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Quarenta passagens de Emmanuel Mirdad no livro de memórias O lampião e a peneira do mestiço

Emmanuel Mirdad (foto: Maíra Rebouças)


“Se não há ironia, a vida é só para os crentes.”


          “Bom, no poema ‘Amor à primeira vista’, com a tradução da Przybycien, a polonesa Wisława nos presenteia: ‘Porque afinal cada começo é só continuação e o livro dos eventos está sempre aberto no meio’. É isso! Concordo, demais. A cada novo amor que a sorte e a persistência nos proporcionam, continuamos o melhor do legado afetivo construído em parceria com quem passou por nós e leva agora a alcunha de ex-amor [no melhor dos casos, um amor e não ex].
          É impossível considerar os meus feitos e as melhores lembranças sem entrelaçá-los à importância afetiva de cada amor que vivi. Registro assim no poema ‘Inhame’ [cuja síntese me satisfaz]: ‘Sou o mais chapado de todos: não bebo, não fumo, não cheiro, nem injeto ou dissolvo; eu amo’. Eu preciso amar, sempre. Sou a antítese do estar solteiro, não consigo, embora a coincidência me force a tanto. As relações acabam, mas o sentimento não.”


“Tiro o olho da tela do celular. Chega de treta no virtual. Quero pele, calor, transpiração. Estou em Salvador, na farra de véspera da festa de Iemanjá, em frente ao Lalá, no Rio Vermelho, uma multidão na rua. Que energia! Tudo lotado, muita gente bonita e interessante, a paquera rolando solta, e eu vejo a moça bonita toda tristonha, apoiada no capô de um carro, sozinha. Reconheço-a das redes, sempre com as fotos mais positivas, luz no grau, roupas, expressões, cenários. O perfil parece uma revista. Sempre feliz. Sempre. Mas ela não tá feliz. É o oposto: derrota, frustração, raiva, olhos marejados. Num instante, liga a câmera frontal, ajeita o cabelo, conserta as feições, analisa o melhor ângulo e faz mais uma foto perfeita. Puxo o meu celular e corro para o seu perfil. Ela acaba de publicar: sorrisão aberto, legenda curtindo a vida & feliz, para marcar como ela é cool, por estar no show do Metá Metá, aberto ao público via varanda do Lalá, point dos moderninhos. Tiro o olho da tela e comparo com o real. Ela continua triste. Talvez até mais. Vejo o sorriso no celular. Vejo a cara fechada na rua. Bizarro...”


“Da janela do apê 703-B, vejo a beleza de um céu azul total, o sol irradia a luz que faz da Bahia um encanto. Desde às dez para as seis da manhã que estou na função de concluir um livro. Um dia inteiro dedicado à literatura, para me salvar da dor que quer me afogar. Lá fora, o espetáculo das cores me agride, pois aqui dentro, as sombras do fracasso querem nublar a respiração. Fujo: o doping do workaholic me obriga a trabalhar. Termine essa porra de livro hoje, cabrunco! E o fim do namoro me tritura. Foda-se o que você planejou, investiu, tentou construir. É uma relação, não é uma casa. É fluido, ‘provisório e de passagem’. Não há retorno. É o irremediável: eterno é quando não dura. Ouço Joy Division, sempre atual: ‘O amor irá nos fazer em pedaços, de novo’. Dói, essa desgraça... Vou precisar catar os meus pedacinhos, para recomeçar. De novo, em movimento. Sempre só, mesmo arrodeado. Vai passar, todos sabemos. E enquanto não passa, faz o quê? Trabalha, xibungo! E o amor de mãe é que sustenta o rumo, durante a tempestade, até que o porto seja avistado.”


