“— Me diga: é mesmo a primeira vez?
— Com mulher, é, sim.
— Andou botando em algum menino?
— Só na cabra.
— Em Negra Flor, não foi?
— Foi nela, sim.
Bicha safada, ordinária. Peto é o terceiro, entre recentes, a lhe contar da cabra. Mais uma vez Negra Flor a precedera.
— Com mulher é diferente, tu vai ver.
Muda de posição, agora de barriga para cima, abre as pernas, os olhos de Peto pousam-se na senda de pelos negros. A mão de Zuleika Cinderela vai buscá-lo.
— Vem, meu macho, traz essa rola gostosa para comer sua mulherzinha.
Beija-o ternamente, acaricia-o de manso, faz com que ele a monte, suspende o ventre para facilitar o abraço, mete a língua dentro da orelha de Peto e murmura:
— Que gostoso! Sou capaz de me enrabixar contigo.
Cruza as pernas sobre as costas do menino:
— Mete, enfia tudo.
Mantendo-o preso entre as coxas, beija-o no rosto e na boca, remexe as ancas, oferece-lhe o seio; xoxota de chupeta, especial para rola em crescimento, morde e afaga. Precisa conseguir que ele aprenda e goste, sinta quanto é bom, se faça macho inteiro e íntegro, para isso o confiaram a ela. Ao mesmo tempo Zuleika, a velha Cinderela, se embriaga de prazer, saboreia e degusta o cabaço do menino. Não pode haver na vida ou na eternidade prazer que a esse se compare.
— Goze comigo que estou gozando.”
“— Mãe tinha feito uma promessa, acho que pela saúde de meu pai. Mas quando ela me contou, eu mesmo quis ir, desde pequeno mãe me ensinou a temer a Deus.
— A temer ou a amar?
— E se pode amar a Deus sem ter medo dele? Não sei separar as duas coisas, meu pai.
— Pois deve separá-las. Nada do que faça por medo é virtude. Nada do que faça por amor é pecado. Deus não preza o medo nem os medrosos. Você deseja mesmo ser padre?
— Desejo, sim, meu pai, mas não posso mais.”
“— Ai, tia! O que foi que a gente fez? Que é que eu fiz?
Um dia, em voto solene, jurara castidade, consagrara-se a Deus. Prometera renegar os prazeres da carne, casto filho de Maria e de Jesus. Traíra o voto.
— Me desgracei e desgracei a senhora, tia. Me perdoe...
Escuta sons de riso, em surdina, nascente de água em meio à tempestade. Mão de areia e vendaval toca-lhe a face culpada, dedos de unhas longas roçam-lhe os lábios, contendo o soluço: um homem não chora e a partir dali, do sucedido, que era ele senão um homem igual aos outros, cravada no coração a marca do pecado? Igual aos outros? Pior, pois os demais não tinham assumido compromisso e o sangue de Cristo derramado na Cruz os resgatara a todos, até o fim dos séculos. Mas ele fizera voto, prometera, jurara, assumira compromisso. Traíra a confiança de Deus. No negrume enxerga as chagas se abrindo em pus no corpo perverso, a lepra. Dedos pressionando a pele dos lábios impedem o grito e o espanto.
— Tia, só quando houver gente, tolo. Não tendo, sou Tieta, tua Tieta. — Está rindo a infeliz, inconsciente, condenada por ele às penas do inferno. Rindo, alegre; não se dá conta do horror que cometeram.
(...)
— Não diga tia, diga Tieta.
A mão no peito sufocado de vergonha, de remorso, roto de medo; como fitar a face de Deus na hora do Juízo Final? A mão acalma o pesadelo, transforma os sentimentos, desata o nó, rompe a treva, mas não apaga as fogueiras da ira celeste pois toda ela, palma, punho e dedos, é brasa ardida, calor divino. Divino? Assim Satanás engana e condena os homens. Esse calor divino se transformará em dor insuportável nas profundas dos infernos, consumindo lenta e eternamente os pecadores.
— Só eu tenho culpa, Deus há de lhe perdoar, tia.
— Tia, não. Tieta, sua Tieta.”
“(...) quase louco de remorso e medo, apavorado, querendo desistir do seminário, sentindo-se leproso e condenado às penas eternas após ter dormido com a tia no areal de Mangue Seco. Agora, não quer outra ocupação, se pudesse passaria o dia no fuque-fuque, adolescente deslumbrado, força estuante, potência sem limite, desejo infinito, ilimitada, dulcíssima estrovenga. Um temporal, um terremoto, uma festa! A qualquer momento, nas dunas, no banho de mar, onde quer que seja e possa, ele a derruba e monta. Tieta está quebrada, moída, mordida, sugada, satisfeita, trêfega menina em férias, saltitante cabrita. Cabrita? Cabra velha que antes jamais recebera bode novo, de trouxa apenas desatada, insaciável garanhão. Fogoso e exigente, meigo e exultante, Ricardo também mudara. Perdera o medo, enterrara o remorso mantendo, ao mesmo tempo, a vocação sacerdotal. Descobrira a bondade de Deus.”
