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Dez passagens de Ricardo Cury no livro de crônicas Manteiga



          “Estava voltando pra casa de minha mãe, que havia ficado fechada desde o início da quarentena. Abri a porta e recebi a janela com a vista cinza, nuvens carregadas, relâmpagos e o silvo da ventania servindo de trilha sonora pro meu filme de terror.
          Sozinho em uma casa do passado, no meio da pandemia, no meio de uma tempestade, desempregado, com o abraço que não dei, liguei na madrugada:
          — Não quero mais me separar.
          — Agora aguente.”


          “Nessas horas, as lembranças eram involuntárias. Só as boas apareciam. Raiva da porra. ‘Cadê as ruins?’, eu implorava pro meu HD. Coisas que eu nem sabia que lembrava agora surgiam sem parar e me faziam perguntar se ela também lembraria. Provavelmente histórias que nunca mais serão contadas e que serão como se nunca tivessem acontecido. 
          ‘Quem vai viver com ela novas histórias?’, me perguntava, pra então piorar: ‘Quem vai envelhecer com ela?’. Eu não podia nem ligar pra saber se chegou bem do mercado.”


“Naquele momento intenso de pós-separação, num lockdown, eu precisava preparar café, almoço, lanche, jantar, arrumar a casa, varrer, esfregar cada banana, laranja, alho, cebola, pacote de macarrão e de qualquer coisa que chegasse do mercado como se tivesse urânio enriquecido, manter a pia limpa, fiscalizar aula on-line de um, entreter a outra que ia fazer cinco anos, banho dela, puberdade dele, aquela demora no banheiro, o cheiro azedo debaixo do braço, desembaraçar cabelo dela, sobretudo depois que a vizinha comentou ‘tá demais, viu? Vai ter que cortar’, ajudar a fazer uma cabana, pedir pra escovar os dentes, mandar ir pra cama, contar história, tomar os remédios, responder ao home office com o chefe perguntando se já enviei o texto, e ainda responder à chefa que toda hora perguntava ‘quando acabar o coronavírus você e mamãe vão morar juntos de novo?’.”


          “— Preciso te contar uma coisa que também existe e você não tem outra opção nesse momento — disse Roberto, um amigo.
          — O quê?
          — Tinder.
          Nada contra, mas eu tinha vergonha da coisa toda: escolher fotos minhas e expor como se dissesse ‘esse sou eu me achando interessante com a esperança que você também ache’.
          — Man, você não tem outra escolha: estamos numa pandemia, não tem show, não tem bar, happy hour, não tem praia, não tem casa de casal amigo pra te apresentar alguém... Você ficou solteiro no meio de um lockdown mundial, tá deprê, e se você quiser conhecer alguém, neste momento só existe essa opção.”


          “(...) Alguns minutos depois o elevador chegou, abriu e saiu a minha vizinha com uma cara nada simpática, junto com o date que, para a surpresa de todos, eram três mulheres com packs de cerveja nas mãos. (...) ‘Meu Deus, quem são essas outras duas? Pelo menos estão aglomerando de máscara’, pensei, ainda incrédulo, tentando amenizar a situação pra mim mesmo. Fiquei no olho mágico esperando a vizinha entrar no 501, para só então abrir a minha porta, mas ela também ficou esperando, com a chave na mão, enquanto as três desconhecidas já buzinavam pela terceira vez e Stevie Wonder cantava ‘Isn’t she lovely’. Tive que abrir.
          — Oiiii, prazer, trouxe minhas amigas para me protegerem. Não te conheço, né? Você nem tem Instagram — disse a da frente, já entrando, enquanto eu recebia um olhar do outro lado do hall.”