“A Flamanha é campeã da Copa do Mundo do Brasil no domingo 13 [torci por ela desde o começo], e na manhã da quarta 16, Seu Mateus grava o refrão de ‘Clouds, Dreams’ e recheia de vozes mágicas que abençoam a canção. Yeba! Estou tão emocionado, que vejo pelo aquário a sala de gravação do Casa das Máquinas tomada pela mata. Magia, pura. (...) e, guiado pela sincronia, invento, do nada: ‘Seu Mateus, não quer gravar uma música com os poemas do meu pai, não? Você só faz os vocalizes e a voz principal é Mestre Dedé recitando’. O baobá quer saber: ‘Quem é o seu pai, Mirdad?’. Pego a foto 3x4 dele, que sempre anda comigo na carteira, e a entrego nas mãos negras do mestre. Ele se concentra, foca o olhar na pequena imagem do meu velho pai. Um senhor de cabelo grande, de terno, foto formal para RG. Seria. Seu Mateus vê o além. Devolve a três por quatro e sentencia: ‘Vamos gravar a música do caboclo, Mirdad’. E eu não havia dito nada sobre o meu velho; o pai poeta, feito no axé, a vida toda guiado por uma entidade indígena chamada Jaguar, transpôs o simulacro da matéria e se conectou com o velho mestre da música afro-brasileira. De caboclo para caboclo. Aláfia!”


“Segunda, 21 de julho, manhã. No Casa das Máquinas, entrego a faixa com os poemas para Tadeu, que abre os arquivos de ‘Another Lost Skin’, deleta a minha voz com a letra descartada, e simplesmente insere o Mestre Dedé. Play. É a 1ª vez que vou ouvir como ficou. A sincronia apronta uma daquelas: parece que Ildegardo gravou lá em 2008 com a música no fone. Tadeu toma um susto. Eu só faço rir. Exceto por uns ajustes aqui e ali, uma psicodelicada criada pela minha cachola maluca [‘aqui e agora’], o arquivo casa perfeitamente na melodia, mesma cadência, fluência, sentimento, tom... Tudo já está pronto, irmão, maktub! Pois quando terminamos os ajustes, precisamente no ‘tá massa’, Seu Mateus abre a porta do aquário. Que atraso mais combinado, hehe. O baobá me pede a 3x4 do caboclo, leva-a para a sala de gravação, observa-a com respeito e faz o seu registro segurando-a nas mãos; Seu Mateus se conecta com os seus & com a permanência imaterial dos que foram e ainda serão Ildegardo, faz uma apresentação do ‘ausente que se faz presente através do verbo; antes de tudo, o verbo’ e sacraliza ‘Illusion’s Wanderer’ [uma ode épica-progressiva ao despertar do ser humano] com os seus cânticos ancestrais, nordestinamente africanos, humanamente sublimes. Mágica!”


“O hábito de ler me faz colorir o vazio.”


“(...) Um amigo me disse: ‘porra, bicho, você fica me frustrando, eu queria que fosse de um jeito...’. Adorei! Eu adoro quando o leitor diz que eu o frustrei. Porque, se frustrei você, fiz alguém feliz. Unanimidade... jamais! Atenção, escritores: unanimidade, jamais! Tem que fustigar, tem que provocar.”


          “(...) o melhor é a surpresa de uma mensagem do Cordeiro:
          ‘Oi, Mirdad. Onde posso comprar o físico de oroboro baobá? Compro contigo mesmo? Se sim, como faço? Posso transferir pra sua conta?’
          Patchara, se você não é um escritor ‘invisível’, não tem ideia de quanto significa uma mensagem dessa. Pense: você tá na sua, num dia como outro qualquer, e um leitor qualificado entra em contato querendo COMPRAR o seu livro, sem nenhum estímulo de propaganda ou fator notícia. Pergunte a um escritor que você conheça: isso acontece? Quando sim, eu não possuía mais o livro para vender. Kuéin! E Cordeiro amplifica: vai no site da Penalux e compra. Fatality: ele lê o meu romance e propõe:
          ‘Oi, Mirdad. Terminei oroboro baobá. Será que a gente poderia fazer uma entrevista amanhã (segunda, dia 26) no final da tarde via Zoom? Seria uma gravação para o Multicultura da Educadora FM.’
          Ô, sorte! Quase não acredito: ele leu mesmo, que foda! E o que Cordeiro faz não é excepcional, e sim o que se espera de um jornalista cultural: um autor lança um livro que tem um nome estranho e uma proposta esquisita; opa, vou saber da qualé. Como quase não há esse hábito nos profissionais, meros consumidores de release e requentadores de pautas óbvias, o gesto do faconiano se impõe como generosidade. E é, também. ‘oroboro baobá’, mais uma vez, bota a cabecinha para fora do palheiro. Lamento: ser curioso & interessado não é um comportamento intrínseco do ser humano, que prefere pastar e ser conduzido como massa de manobra.”


