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Nove passagens de Ana Cássia Rebelo no livro Ana de Amsterdam

Ana Cássia Rebelo (foto daqui)


"Aparece aos domingos para visitar os filhos. Volta e meia, tenta beijar-me. Diz ainda que me ama. Toca-me como se eu fosse uma prostituta. Roça as mãos no meu peito e no meu rabo. Aproveita os momentos em que a Dá está presente, mas distraída a olhar para a televisão ou entretida a alimentar o peixinho encarnado. Sabe que não gritarei para não a assustar. Quero poupá-la ao sofrimento e à minha miséria. São gestos que mal se notam, não deixam marcas visíveis, mas que ele executa com a intenção de me humilhar, de me paralisar, para mostrar que continua a ser meu dono. Peço-lhe para parar. 'Sei que queres...', diz-me com despeito. Eu nunca quis. À despedida, volta a olhar-me como que a avisar que sou um corpo que lhe pertence. Quando a porta se fecha e voltamos a ser só nós quatro, arregaço as mangas e mordo os braços até magoar. Tenho nojo do que fomos. Mas também tenho medo. Não é fácil a gente livrar-se do medo."


"Pesa-me a rotina dos dias iguais. É como se os dias da minha vida tivessem sido produzidos em massa. Em fábricas assépticas, reluzentes. Todos com o mesmo peso, a mesma forma, o mesmo rótulo, as mesmas cores pardacentas. Inodoros, com um sabor indefinido, aguado. Pouco apetecíveis. Dias iguais. Sempre iguais. Iguais como os pacotes de leite, de farinha, de açúcar, que se enfileiram, aprumados, nas prateleiras dos supermercados. Pesam-me os silêncios, as ausências. Às vezes, tenho a sensação de que dentro do meu corpo habita um bicho voraz que se alimenta da minha tristeza. Uma espécie de tumor que cresce à medida que os dias passam iguais. E se um dia o bicho-tumor tomar conta de mim? E se um dia ele rebentar dentro de mim, espalhando, pelos meus órgãos, tecidos, artérias, pedaços putrefactos dos meus dias?"


"Branca não sentia prazer. Nunca sentira. Durante muito tempo achara-se diferente das outras mulheres. A idade, porém, trouxera-lhe serenidade. Apaziguara-lhe a frustração. Não só aprendera a aceitar a morte do seu corpo, como fazia questão de a usar em seu proveito. Cada vez que se envolvia com um homem, apressava-se a contar-lhe o seu segredo. Depois de um estremecimento inicial, os homens compadeciam-se da sua sorte. Olhavam-na com pena. Branca revirava os olhos, batia as pestanas, alargava disfarçadamente o decote, pousava as mãos de cera no regaço, suspirava com brandura. Parecia uma santa. Sabia que a frigidez do seu corpo acicatava o desejo dos homens. Mesmo aqueles que a princípio pareciam não se interessar por ela, quando sabiam do seu padecimento, encontravam-lhe predicados e atributos. (...) Todos queriam salvar Branca daquele destino trágico e cada um deles, no seu íntimo, achava-se capaz de o fazer, cumprindo a sua vocação natural, usando de uma virilidade que julgavam eficaz e irresistível. (...) Falhavam sempre. Quando davam conta da sua derrota, ficavam inertes. Olhavam o vazio. Para muitos, era a primeira vez que o fracasso lhes aparecia tão nítido pela frente. O estremecimento inicial voltava. Sofriam. Não por Branca, mas por si próprios. No fim da noite, era sempre ela que os consolava."


"Foi assim durante muito tempo. O meu despertar era sempre igual. Acordava triste e desesperada. Procurava o corpo na penumbra do quarto, desejando não o encontrar. Talvez alguém, durante o sono, compadecendo-se da minha dor, o tivesse levado para longe. Quando o encontrava, ao meu corpo, adormecido a um canto qualquer, pontapeava-o com violência para que se erguesse. Como se fosse um vagabundo que se despreza. Erguia-se o meu corpo, tão estiolado, tão frágil, entrava dentro dele e corria à cozinha a arranjar os pequenos-almoços dos meus filhos. Habituei-me à tristeza, que é como a solidão, fere, mas deixa em nós qualquer coisa, bela e única, que não se sabe explicar. Quem não tem dentro de si alguma tristeza e solidão não é gente. É personagem de anúncio de televisão. (...)"