          “E comecei a vender muitos livros, pois os encontros pelo aplicativo foram somando e eu sempre dava um de presente, gerando vendas posteriores de dois ou mais exemplares. Contei isso pra um amigo do trabalho e ele disse que eu transava, saía do quarto, montava uma banquinha com os livros na sala, acendia um cigarro e ficava esperando.
          (...)
          Com uma chef de cozinha, eu tentei desmarcar porque estava muito gripado e iria fazer o exame no dia seguinte. Só com o resultado negativo eu poderia entrar no estúdio para a gravação de um vídeo que a agência estava produzindo. 
          — Agora venha, já preparei tudo. Passei a tarde toda fazendo um prato delicioso que aprendi no canal de Paola Carosella, pode vir, quero nem saber.
          Ela era muito engraçada e cozinhava muito bem. Morava em São Paulo e estava em Salvador de férias, num Airbnb em Itapuã. Limpo das drogas, eu fui.
          — E se eu tiver de Covid? — perguntei, indo embora de manhã levando um pote de mousse de maracujá com chocolate.
          — Que é que tem?
          — Você também vai estar.
          — Pelo menos eu gozei.”


          “— Ele tá com saudade de mamãe... Já sei o que vou fazer — e foi em direção ao armário, abrindo uma gaveta e puxando uma peça —, vou dar uma camisa dela pra ele ficar cheirando — e jogou a camisa na minha cara.
          Não sei de onde veio aquela força, mas na hora eu dei risada. Eu não estava com ‘saudade de mamãe’, mas, sim, de um mundo inteiro que eu fazia parte. Se a separação fosse apenas da pessoa, seria bem mais fácil, mas só com o tempo percebe-se que são várias as separações, de muitas coisas... Por um longo período.
          Os lugares deixam de ser meras estruturas de concreto e passam a ter sentimentos. A venda do carro que nos levava a todos os lugares é mais uma despedida. Aquele amontoado de ferro, vidro, borracha e plástico ganha alma. As músicas passam a ser horríveis de ouvir. As dos Beatles e as de George Harrison em carreira solo foram censuradas por mim mesmo. Passei a ouvir Rolling Stones.”


“Em uma passada de bastão, além dos livros e filhos, recebi também bugigangas que ainda restavam. Equipamentos, HDs, fotos, cartas de namoradas, jornais e revistas com matérias sobre os (dois) livros que escrevi e as (inúmeras) bandas que toquei. (...) Em outro encontro para troca de posto, além dos livros e filhos, recebi as roupas que eu não usava há anos. Em outro recebi documentos. Uma eterna separação. Agora eu entendia as pessoas que diziam que a assinatura do divórcio era dolorosa, pelo menos pra um dos lados (...) pra compensar essas separações, eu fazia das ilusões dos encontros que ainda iriam acontecer a minha forma de acreditar no ‘agora vai’. Conheci supersurfistas, superadvogadas, superarquitetas, superprofessoras, superpsicólogas, superdentistas, supermédicas, supermães... Supermulheres incríveis, que algumas eu superdecepcionei, outras se transformaram em superamigas, porém, quanto mais encontros eu tinha, mais superficial tudo ficava.”


          “Em 2015, quando Maria estava na barriga, o Brasil vivia o auge da guerra entre Dilma Rousseff e Aécio Neves.
          — É menino ou menina? — as pessoas perguntavam.
          — Menina.
          — Qual o nome?
          — Dilma — eu me adiantava, gerando enormes sustos, para depois desmentir: — Mentira, é menino.
          — Ah, tá... E qual o nome?
          — Aécio.
          O susto era ainda maior.”


          “Fui deixar Mateus na escola e, chegando à sua sala, os colegas dele começaram a gritar:
          — Ei, Cury, Cury!
          Fiquei procurando quem me chamava, meio sem entender, quando, enfim, me dei conta: Cury era ele.”


Presentes no livro de crônicas “Manteiga” (2022), de Ricardo Cury, páginas 31, 34-35, 41-42, 49-50, 52-53, 55+58-59, 168-169, 178-179, 164 e 162, respectivamente.

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