          “É um romance que tem muito da ilustração da formação do povo brasileiro; então, tem negro, indígena, branco, tem muito das opressões que a gente passa, seja da violência contra a mulher a questões econômicas. A maracutaia no futebol serve como uma ilustração, uma alegoria da maracutaia nos diversos níveis no nosso país. Tem a ligação com o sagrado (...) tem o ordinário acontecendo o tempo inteiro, e você pensa que não há no ordinário o extraordinário, pelo contrário, é no mais ordinário onde há sempre o extraordinário.
          Tem a presença da divindade e das entidades, a Mutujikaka, a Mensawaggo, enfim, entidades que têm uma função de reger o destino e fazer com que ele aconteça da maneira como foi programado. A infelicidade geral da nossa humanidade [é primordial, desde que nós tivemos consciência das coisas como seres humanos] é a falta de acesso à verdade, falta de acesso ao sentido do ‘por que estamos aqui?’, aonde vamos, e a gente fica inventando as maiores fábulas sobre isso. Na verdade, ninguém tem acesso à porra nenhuma; a gente só tem suposições e vai tocando o barco.”


“Pois bem, o romancêro come o pão que um evangélico amassou para escrever ‘oroboro baobá’, quase dez anos numa jornada de armadilhas e frustrações, custa caro como a porra, e não dá o retorno que esperava [vendi minguados exemplares, não ganhei prêmios, fui finalista e só]. Por mais que tenha marcado ‘oroboro baobá’ como o meu 1º romance, condicionando a torto e a direito a gato, cachorro e papagaio que teria uma carreira nesse gênero [após forçadamente abandonar os poemas e os contos], agora berro aos quatro cantos: eu que me livre! Chega de ser romancêro! Dá uma trabalheira desgraçada construir uma história que ninguém vai comprar. Trabalho inútil da peste! Gasta, gasta, gasta, e não é remunerado pelo esforço e dedicação. Nem dá para chamar de trabalho, pois não há salário nem dividendos, muito menos voluntariado; não ajuda ninguém além de si próprio. Umbigada. E já tem muita gente de sucesso, lacre e destaque a cada ano na literatura contemporânea [no ano seguinte, é esquecida]. Adiós, romancêro. Melhor ler que escrever. E eu aproveito este capítulo para registrar o que não farei [mais inútil, impossível].”


          “8/8/88. Os quatro oroboros de pé & enfileirados. O marco: é o dia que mais faço questão de vivenciar. Largo a rotina das histórias escritas nos cadernos, os mundos dos bonecos Comandos em Ação, o videogame e a leitura da Enciclopédia Abril e das revistinhas do Homem-Aranha, para poder imprimir a data infinita nas minhas memórias. Tudo o que eu faço, a partir da revelação na sala de aula, da manhã até dormir, é experimentado como especial. As garfadas do almoço, a balançada na rede da varanda, o rolé de bicicleta no bairro de ruas de barro, o picolé de cajá na vendinha de ponta de esquina, as conversas com os moleques vizinhos, o seriado Jaspion na TV Manchete, o beijo de boa noite da minha mãe. Tudo é experienciado numa tentativa de pertencimento à data singular, um enraizamento na história dessa passagem enquanto Mirdad. 8/8/88, o dia mais especial da minha infância [lembro agora da história da Macabéa de Clarice, donde peneiro o belo anti-clichê: ‘Cada dia é um dia roubado da morte’. Pois bem, roubo da velha senhora este 8/8/88 — ela permite].
          (...)
          Giramundo: uma década depois (...) 8/8/98. Bang! (...) Dez anos. A aula acaba para mim. Não mais tão introspectivo quanto na infância, mas autoproclamado poeta desde 1996, o reencontro com a preciosa data dos infinitos perfilados me sensibiliza demais. (...) Mesmo jovem, menor de idade ainda, a sensação que tenho talvez seja próxima ao que sente o condenado à morte, no último dia que lhe resta da conta macabra. Pela 1ª vez me reconheço como um ser consciente de que estou vivo para morrer e tenho a confirmação de que já haviam se passado dez anos do exíguo período de vida que carrego desde o parto. Ao invés de vivenciar aquele pertencimento ao dia infinito como fora em Ilhéus, no Jardim Savoia, sou tomado pelo terror de que, na média, ainda restavam mais uns seis reencontros após 1998 — se não houver algum imprevisto pelo caminho.”

