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Dez passagens de Jorge Amado no romance Tereza Batista cansada de guerra



“(...) Voltar para casa, é tudo quanto lhe resta fazer: tratar de esquecer, cobrir de cinza a brasa acesa, apagando-lhe as labaredas enquanto é tempo. Insensato coração! Exatamente quando ela se encontra em paz consigo mesma, tranquila e alheia, disposta a colocar a vida nos eixos, apta para fazê-lo pois nada a perturba, o indócil coração dispara apaixonado. Gostar é fácil, acontece quando menos se espera, um olhar, uma palavra, um gesto e o fogo lavra queimando peito e boca; difícil é esquecer, a saudade consome o vivente; amor não é espinho que se arranca, tumor que se rasga, é dor rebelde e pertinaz, matando por dentro.”


“(...) bem-querer não se compra, não se vende, não se impõe com faca nos peitos nem se pode evitar: bem-querer acontece.”


“Daniel das velhotas, Daniel das madames, gigolô de raparigas, por vezes lhe acontecera pegar mulheres casadas (algumas com muitos anos de matrimônio), mães de filhos, e não obstante virgens de qualquer sensação de prazer, apenas possuídas e engravidadas. Em casa, com a esposa, o dever, o respeito, o pudor, cama de fazer filhos; na rua, com amásia ou rapariga, o prazer, o requinte, cama de luxúria, libertina — essa a divisa, o comportamento de muitos maridos de alta moralidade familiar. Famintas mulheres, no primeiro encontro de amante, desfaziam-se em vergonha e remorso, em choro de pecado: ‘Ai, meu pobre marido, sou uma louca, miserável, desgraçada, o que é que vou fazer? Ai, minha honra de casada!’. Dan era oficial de competente ofício, consolador de primeira, próprio para enxugar lágrimas. Competia-lhe ensinar a essas vítimas da rígida moral dos virtuosos consortes as escalas todas do prazer. Rapidamente aprendiam deslumbradas, gratas, insaciáveis e absolvidas de qualquer culpa, limpas de pecado, isentas de remorso, com sobradas razões para o adultério. Como tratar marido que, por preconceito masculino ou por sumo respeito, considera a esposa um vaso, uma coisa, corpo inerte, pedaço de carne? Aplicando-lhe na testa excelsa um par de chifres, dos bem lustrosos, florados no prazer da rua.”


“(...) eu te quero agora, agorinha, já, imediatamente, nesse mesmo instante, sem demora, sem mais tardança. Agora e amanhã e depois de amanhã, no domingo, na segunda e na terça, de madrugada, de tarde e de noite, na hora que for, na cama mais próxima, de paina, de barriguda, de terra, de areia, no madeirame do barco, na beira do mar, onde quer que seja e se possa nos braços um do outro desmaiar. Mesmo para depois maldita sofrer, ainda assim te quero e vou ter, Januário Gereba, mestre de saveiro, gigante, urubu-rei, marujo, baiano mais fatal e sem jeito. (...) Era o mar infinito, ora verde, ora azul, verdeazul, ora claro, ora escuro, claroescuro, de anil e celeste, de óleo e de orvalho e, como se não bastasse com o mar, Januário Gereba encomendara lua de ouro e prata, lanterna fincada no alto dos céus sobre os corpos embolados na ânsia do amor; eram dois ao chegar, são um só, nas areias da praia encobertos por uma onda mais alta. (...) Tereza Batista empapada de mar, na boca, nos lisos cabelos, nos peitos erguidos, na estrela do umbigo, na concha da buça, flor de algas, negro pasto de polvos — ai, meu amor, que eu morro na fímbria do mar, de teu mar de sargaços, de teu mar de desencontro e naufrágio, quem sabe um dia morrerei em teu mar da Bahia, na popa de teu saveiro? Tua boca de sal, teu peito de quilha, em teu mastro vela enfunada, na coberta das ondas nasci outra vez, virgem marinha, noiva e viúva de saveirista, grinalda e espumas, véu de saudade, ai, meu amor marinheiro.”


“Na abalizada opinião de Almério, entendido nesses embelecos, é bem provável fosse assim, não sendo essa a primeira vez em que se soube de orixá em cama de feita ou de iaô ornamentando marido ou amante com chifres esotéricos, nem por isso menos incômodos. Havia casos comprovados. O de Eugênia de Xangô, vendedora de mingau nas Sete Portas, casada. Xangô, não contente de traçá-la às quartas-feiras, terminou por proibir qualquer relação de cama entre ela e o marido e não coube apelação, o chifrudo conformou-se. Com Ditinha foi triste e divertido o enredo: Oxalá se apaixonou por ela, não saía da cama da criatura, faltando até a obrigações de fundamento. A vida de Ditinha virou um inferno; era Oxalá partir, Nanã Burucu descia, no maior dos ciúmes, e aplicava surras colossais na coitada. Ah! essas surras invisíveis, só quem as tomou sabe quanto doem — concluía Almério, ouvido com respeito e atenção.”


