Sérgio Sant'Anna (foto daqui)
"(...) desconfio que não apenas eu, mas todos nós, nos sentimos inexistentes. Por isso é que é paradoxal o egocentrismo, no que Galileu estava certo, se é que entendem a relação. Então fabricamos acontecimentos e histórias para podermos narrá-los, uns aos outros, convencendo-nos reciprocamente de que existimos. E é assim que produzimos cada vez mais carma e acontecimentos, fazendo rolar a história maior da espécie, que talvez já devesse estar extinta, sem nenhum prejuízo para todas as outras espécies, diga-se de passagem."
"– Como fazer literatura aqui? – ele disse, com um gesto largo e bonachão para a praça cheia de vadios, largando-me o braço. – Aqui, nesta paisagem sórdida. A não ser uma literatura também sórdida, nem mesmo proletária, com essa multidão de lumpens e pequenos criminosos. Falta o mistério (...) Aqui o sexo e a nudez são por demais escancarados, algo bruto, e a corrupção está no rosto das pessoas, os homens com seus bigodes, e sempre bicheiros nas histórias, nos filmes, vulgaridade. (...) Eu também não possuía pruridos ufanistas, neste ponto estávamos de acordo. Como orgulhar-me de alguma coisa lá de cima daquele viaduto, testemunhando a forma boçal como os motoristas dirigiam, como se ainda não houvéssemos superado o estágio da tração animal? (...) – Falta-nos uma civilização – eu disse isso pra ele –, e talvez já seja tarde demais para isso. (...) – Em algum ponto do caminho, talvez uma revolução houvesse resolvido. Não se constrói uma civilização sem guerras e revoluções; não se faz isso sem sangue."
"– Sabe o que eu acho idealista e furado na nossa posição? É que o mundo tem gente demais e as relações socioeconômicas se tornaram muito mais complexas para que ainda possamos aspirar a um doce, utópico e ingênuo anarquismo tribal. O máximo que vocês artistas podem fazer é colocar um pouco de farinha no discurso deles, para fazê-los engasgar. (...) – Tome cuidado, companheiro – retrucou um dos participantes daquele bucólico Conselho ao redor de uma fogueira. – Tome cuidado com a coerência do seu próprio discurso, que está sintático e sentencioso demais, para não dizer aristotélico. Daí para a lógica é um pequeno passo. (...) Piotr reagiu, ofendido: – A lógica que eu sempre usei era escorregadia como uma casca de banana colocada no caminho deles. (...) – Mas tome cuidado, companheiro, para você mesmo não escorregar nela."
"O homem ali sentado no banco, a maleta no colo, apoiando nas mãos o rosto com uma expressão fatigada. Uma das probabilidades é que haja perdido o trem e terá de aguardar outro por muitas horas ou mesmo todo um dia, pois percebe-se, pela modéstia da estação, que este é um ramal de província e secundário. E talvez existam poucas coisas que tornam um ser humano mais impotente e derrotado que a simples e longa espera. Pois nada se realiza que possa fazer existir o tempo e fluí-lo. E qualquer um que ali esteja, sozinho num banco de estação ferroviária, parecerá um retirante, ainda que sua aparência denote cuidados até um tempo recente."
"De volta à vida interior no meu cubículo. Existe algo de grandioso, solene e até belo na solidão, quando um homem, depois de ter tido o seu quinhão satisfatório de vida, resolve recolher-se a uma casa modesta e afastada, na montanha, para aí desfrutar da memória dos seus amores, seus sucessos e fracassos, os livros que ele não julga mais imperioso escrever, deixando as comportas abertas para uma vida mais contemplativa. Mas e a miserável solidão numa tarde de calor ali em frente ao viaduto, depois de um encontro de negócios fracassado? Os carros continuavam a passar com seu ruído infernal, literalmente, e eu não podia fechar as janelas ou as cortinas, porque não possuía um aparelho de ar-condicionado (...)"
"Os guarda-costas revistaram a prostituta com evidente prazer. Ao chegarem na parte de baixo tiveram uma surpresa. (...) – É um travesti – disse um deles, reaproximando-se do carro. – Quer que o fuzilemos? (...) O presidente refletiu gravemente e disse: – Não, deixe-o entrar. Vocês vão no banco da frente. Quem sobrar pega um ônibus. (...) Quem sobrou foi o assessor de imprensa. O presidente deu-lhe um bolo de notas para pagar o ônibus. Ou um táxi, se ele tivesse sorte. (...) Quando o carro arrancou, o assessor de imprensa encostava-se ao poste onde antes estacionara o travesti. A luz néon dava-lhe um ar pálido, quase cadavérico. Mariposas esvoaçavam mais acima, como pássaros da noite. Era bonito."
"Ele meditara também sobre as condições meteorológicas, olhando para o céu e concluindo que o tempo continuaria firme, o que significava que ele poderia passar a noite num dos bancos ou gramados do centro da cidade. Costumavam causar-lhe tédio, quando dormia na rua, as manhãs sem destino até a hora de pegar o serviço, procurando distrair-se olhando o mar e os aviões na ponta do Aterro, perto do aeroporto, ou frangos giratórios nos fornos envidraçados ou, nos cartazes de cinema, mulheres nuas e homens de ação. Mas este era um problema para amanhã e depois de amanhã, no máximo, porque no terceiro dia sairia o pagamento. Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível. A data de pagamento, porém, era um marco cronológico ao qual ele se apegava."
Presentes no livro de contos "A senhorita Simpson" (Companhia das Letras, 1989), de Sérgio Sant'Anna, páginas 86, 26-27, 18-19, 33, 53-54, 37, 14, 159 e 43, respectivamente.
Seleta de contos
01) Um discurso sobre o método
02) A mulher cobra
03) O homem sozinho numa estação ferroviária
04) Historieta numa República
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