A biografia do romance e a sobra da biografia

“Estou na sala do 1º M, intervalo de uma aula. Sozinho, numa carteira do fundo, colada na janela, com a vista para um resquício do mar da Pituba, escrevo ‘Solidão’, o meu 1º poema. Versos ingênuos, rimas pobres do tipo ‘amor com dor’, um marco: é a minha estreia na literatura; fundo-me poeta, meses antes de completar 16 anos. Escrevo no caderno: ‘Emmanuel Mirdad, poeta’ [baiano não nasce; baiano estreia]. Paixão à 1ª poesia. E eu também quero tocar um instrumento, para reproduzir o roots reggae de Bob Marley & The Wailers às pessoas, compartilhar as visões fantásticas que experienciara, apenas ouvindo essas músicas, numa mística natural, totalmente imerso na mata de dentro, no universo das conexões interdimensionais [quase não me materializo de volta nesses transes meditativos]. O que fazer? Montar uma banda! Antes de estudar, aprender, dominar um instrumento... ‘So go to hell if what you’re thinkin’ is not right!’, #pas.”


          “(...) Gildo me oferece a vaga do teclado, sem saber que eu arranho o instrumento — desejo mesmo é tocar violão, mas a maldita pestana me ferra, não consigo segurar as cordas com o indicador. Todo fundamentado na filosofia ‘do it yourself’, me viro nos trinta e aceito ser o tecladista — devo pegar emprestado o da minha mãe. Antecipo-me ao produtor e batizo a banda: Salassié (...) Ele acata. Por dias, tenta confirmar a sua escalação de integrantes e um estúdio para ensaio. Para controlar a ansiedade, batizo-me de Besouro Marley e escrevo dez letras para o repertório autoral da Salassié, à espera dos parceiros para musicá-las (...) É a minha 1ª experiência de escrever letras para serem utilizadas em canções, de sonhar em ter uma banda e de seguir carreira musical. Poesia e reggae, o embrião da minha origem como artista.
          Sonho muito com os shows que faremos. A banda é um sucesso, na minha imaginação. Já consigo escutar as músicas do 1º álbum, que batizo de ‘Meditação’. Só que... O prazer gera a frustração. Inevitável. No PhD, sou surpreendido pelos colegas Aloísio e Jacaré, que informam: vamos mudar de nome e não tocaremos reggae; o ritmo do momento e do dinheiro é o pagode. Ponto final para a Salassié. Tocar o ritmo baiano para ganhar grana é o objetivo da nova banda. Mas, e as visões fantásticas, a mata de dentro, o universo das conexões interdimensionais, os transes meditativos? (...) Estou pasmo. Tocar por dinheiro? Nem que a porra! Eu quero é arte! Dispenso-me do grupo sem ter conhecido os outros músicos. Afasto-me dos colegas e me isolo. O ídolo da música negra no mundo preconiza: ‘Don’t forget your history/ Know your destiny/ In the abundance of water/ The fool is thirsty’ [‘Não esqueça a sua história/ Conheça o seu destino/ Na abundância de água/ O tolo está com sede’, o Google ajuda].”


          “Eu sou fã da Legião Urbana. De música brasileira, são os discos que mais gosto. Ouço até hoje e continuo amando da mesma forma [até morrer, legionário eu sou]. Renato é o meu letrista favorito, o cantor que mais me emociona, com um timbre de voz e interpretação que me impressionam demais; é a referência que me motivou a cantar e a compor [e a formar uma banda, óbvio]. Se não fosse a Legião Urbana, eu não teria aprendido a tocar violão e não seria compositor [e não teria montado a Orange Poem, de quebra — embora que a motivação desta foi ser a Pink Floyd baiana]. Bob Marley & The Wailers é o embrião, mas é a Legião Urbana que de fato me fez querer ser artista. Indiretamente, continuei na literatura para ser um letrista como o trovador solitário. Reconheço: se eu não fosse legionário, não teria escrito os meus livros.
          Eu não seria escritor sem o Renato.”


