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Dez passagens de Victor Mascarenhas no romance Sete dias em setembro

Victor Mascarenhas (foto daqui)


          “— Como soldado, obedeço ao príncipe, mas não concordo com nada disso. Rei é rei, ora. Ele manda, o povo obedece e quem não obedecer que sofra com as consequências. Sempre foi assim, para que mudar agora?
          — Mas não achas melhor que existam regras e limites para o rei? E se um dia tivermos um governante que resolva distribuir armas a todos, que persiga seus inimigos, brigue com outros países ou nos deixe à míngua no meio de uma epidemia, por exemplo? Não deveria existir alguém que limitasse os poderes dele ou a quem pudéssemos recorrer para nos defender?
          — Rei não se questiona, se obedece e meu rei é o de Portugal. É isso ou virar logo uma República, como querem os maçons.
          — Então não achas errado o Brasil voltar a ser colônia e ficar submetido a um rei do outro lado do oceano?
          — Achas certo que se tome do rei o que é seu direito? Se isso acontecer, daqui a pouco vão querer entregar tudo de volta para os índios, tomar sua casa, suas terras, seus animais e até suas roupas. Vão querer até proibir os homens de bem de terem escravos, armas e de mandar em suas mulheres!”


          “Percebendo que falou algo que não devia, Peixoto apelou para a mais velha das técnicas de mudança de assunto conhecidas pelas mais diversas civilizações que chegaram nessas terras para formar o povo brasileiro:
          — O tempo parece que vai abrir hoje...”


“A noite seguia agitada no palácio, com um entra e sai de nobres, ministros e funcionários zanzando pelos seus corredores. Muitos deles caprichavam no cenho franzido e andavam a passos rápidos para dar impressão de estarem ocupados ou incumbidos de alguma missão, mas a verdade é que a maioria estava absolutamente perdida ou simplesmente tentando descobrir para que lado o vento sopraria nos próximos tempos, para poder saber se aderiam ao partido português, que defendia os interesses de Lisboa, ou ao partido brasileiro, que queria a independência e era liderado, cada dia menos relutante, pelo príncipe D. Pedro.”


          “— Tu bem sabes que sou um bom amigo de D. Pedro, mas essas ideais liberais dele... Rei é rei, ora pois. Um manda e outro obedece, sempre foi assim. Para que diabos essa invencionice de Constituição, Justiça e Parlamento?
          — Que é isso, meu bom Pilotinho? És absolutista, pé de chumbo?
          — Claro! E não me chames mais de pé de chumbo. Sou português e Portugal é o dono do Brasil, sempre foi e sempre há de ser.
          — Mas se o Brasil ficar independente, D. Pedro há de ser o soberano e se o senhor for amigo dele...
          — Se ele conseguir essa proeza, viro liberal na mesma hora, ó pá! Mas como seguro morreu de velho, queria mesmo era receber os meus doze contos.”


“(...) o major Cordeiro tenta fugir, mas recebe uma estocada nas costas, desferida pelo soldado que o vigiava, e cai soltando um grito de dor. Agachado e concluindo o serviço na pata dianteira de um dos cavalos, Baltazar percebe que o barbudo saca uma pistola e aponta na direção do major. Com uma velocidade impressionante, o negro, que era escravo de ganho de um fazendeiro local até ser libertado por um pedido pessoal do próprio D. Pedro durante sua passagem por ali, atinge o líder dos sediciosos com o martelo que acabara de usar para ferrar o animal, derrubando o malfeitor que já tombou desacordado e com o sangue escorrendo de um grande ferimento na sua têmpora esquerda. Mesmo ferido, Cordeiro conseguiu fugir para a mata e seu agressor, dividido entre socorrer seu comandante ou perseguir seu alvo, mal soube o que o atingiu e caiu vítima de mais uma feroz e precisa martelada de Baltazar. (...) Sentindo o suor frio brotando em cada poro do seu corpo e a vista escurecer, Cordeiro percebe que vai desmaiar, mas antes de perder os sentidos ainda consegue ter a visão da imponente figura de um negro com torso nu, colar de contas vermelhas e brancas, panos vermelhos cobrindo suas pernas, uma espécie de coroa na cabeça e um enorme machado com duas lâminas nas suas poderosas mãos. Rápido como um raio, a aparição entra na floresta.”