“(...) Tieta, descontrolada, despreza a oportunidade, põe a merda no ventilador:
— Significa que o cachorro de seu filho se atreveu a me botar os cornos com uma putinha descarada, coisa que nenhum homem me fez.
Perpétua abafa um grito, com a mão. Avança mais um passo, encosta-se na parede do gabinete:
— Quer dizer que tu e Cardo... Que horror, meu Deus! — pasmo e repulsa estampam-se na face severa mas novamente a mão impede o lamento. Em Agreste, o sono dos vizinhos é leve; despertados pelo estardalhaço de Tieta, quantos não estarão à escuta?
Arrastando o pesado fardo da traição, a abundante colheita de chifres, Tieta caminha para o quarto, senta-se na cama, as pernas dobradas, indecente postura. A indignação e a raiva prosseguem implacáveis, agora voltadas contra a irmã:
— Não venha bancar a inocente, fazendo que não sabia quando estava farta de saber.
— O que é que tu quer dizer com isso? Tu está louca! Eu te recebi em minha casa, de braços abertos, pensando que tu tinha mudado. Tu não mudou nada, é a mesma depravada de antes. Desencaminhou um menino inocente, temente a Deus, desgraçou a vida dele. Ia ser padre, agora está excomungado... — abafa um soluço, mãe em pânico, estarrecida. — E ainda tem coragem de dizer que eu sabia. Vade-retro! — Não cabendo mais remendo, resta-lhe enfrentar a situação, tomar a ofensiva.
— Não sabia! Cínica! — o desejo de Tieta é esbofetear a hipócrita, baixar-lhe o bastão nas costas como fez com o nojento. — Quem foi que mandou o filho de noite para Mangue Seco quando viu que eu estava tarada por ele? Com olho no meu dinheiro, pensa que não me dei conta? Mas você se esqueceu de explicar a ele que não nasci para carregar chifres. Não sei onde estou que não lhe meto o braço.”
“(...) precisa convencer Ascânio a abandonar essa infeliz ideia de abrir as portas de Agreste à tal fábrica de dióxido de titânio, capaz de envenenar o ar puro, de ofuscar a limpidez do céu, capaz de degradar o rio e o mar, terminando com os peixes e os pescadores. Contrabandistas? Sempre o foram mas não existem marujos mais valentes e audazes do que os de Mangue Seco, enfrentando os tubarões e as vagas do mar em fúria. De súbito imensa piedade, incomensurável ternura a invade, esquece agravos, fingimentos, mentiras familiares. Gente pobre, pobre e adorável gente de Agreste! Todos lhe querem bem, sem exceção, os bons e os ruins. Fizeram-na heroína e santa enquanto ela não passa de uma reles puta, pior ainda, de patroa de randevu, cafetina, exploradora de putas.”
“— Agradeço à senhora por ter vindo falar comigo, antes de fazer qualquer coisa. Mas não agradeço aos outros. Na cidade, todo mundo já sabe que o comandante quer ser candidato. Sobre Carmosina...
— Basta que você me diga sim e eu e todos os demais estaremos a seu lado. Vim conversar com você em nome de todos. Pense, depois me responda.
— Não tenho mais o que pensar, dona Antonieta. A última coisa que eu desejava era desgostar a senhora. Me peça o que quiser, eu farei correndo. Mas não me peça para virar a casaca. Mesmo que eu fique sozinho lutando pelo progresso de Agreste, mesmo que a senhora nunca me perdoe e se torne minha inimiga...
— Epa! Calma! Quem falou em inimizade? Não tenho nada a lhe perdoar ou não perdoar. Você pensa de uma maneira, eu penso de outra, vamos decidir na eleição mas não somos inimigos. Você ainda é muito novo, se afoga em pouca água. Felipe era o maior adversário do doutor Ademar mas se dava muito bem com ele. Não confunda alhos com bugalhos.”
“Nas ruas antes tão pacatas, travam-se polêmicas, trocam-se desaforos. Argumenta-se a favor ou contra a instalação da fábrica. Deve-se ou não permitir, saudar com entusiasmo ou repelir com indignação, significa vida ou morte? Uma parte da população mantém-se indecisa, sem saber em qual dos murais acreditar. No da Prefeitura, onde se afirma a completa inocuidade da indústria de dióxido de titânio e são prometidas mirabolantes maravilhas ao município e ao povo? Ou no da agência dos Correios, a proclamar a extrema periculosidade da Brastânio e o perigo que correm o céu, a terra, o mar e a atmosfera de toda a região, desgraças mil devidas à indústria de dióxido de titânio? Dióxido de titânio, nome sugestivo, apaixonante, ameaçador, misterioso.