          “Pink Floyd. A banda de rock que mais gosto; tenho todos os álbuns [guardados dentro uma caixa, joias em formato de CDs], vou ouvir sempre. Gilmour é o guitarrista que mais amo, os solos que me fazem esquecer da matéria, a recriar o espaço & tempo [escrevi o poema ‘Chora, guitarra’ para homenageá-lo, disponível no livro ‘Quem se habilita a colorir o vazio?’]. Waters é a mente brilhante, o poeta ácido, que contesta e expõe as feridas, contra as guerras e os muros. Pink Floyd me ensinou fundamentos que apliquei nas minhas composições e produções: o progressivo de ambientes a conduzir as músicas cinematograficamente; o experimentalismo cancioneiro de contrapor e fundir opostos; a psicodelia que transcende e eleva a mente às ondas do sublime. O ‘fluido rosa’ coloriu de laranja o meu poema: conduzi a sonoridade da Orange Poem querendo permanecer o Pink Floyd vivo em mim.
          Na escola de rock, demoro para compreender o ‘fluido rosa’. Só o combo ‘fã de solos de guitarra graças ao parto do Led Zeppelin + as possibilidades lisérgico-melancólico-experimentais para as canções dão um colorido massa, aprendido com o Radiohead + insistência homeopática do professor Alan’ consegue preparar o contexto para que eu perceba e admire as nuances complexas dos ingleses. Mergulho na psicodelia como estilo de arte para a vida, para não desistir de respirar. Ouço agora a predileta ‘Comfortably Numb’ [da obra-prima ‘The Wall’]; os solos de Gilmour deveriam ser considerados patrimônio cultural da humanidade [é outro que também sei nota por nota]. Navego nas lembranças; o entorpecimento confortável dessa música provocava os maiores aplausos nos shows da Orange Poem. E eu sentia um enorme prazer em cantar ‘Ok. Just a little pin prick. There’ll be no more’ e depois meter o grito espeto ‘aaaaaaaah!’. Foda! Saudades...”


          “(...) Ser roqueiro me fez celebrar o produto mais incrível criado & realizado pelo ser humano: a música. Coleciono álbuns, canções, artistas e bandas. Amo divulgar a música nas redes, promover a sua arte no mundo. Considero o meu acervo como o patrimônio que me interessa [junto aos meus livros]. Ser roqueiro me permite curtir, dirigir, criar, transar, cozinhar, fazer trilha na mata, correr na orla, mergulhar no íntimo, vasculhar os recônditos da mente e se sentir vivo & pulsante na existência. Ser roqueiro me faz consumir arte: cinema, música, literatura...
          Ser roqueiro me gabarita como escritor.”


“Luciano tinha razão: afetadíssimo, pulo, me contorço, deito no chão, subo na mesa, meto agudos, sacolejo os músicos, enfio o violão 12 cordas na testa, o mel desce, grito: ‘dou sangue pelo rock’n’roll!!!’. Doido, doido, doido [e careta total; só tomava água mineral, garrafa de 1,5 litros colada no meu pedestal; nada contra, você é livre para usar o que quiser]. E a minha mãe, com mais de 70 anos, arrasta o meu pai & parentes para me assistir, gritando ‘uh-húúúú, bravo!’. Imagine só, uma mesa de velhinhos ouvindo o rock laranja do caçula endiabrado... Em plena década de 2020, ela ainda sente saudades dos nossos shows: ‘A Orange Poem ainda vai voltar!’ [vai não, mainha...]. E a melhor lembrança foi uma noite em que aprontei muito, enlouqueci o show todo; no fim, nós ainda no palco, desmontando as coisas e felizes pelo resultado, eis que aparece uma criatura da noite, esquisitíssima e chapadaça, pega a minha garrafa sem pedir e toma o resto da água; ficamos a observar a comédia, e a criatura traz a cereja: ‘É pra bater a mesma onda que bateu em você’. Só...”


