dinheiro para as figurinhas. Quando então ele ganhou o álbum na escola, pra encher. Combinou com a molecada da vizinhança, porque gostava. Iam pro mato depois das aulas, ele curvado, a bunda de fora. Uma figurinha, só encoxar. Três figurinhas, põe a cabeça. Seis figurinhas, então podia pôr tudo. Mas olhava as figurinhas, antes de deixar. Pra ver se não tinha repetida ou fácil demais. Senão, não aceitava. A molecada formava fila detrás dele, figurinhas numa mão, pinto na outra, se esfregando para estar bem durinho quando a vez chegasse. As mães um belo dia descobriram, quer dizer, era exagerado aquele ajuntamento de moleque. Uma delas pegou o filho pelas orelhas, batendo com corda. Arrastou até a privada, baixou-lhe as calças, olhou a bunda. E depois, gritando por cima do muro: – Ô Clotilde, já olhei o meu e graças a Deus tudo certo. Agora vê se espia o cu do teu. Se tiver algum rasguinho, então toma cuidado. É viado na família."
"Foi um lento despertar, saído da caverna para a luz, ao som de uma quena indígena às cinco da manhã. Aquele dulcíssimo sopro despertava-o de um sonho de morte do qual se lembrava apenas que era preciso recomeçar. Mas também lhe soava vazia, essa peregrinação em busca do eterno começo. Como se houvesse sentido em principiar outra e outra vez, nascer do fundo da terra, de suas raízes e intestinos, para o mundo. Lembrava-se que tinha atravessado infernos no âmago da terra, para chegar à beira do precipício, bem no coração do perigo e do forno. Voltara a milhares de anos atrás, onde todos tinham começado, fazendo talvez a primeira grave pergunta: tudo isto para quê?"
"(...) o morto ficava para sempre condenado. À solidão, pensou ele. Para sempre desamparado. Vagando por entre uivos de dor e saudade, na escuridão da ausência do tempo, levado talvez pelo vento (que os mortos são leves) ou empurrado pela poeira do cosmos. Carregado para mundos estranhos, distante de tudo o que lhe fosse familiar. Sem poder protestar, sem poder se vingar da ingratidão dos vivos. Para sempre estranho movimentando-se no infinito obscuro."
"(...) O que leva um ser humano a se engalfinhar com outro ser humano? – pensou. Por que se torturam até a morte? Pensou na primeira pessoa: Por que me torturo até... Talvez não fossem demônios possuindo nós humanos mas tão-somente o tédio humano. Tudo se torna tedioso depois de se transformar em realidade quotidiana – inclua-se aí o desejo de matar. A pele se rasga, os ossos se quebram. Mas o que torna esse gesto corriqueiro é que não sou eu e sim um outro quem o sofre. A destruição não me atinge. Ao contrário, eu a imponho, eu sou dono dela. Talvez por isso os homens amem se massacrar entre si: para se sentirem vivos, matando."
"Era mesmo um espaço pequeno demais, pensou Lúcio. Muito reduzido para dois. Dois exatos homens, mais do que suficientes para compor certa unidade de sofreguidão com a qual só às vezes – bem poucas vezes – a vida se depara, em seu curso cego: o amor. (...) Não sabia por onde começar. Limpou a garganta. (...) Era preciso aceitar. Mas onde encontrar forças para engolir o inevitável horror de encerrar o curso de algo tão deslumbrante? Pensou o que estava prestes a ser decretado: o amor, a partir de agora, iria pertencer ao passado. Acabou. Isso era mesmo insuportável. Dilacerante. Não havia faz-de-conta. Ali na cama, a medida exata do dilaceramento podia ser apreendida pelos vários tons da sonora dor. Olhou mais. Saulo parecia uma estátua soluçante, movida pela incongruência da dor."
"(...) Por que seria revolucionário esse gesto naturalmente arbitrário de querer impor sua marca ao real? Fazer uma revolução para deixar rastros de nossa passagem? Marcas e rastros: onde, em quem? Seria então revolucionário cada um desses milhares de momentos de força em que lutamos uns contra os outros – para desse caldo de infinitas misturas e violências nascer a História? Revolução: sobrevivência. Revolução: continuidade da História. Às custas da morte. Devoração. O rastro revolucionário da História deixando marcas de sangue. Cadáveres nos caminhos da revolução. Não haveria revolução possível para os cadáveres, porque minha revolução é sua condição de ser cadáver. Minha vontade (continuidade) é a sua morte. E como crer em revolucionários? Revolucionário: assassino. Um novo bando de assassinos toma o poder: revolução."
"(...) Fazia frio, aquele frio necessário para que eu me aconchegasse a mim mesmo, a ninguém. Não queria senão o ato do aconchego – não ideia fixa, não amargura – apenas para dizer uma prece à minha maneira, em lugares onde a prece não podia existir. Era isso, quem sabe. Eu vivia um momento interior, por entre os prédios da cidade. Numa catacumba cheia de luz poluída, que não me interessava nem me dizia nada além do fato de encontrar-me numa catacumba, em ato de prece, com reverência, outra vez aquele mesmo sentimento infantil de estar metido numa coisa que de tão imensa perdia o significado de sua grandeza. Eu queria o improvável da minha vida vertido no dia-a-dia tão preciso dos barulhos, das mecanicidades, da irreverência, da planura absoluta."
Presentes nos livros de contos "Troços & destroços" (Record, 1997), de João Silvério Trevisan, páginas 114, 20-21, 95-96, 98, 104, 132, 109-110 e 33-34, respectivamente.
Seleta dos contos
01) Dois corpos que caem
02) Variações sobre um tema de Mozart
03) Crianças
04) No princípio, Cuzco
05) Altar de oferendas
06) Judite, Judite
07) Sobreviventes
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