Existem alguns ecléticos que misturam alegações dos dois murais ou seja: acreditam haver muita verdade nas afirmativas sobre a terrível porcentagem de poluição causada pela discutida indústria mas acham que nem por isso se deve impedir sua instalação no coqueiral de Mangue Seco ou em outro ponto qualquer de Santana do Agreste. Segundo eles, não existe progresso sem poluição e citam o exemplo dos Estados Unidos, do Japão, da Alemanha, de São Paulo, quatro colossos.”
“Tieta tenta sorrir mas não há alegria em seu sorriso. Recorda o desenho exposto sobre a mesa e a segurança na voz de Ascânio: esse é um assunto definitivamente resolvido, dona Antonieta. De que adianta ir para Agreste, deblaterar contra a Brastânio? Tieta sabe que não tem como impedir o estabelecimento da indústria de dióxido de titânio no coqueiral de Mangue Seco. Problemas dessa relevância são discutidos e decididos nos altos escalões, entre os grandes, o resto não conta. Quantas vezes Felipe obtivera, com manobras, dinheiro e prestígio, passar por cima das leis e do interesse dos demais, da imensa maioria? No Refúgio dos Lordes, na tranquilidade das salas reservadas, realizavam-se encontros onde eram tratados e obtidos gabaritos de prédios, localização de fabricas, concessões de cartas patentes, favores os mais diversos, negociatas de todos os tipos. Ai, comandante, de nada vão adiantar notícias nos jornais, memoriais, sonetos de maldição, protestos de pobres-diabos de Agreste. Nem mesmo os tubarões no mar revolto, Carmô, nem mesmo eles impedirão o fim dos caranguejos e dos pescadores, o fim de Mangue Seco. Resta-lhes somente aproveitar os últimos dias, bem poucos. Chega a abrir a boca para dizer tudo isso mas se contém. Para que entristecer os amigos, ainda por cima em dia de festa? Promete ir para Agreste o mais depressa possível.”
“— Ouça, minha filha: você está conversando com um bode já sem serventia, solto no campo para morrer. O desinfeliz pensa que ainda é o pai do terreiro, não é mais nada, até os cabritos novos lhe metem os pés. O coronel Artur de Figueiredo, que mandava e desmandava, se acabou. Não nomeio mais candidato nem disputo eleição. Tu não vê? De um lado, os capitalistas da fábrica, não são nem daqui. Do outro, tu, Tieta, que eu conheci menina, descalça, tangendo as cabras, agora coberta de brilhantes. Não conto mais para nada. — Na voz, cansaço e amargura.
Comovida, Tieta afaga-lhe a mão, carinhosamente:
— Não diga isso, coronel. Se o senhor largar Ascânio de mão, não tem fábrica que eleja ele. O senhor é o dono da terra, manda na gente daqui. Tanto isso é certo que se o senhor me pedir ou me ordenar, eu acabo com a candidatura do comandante neste instante, aqui mesmo. Contra o senhor, não me levanto nem para salvar as cabras.
Desponta um sorriso nos lábios murchos do ancião:
— Não acredito que esse titânio mate cabras, Tieta, tu diz isso pra me enrolar. Mas não te peço nem te ordeno nada. Não me meto mais, cada um faça como quiser. Ascânio pensa que está agindo certo, é lá com ele. Tu, Carmosina, o comandante, não sei quem mais, acham o contrário. Se eu ainda tivesse ambição de dinheiro, era bem capaz de apoiar a tal indústria, me associar com os forasteiros, por dinheiro a gente vende até a alma. Se ainda tivesse amor à vida, apoiava vocês, o pior homem do mundo pode às vezes ter um gesto grande. Não tenho mais nada a ganhar nem a perder no mundo, Tieta, perdi até o gosto de mandar. Mas agradeço o que tu disse, a consideração que teve com um velho. Tuas palavras puseram mel em minha boca, perto da hora da morte.”
“— Moça, aquela sujeitinha? Rapariga é o que ela é... dá para Deus e o mundo...
Dona Milu punha fim à conversa, dispersava o elenco:
— Se ela está dando, dá o que é dela e eu nunca soube que se deitasse com homem por dinheiro, é o corpo que pede. Que pede a ela e a todas, não é mesmo, Roberta? As outras não dão, trancam com sete chaves mas só a caixa da periquita. O resto não faz mal, não é isso, Gesilda? Do sovaco ao fiofó, tudo vasculhado.