“Quem me indica o trabalho do comparsa é o amigo Rajasí [o seu irmão Larriri era o baixista da banda Radiola, que Tadeu fazia parte]. Apareço na sua casa [o estúdio era pequenino e ficava nos fundos dela, antes de mudar para o lugar atual], numa das ruelas do bairro mais boêmio de Salvador, pertinho do mar e de onde sai o cortejo para Iemanjá no dois de fevereiro. Quando entro no seu cafofo, com um cheiro de maconha no ar, e vejo aquele cara barbudo-cabeludo, magricela figura sem camisa e de bermudas & chinelo, a cópia dos anos 1970, e o poster do disco ‘Ummagumma’ pregado na parede, com os quatro magos do Pink Floyd olhando para mim, não quero nem saber: ‘Não preciso ouvir nada, vou gravar aqui’. Agendo a gravação, sem mais. Tadeu apenas sorri. Então, hum.”


“(...) Mas como o poema se torna laranja? O acaso. No ano 2000, eu ainda não tenho um PC [que só foi comprado em agosto de 2001] e preciso mendigar ajuda alheia para digitar a produção. No apê da então namorada Leila K (...), depois de passar para o Word o novo repertório, tento criar uma logomarca no Paint. Por coincidência [ou sincronia], coloco um fundo laranja e escrevo ‘the poem’ em azul. Acho o nome pequeno [ahn? como assim?] e quero aumentá-lo. Só por isso. Como o fundo laranja me parece bonito, digito: ‘the orange poem’ [de novo em caixa baixa, como manteria pelos próximos sete anos; só grafava em caixa alta a sigla TOP; na refazenda em 2014, por sugestão de Glauber, assumo o Orange Poem, que segue até o fim]. Verbalizo: ‘dê orãnji pô~em’. Yeba! Um estalo acontece: a harmonia da pronúncia me encanta. O rock já havia vingado o sabá negro, o roxo profundo, o fluido rosa, a pimenta malagueta vermelha. É a vez do poema laranja. Quando a namorada aparece, protesta sem dó; acha a mudança ridícula e infantil. Enquanto o escracho acontece, eu foco no monitor e a onda bate: uma energia emana daquelas palavras juntas. É a eletricidade, que flutua? Um bug do monitor? O desprendimento para fugir de uma reclamação? Não. Sagrava assim o nome do meu filho: ‘the orange poem’, da mãe ‘Last Fly’. O namoro acaba meses depois, e o meu garoto se faz um homem de 22 anos quando some no mundo, para além dos meus anseios.”


“Posso morrer em paz. A beleza da interpretação do cachoeirano em inglês ‘creole’ é intraduzível! Escute, escute, escute... Em ‘Cuts’ [blues épico de mais de 10 minutos que traz no poema a constatação dos cortes que a humanidade faz na sua própria carne frágil], Seu Mateus registra a voz de quem foi expatriado, levado à força para trabalhar sem direitos numa terra hostil, repleta de desumanos carniceiros e sádicos. É a dor de quem foi forçado pela violência, sequestrado da sua liberdade, animalizado pelo modelo de sociedade que se autoproclama de bem. É com muito blues que o baobá revisita essa chaga da história, para que a civilização nunca se esqueça, nunca repita, e que haja reparação.”


“Eu sou originalmente poeta, depois virei letrista, e aí resolvi contar histórias. Sempre adorei histórias; vivo contando e apreciando a contação de histórias, acho que é uma das artes mais incríveis do ser humano. O conto me deu o conhecimento de falar o necessário com o mínimo possível. É muito legal começar como contista, porque faz com que você aprenda o máximo de edição, o máximo que você pode falar no menor tempo possível. O conto me deu a concisão, e a poesia me deu a liberdade artística, a sensibilidade. A poesia alcança a melhor afinação da nossa antena, para receber a informação dos multiversos. O romancista é onde o cérebro, o racional tem que operar, porque exige muita montagem de quebra-cabeça: você recebe a informação do astral, via energia e coração, e a história precisa ser contada dessa maneira... E aí, vem aquela pincelada maravilhosa, aquela frase linda, poética, bonita, que estaria numa poesia, mas está no romance. E o conto lhe dá o facão: você vai limpando todos os excessos, cortando principalmente os adjetivos, esses malditos do mau texto.”