"Tinha vindo da Índia com um homem mais velho que abandonara a mulher e dois filhos pequenos em Margão. Custou-me acreditar quando a minha mãe me contou, em surdina, com a gravidade que o assunto lhe merecia, que a Maria de Lurdes era amante de um homem casado. (...) Fiquei no carro à espera enquanto o meu pai subiu para falar com os amantes. Imaginei-os, sem falar português, vindos da pacatez de uma aldeia goesa para o turbilhão de uma cidade que não compreendiam. Imaginei-os transidos de frio, deitados numa cama de pensão, a escuridão úmida do quarto cobrindo-lhes o corpo. Imaginei-os, nus, amando-se com embaraço e tristeza. (...) Soubemos, passado algum tempo, que tinham ido para Londres. Trabalharam na cozinha de um restaurante. Ela lavou loiça até as suas mãos gretarem e sangrarem. Ele tratou dos desperdícios até o cheiro do lixo se entranhar nas fibras da sua roupa de agasalho. A dureza da vida que levaram em Londres fez com que o seu amor acabasse. Acontece muitas vezes. Só nos livros e nos filmes é que o amor vence montanhas, ultrapassa dificuldades, é enorme, belo e eterno, como um diamante. Na vida real, o amor não tem essa grandeza nem esse brilho. Esgota-se. O amor vale pouco. O goés voltou para a mulher e para os seus filhos. A Maria de Lurdes voltou para sua aldeia. A família, muito sábia, recebeu-a em silêncio. Nunca falaram sobre o assunto. A vida continuou como se nada tivesse acontecido."


"O Flaubert aconselhava a ter cuidado com a tristeza. Cuidado com a tristeza, dizia ele, pode tornar-se um vício. Percebo bem o que queria dizer. Sou depressiva há muitos anos, mais de vinte, e não sei como me livrar da tristeza quando ela decide tomar conta de mim. Já tentei psicoterapeutas e psiquiatras. Já tentei o suicídio. Já tomei muitos comprimidos, lamelas e lamelas de comprimidos. Já falei com um padre. Já tive filhos para que a maternidade, me secundarizando, acabasse de vez com a tristeza. Já tentei preencher o tempo com coisinhas para experimentar a felicidade dos gestos rotineiros. Nada resulta. É preciso força de vontade para nos livrarmos de um vício e eu não a tenho. Sou de vícios e fraquezas."


"O cabeleireiro chega por fim. Conheço-o vagamente. Vejo-o muitas vezes à porta do salão, entre dois cortes, a fumar. Está sempre tenso como se, permanentemente, lhe faltasse alguém. Pergunta com um sumiço de voz como quero o cabelo. 'Curto, muito curto'. Ele olha-me. Sabe que quando uma mulher arrisca tanto é porque alguma coisa se passa na sua vida. Ou tem vontade de fechar um capítulo da sua vida e de se tornar uma outra mulher, ou, então, precisa de se flagelar, de se penitenciar, de se magoar. Cortar o cabelo equivale a uma expiação. Senta-se num banco alto e, tesoura em riste, com precisão, vai-me decepando o cabelo. Ceifa-o com golpes profundos. Eu, como quando era pequena, desvio o olhar do espelho oval e começo a contar os vidrinhos de verniz que estão no interior de um cesto de verga."


"Guiomar abre a boca e diz: Amedrontam-me as horas tardias e tudo o que elas têm dentro. São intermináveis, as horas tardias. (...) Trazem dentro delas mãos, sombras, vultos. Trazem a urgência dos outros. De quem me quer. Eu deixo que me queiram. Deixo que me tomem. Deixo até que me toquem. Mas não sinto nada. Nunca senti nada. Não acredita? (...) Sabe, as horas tardias não são sempre iguais. Por vezes, são violentas. Precipitam-se. Transformam-se em palavras-arremesso. Cavalgam sem cabresto sobre mim. Outras vezes, são pacíficas. Quase mornas e confortáveis. Como um casaco velho de lã. Ou o cheiro da roupa lavada. Sabe por quê? Porque quem me quer nada exige de mim. Não tenho de demonstrar afecto nem interesse. Só tenho de estar ali. Disponível. Passo a ser um corpo que se consome por hábito. Quando as horas tardias são assim, mansas, consigo sair do meu corpo e ver-me. Vejo-me. Tenho quase sempre os olhos enxutos."


"Não sei o que fazer com a tristeza quando ela toma conta de mim. Não a convido. Não sei porque vem, derramando tentáculos de dor. Sinto-a fisicamente, como se fosse um bicho, um parasita. Petrifica-me. Torno-me um cristal baço. Uma mancha de bolor. Uma estátua grotesca. Repelente. (...) Sei, com precisão, onde, no meu corpo, se aloja a tristeza. Sinto-a aninhada na traqueia, perto da laringe e da faringe. Nas imediações da glote. Provoca-me náuseas. Vontade de vomitar, também. Hoje, durante o almoço, transformou-se em lágrimas e escorreu sobre a sopa de agriões."



Presentes no livro "Ana de Amsterdam" (Biblioteca Azul, 2016), de Ana Cássia Rebelo, páginas 115-116, 50-51, 59, 113, 94-95, 157, 61, 45 e 37, respectivamente.

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