“As chuvas do inverno umedeceram a terra crestada, as sementes germinaram crescendo em lavouras, frutificaram as plantações. Nas trezenas e novenas dos santos festeiros, as moças entoavam cantigas, tiravam sortes de casamento, faziam promessas; nos caminhos das roças o som das harmônicas nas noites de dança, o espoucar dos foguetes — depois das rezas e rogos ao santo, o arrasta-pé, o licor, a cachaça, os namoros, os xodós, corpos derrubados no mato entre protestos e risos. Era o mês de junho, o mês do milho, da laranja, da cana-caiana, dos tachos de canjica, dos manuês, das pamonhas, dos licores de frutas, do licor de jenipapo, as mesas postas, os altares iluminados, santo Antônio casamenteiro, são João primo de Deus, são Pedro, devoção dos viúvos, as escolas em férias. Mês de emprenhar as mulheres.”


          “No mesmo instante desprende-se Tereza Batista dos braços do poeta Saraiva e marcha para o casal:
          — Homem que bate em mulher não é homem, é frouxo...
          Está em frente ao galalau, ergue a cabeça e lhe informa:
          — ...e em frouxo eu não bato, cuspo na cara.
          A cusparada parte; Tereza Batista, treinada na infância em brinquedos de cangaço e de guerra com petulantes moleques, possui pontaria certeira, mas dessa vez, devido à altura do indivíduo, erra o alvo — o olho de remela e velhacaria —, o cuspo se aloja no queixo.
          — Filha-da-puta!
          — Se é homem venha bater em mim.
          — É agora mesmo, siá-puta.
          — Pois corra dentro.”


“Se não fossem a bexiga, o tifo, a malária, o analfabetismo, a lepra, a doença de Chagas, a xistossomose, outras tantas meritórias pragas soltas no campo, como manter e ampliar os limites das fazendas do tamanho de países, como cultivar o medo, impor o respeito e explorar o povo devidamente? Sem a disenteria, o crupe, o tétano, a fome propriamente dita, já se imaginou o mundo de crianças a crescer, a virar adultos, alugados, trabalhadores, meeiros, imensos batalhões de cangaceiros — não esses ralos bandos de jagunços se acabando nas estradas ao som das buzinas dos caminhões — a tomar as terras e a dividi-las? Pestes necessárias e beneméritas, sem elas seria impossível a indústria das secas, tão rendosa; sem elas, como manter a sociedade constituída e conter o povo, de todas as pragas a pior? Imagine, meu velho, essa gente com saúde e sabendo ler, que perigo medonho!”


“Salta da barcaça Januário, está na ponte junto a Tereza e a toma nos braços. O último beijo reacende os lábios frios; o amor dos marujos dura o tempo da maré, na maré a Ventania veleja no rumo do sul, em busca do cais da Bahia. Tanto quisera Tereza perguntar como é a vida por lá; perguntar para quê? Velas enfunadas, âncora suspensa, afasta-se a barcaça da ponte, ao leme mestre Caetano Gunzá. Línguas sedentas, dentes famintos, bocas em desespero, nelas a distância se queima em beijo de fogo, fundem-se a vida e a morte — Tereza marca o lábio de Januário com o dente de ouro. (...) rio e mar, mar e rio, um dia voltarei nem que chova canivetes e o mar se transforme em deserto, virei nas patas dos caranguejos andando para trás, virei em meio ao temporal, náufrago em busca do porto perdido, de teu seio de tenra pedra, teu ventre de moringa, tua concha de nácar, as algas de cobre, a ostra de bronze, a estrela de ouro, rio e mar, mar e rio, águas de adeus, ondas de nunca mais.”


“Para atirar búzios sobre a mesa basta ter mão e atrevimento. Mas para ler a resposta escrita nesses búzios pelos encantados é preciso saber do claro e do escuro, do dia e da noite, do nascente e do poente, do ódio e do amor. Recebi meu nome antes de nascer, comecei a aprender desde menina. Quando fui levantada e confirmada chorei de medo mas os orixás me deram forças e iluminaram meu pensar. Aprendi com minha avó, as velhas tias, com os babalaôs e mãe Aninha. Hoje sou de maior e neste axé ninguém levanta a voz, além de mim. Só respeito na Bahia a ialorixá do candomblé do Gantois, Menininha, minha irmã de santo, minha igual no saber e no poder. Porque cuido dos encantados no rigor dos preceitos e das quizilas, atravesso o fogo e não me queimo.”


Presentes no romance “Tereza Batista cansada de guerra” (Companhia das Letras, 2008), de Jorge Amado, páginas 43-44, 28, 173-174, 50-51, 358-359, 139, 20, 200-201, 66-67 e 339, respectivamente.


Aforismos de Jorge no romance

“Por que tudo na vida tem de ser pela metade?”

“Nos tempos de agora todo mundo sabe tudo, ninguém confessa ignorância”

“Quando ele sorri desce a paz sobre o mundo”

“Não gosto de mentir nem para consolar tristezas”

“Tanto pode ser ruim como bom demais, depende com quem a pessoa se deita”

“Quando estou longe só tenho um desejo: estar aqui”

“Os tempos estão bicudos e dinheiro não tem marcas nem cheiro”

“O que mais dá em cabaré é corno aflito”

Aforismos presentes no romance “Tereza Batista cansada de guerra” (Companhia das Letras, 2008), de Jorge Amado, páginas 273-274, 339, 28, 285, 182, 304, 58 e 20, respectivamente.

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