          “Como num passe de mágica, o vencido tornou-se vencedor e a fúria do jovem príncipe transfigurou-se em alegria exuberante, numa mudança repentina de humor que fazia lembrar sua avó, D. Maria, que alternava visões delirantes do inferno e gritos lancinantes de ‘ai, Jesus!’ com momentos ternos com os netos e aguçadas percepções sobre política, tudo isso permeado por momentos de total alheamento, quando era levada para cima e para baixo pelas ruas das Laranjeiras por suas damas de companhia, sob o escrutínio maledicente do povaréu, que comentava a cada passagem da velha monarca:
          — Olha lá! Maria vai com as outras.”


“(...) chegara ao Rio de Janeiro com decretos das Cortes portuguesas que destituíam o príncipe regente e o rebaixavam à condição de um reles delegado de Lisboa, além de anular todas as suas decisões e pedir a prisão de José Bonifácio. Como se fosse pouco, as Cortes ainda autorizavam a fragmentação do Brasil em províncias que deveriam se reportar diretamente a Portugal, o que desintegraria o país e o projeto de nação que Bonifácio e D. Pedro sonharam para o Brasil, de manter o território reconhecido pelo Tratado de Madri (...) e nele construir um país com uma sociedade sem escravidão, formada a partir da integração e miscigenação entre indígenas, portugueses, africanos e brasileiros, onde fosse feita uma reforma agrária para substituir os grandes latifúndios por pequenas propriedades familiares, houvesse educação primária gratuita para todos e a implantação de uma universidade para o ensino de Medicina, Ciências Naturais, Direito e Economia. Para piorar, a princesa informava ainda que tropas portuguesas começaram a desembarcar em massa na Bahia com o objetivo de, a partir de Salvador, combater e exterminar todos os que estivessem ao lado de D. Pedro e, por conseguinte, dos brasileiros.”


“(...) Muito se falava da estranha mania de D. Pedro em acordar antes de o sol raiar e disparar sua espingarda de caça para despertar os demais moradores do Palácio Real (...) Assim como não havia quem não conhecesse alguma moçoila seduzida por Sua Alteza, todo mundo sabia de alguma das suas sandices, como nadar no mar com as vergonhas à mostra para quem quisesse ver, conduzir a própria carruagem em alta velocidade nos arredores do Rio de Janeiro, passar horas ferrando cavalos nos estábulos do palácio ou dançando o lundu com os negros nos terreiros e em patuscadas nos mais sórdidos botequins da cidade. Porém, romper com a Coroa portuguesa e declarar a Independência do Brasil parecia ser maluquice demais. Até para D. Pedro.”


“(...) o gorducho e bonachão João, a quem o destino reservava apenas a vida fácil e sem responsabilidades de infante, teve de assumir a Coroa num dos momentos mais conturbados da história, ainda sob o impacto da Revolução Francesa (...) bem no meio da refrega entre Napoleão Bonaparte e a Inglaterra, e, ainda por cima, casado com a temperamental, gananciosa, indomável, conspiradora e, segundo as más línguas, horrorosa princesa espanhola Carlota Joaquina (...) Carlota, que ambicionava uma Coroa para chamar de sua desde que saíra da Espanha, aproveitou-se do temperamento acomodado do seu marido e armou uma conspiração que envolvia nobres portugueses descontentes e seus parentes da família real espanhola. Porém, num raro arroubo de valentia e presteza, certamente incentivado pela convivência infernal com a esposa, D. João deixou de lado sua bonomia habitual e agiu energicamente para impedir o golpe, o que lhe garantiu numa só tacada a manutenção da Coroa e a possibilidade de livrar-se da presença de Carlota Joaquina, despachando-a para a Quinta do Ramalhão.”


“Noemi nunca mais voltou para o Rio de Janeiro e a filhinha do casal morreu com seis meses de vida. O governador da província de Pernambuco, o general Luís do Rego, num rasgo de puxa-saquismo, velou a criança com pompas de princesa, decretou luto oficial, mandou embalsamar o corpo e o enviou para D. Pedro, que sofreu terrivelmente pela morte da menina. Dizem até que o príncipe guardou o pequeno caixão num alçapão secreto na Câmara dos Pássaros, sempre usado para suas fugas noturnas, e até hoje ninguém sabe ao certo o destino da princesa cadáver...”


Presentes no romance “Sete dias em setembro” (P55, 2023), de Victor Mascarenhas, páginas 61-62, 42, 21, 34, 68-69, 32, 55-56, 20, 15-16 e 37, respectivamente.

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