Parecia mudar de assunto:
— Que apelido mais bonito os rapazes botaram nas tuas gêmeas, Francisca. Não sabe? Pois lhe informo: Mãos de Ouro e Prata, achei lindo... — Dona Milu era uma parada!”
“— Vou lhe dizer por que, meu doutor, e escreva a razão se quiser, não me oponho. Se chamo um bucho aos peitos quando calha, o motivo é não viciar o pau, o Padre-Mestre.
— Padre-Mestre?
— Foi o apelido que ele ganhou, dado por uma beata ainda passável com quem andei praticando umas sacanagens, meu doutor. Imagine se eu servisse ao Padre-Mestre somente pitéus finos, material de primeira, formosuras, perfumarias, e ele se acostumasse a comer apenas do bom e do melhor. De repente, um dia, por uma circunstância qualquer, dessas que acontecem quando a gente menos espera, me vejo obrigado a pegar um estrepe em más condições e o Padre-Mestre, viciado, se recusa, fica pururuca, brocha. Não lhe dou vicio, vou comendo as bonitas e as feias e tem cada feia que vale mais do que um exército de bonitas porque uma coisa, meu doutor, é mulher para se ver e admirar a imagem e outra é o gosto da boceta.”
“Não só assiste ao bode Inácio montar as cabras. Acontece-lhe ver, escondida nos oiteiros, moleques se pondo nelas. Osnar e seu bando de perdidos. Homens-feitos também. O próprio pai, imaginando-a ausente.
— Em casa, um deus-nos-acuda, austero, moralista por demais, mandando todo mundo para a cama nem bem a gente se levantava da mesa do jantar. Em namoro, era proibido se falar.
Namorado de filha minha se chama palmatória e taca de tanger burro; bordão de marmelo é o nome completo, roncava Zé Esteves. Punha-se nas cabras quando julgava o pasto vazio. Existiam cabras viciadas.
— Eu era uma cabrita, igual a elas. A primeira vez não teve diferença.
— Com que idade, mãezinha, a primeira vez?
— Sei lá. Treze, quatorze anos, botei sangue cedo.
— Depois?
— Fui cabra viciada, não havia homem que me desse abasto.”
“Fui gulosa, gulosa de homens, quanto mais melhor. Pai tinha muitas cabras, bode inteiro só um, Inácio. Eu era cabra com vários bodes, montada por esse ou por aquele, no chão de pedras, em cima do mato, na beira do rio, na areia da praia. Para mim, prazer de homem, só isso e nada mais: deitar no chão e ser coberta. Na mesa do velho, sempre a mesma coisa, feijão, farinha, carne-seca. Quem primeiro me ensinou os pratos finos, os que aumentam a gula em vez de saciá-la, foi Lucas, na cama do finado doutor Fulgêncio. (...) Pra ser coberta, outra coisa não sabia. Quando ele veio com os dedos me tocar, com a boca me beijar o corpo inteiro, a lâmina da língua e o hálito quente, quis impedir, sem entender. Com ele aprendi, na cama do doutor e dona Eufrosina, os molhos e os temperos, e soube que homem não é apenas bode. Com ele virei mulher. Mas penso que até hoje há em mim uma cabra solta que ninguém domina.”
“(...) Tieta gostaria de participar da alegria geral mas aquele por cujo beijo anseia não está presente, não veio, não quis vir, preferindo seguir atras do padre no lombo de um burro, o idiota! Que espécie de dor-de-cotovelo mais absurda! Seu rival é Deus. Pois Deus que se cuide, no particular Tieta do Agreste não costuma perder.”
Presentes no romance “Tieta do Agreste” (Companhia das Letras, 2009), de Jorge Amado, páginas 513, 267, 207-208+211-212, 293-294, 598-599, 400-401, 584, 437, 531-532, 589-590, 54-55, 136, 90, 128+129 e 199, respectivamente.
Aforismos de Jorge no romance
“Ninguém morre de amor, de amor se vive”
“A certeza da morte não impede o homem de aproveitar a vida”
“Não arrote antes de comer”
“Na cama tudo se resolve”
“Para se viver bem (...) é necessário antes de tudo abolir a consciência. A merda é que nem sempre se consegue”
“Quem sonha, paga caro. Bom é querer”
“Quanto mais conheço outras cidades, mais gosto de Paris”
“Quem tem prima, come prima”
“Luto de xibiu é curto”
“Mais cedo ou mais tarde a magia se romperá projetando no desejo a sombra do fastio e do tédio”
“Nunca fez nada por mal e o bem que fez não tem medida”
“A pior coisa para um homem é a ambição do poder. Não há honradez que resista”
Aforismos presentes no romance “Tieta do Agreste” (Companhia das Letras, 2009), de Jorge Amado, páginas 164, 174, 198, 293, 568, 155, 192, 156, 401, 549-550, 80 e 352, respectivamente.
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