“Agora, no som, Guilhermão canta: ‘Estranho é todo homem que não se sujeita à esquerda ou direita, que nunca serve, nunca se enquadra (...) Estranho é todo homem cuja alma é nômade, cuja imagem mente, nem bom, nem mau, é um homem ausente’. Putz, hitmaker, eu me acho nesses versos; você me traduz, e traduz o nosso país — o seu mundo e o nada mais a rondar o coração.”


“Estou de cara com essa mudança. Desde os anos 1990 que eu frequento cinemas. Em Salvador, fui aos originais dos shoppings Itaigara, Iguatemi e Barra; acompanhei a expansão para o multiplex; a sala enorme do Aeroclube [e o mofo e a decadência também]; as salas de arte nos museus, na Ufba, a do Paseo; o ícone do Glauber Rocha; a era Cinemark no aconchegante Salvador Shopping; a morada no Cinépolis do Bela Vista [único sem mofo e preços mais acessíveis]; até que... não senti mais falta. A pandemia almoçou o meu hábito e eu deixei para lá. Impressionante como num dia algo tem uma importância fundamental, inadmissível viver sem, e no outro, pouco importa. Deve ser o desapego do avançar da idade. Mais velho, abandonos pelo caminho, até nada restar.”


          “Começo a jornada numa terça, em julho de 2012. Eu nasço numa terça de outubro, em 1980. A sincronia opera, e o dia predileto para trabalhar em ‘oroboro baobá’ é justamente a terça, dia de Oxumaré, o orixá que anuncia o fantástico para mim e inspira a criação de Mutujikaka, a divindade guardiã. São 79 terças investidas no romance. Que beleza! E o dia com menos trabalho no romance é o domingo, com 55 ocorrências.
          A data em que mais trabalho em ‘oroboro baobá’ é 13 de junho, aparecendo por 5x nos anos de 2013, 2015 a 2018. Acho graça em saber que o dia de Santo Antônio surge dessa maneira na jornada, pois é o santo que a minha tia Regina é devota fervorosa e sempre pediu para que ele me protegesse — mas eu não tenho essa fé, ainda mais vindo de uma igreja que queimou mulheres, torturou e assassinou um monte de gente.”


          “Eu fico feliz pela sua pergunta; acho-a importantíssima, tem que ser discutida, conversada. Eu me senti muito desconfortável por escrever ‘oroboro baobá’, mas acho que a gente também não pode exagerar, exacerbar essa verificação, porque senão vamos implantar um tipo de ditadura, com o cerceamento da liberdade de expressão. O escritor pode escrever sobre tudo, e a gente deve lutar por isso, porque é a nossa liberdade de expressão. Todo mundo tem que ter a capacidade e a disposição de escrever sobre tudo.
          Eu não sou branco. Eu sou mestiço. Assumo a minha mestiçagem. Não sou branco, mas posso ser considerado fenotipicamente branco. E eu não posso ser o porta-voz da causa negra. Uma coisa é você patrulhar quem quer se promover sobre a causa alheia, e outra coisa é você não permitir que a arte exista na mão de todos. Eu posso escrever sobre a mulher. Uma mulher pode escrever sobre um homem. Por que não? Sim, deve ser possível. Agora, a promoção, o lugar de ser o representante de, é isso que a gente tem que patrulhar. Eu espero que o meu livro nunca seja chamado de referência de literatura negra, mas eu espero que os negros leiam ‘oroboro baobá’ pela busca da arte, por querer consumir arte.”


“Terça, 27 de abril, manhã. A pandemia do SARS-CoV2 continua a esbagaçar o Brasil, e eu, sem vacina, mantenho a forma física malhando dentro do apê 703-B: corro da varanda à lavanderia, vai e volta, volta e vai, espaço pequenino; faço exercícios aeróbicos, uma série montada pela experiência de malhar há anos, auxiliado por um pequeno colchonete e um saco plástico com cinco quilos de feijão e arroz. Começo a assistir ao filme ‘A Assistente’ (The Assistant, 2019), da diretora e roteirista australiana Kitty [protagonizado pela fenomenal atriz Julia, a Ruth de ‘Ozark’], publico o 4º post dos trechos prediletos de ‘oroboro baobá’, cozinho o feijão [acho massa malhar com os grãos e depois abrir o saco, cozinhá-los e comê-los — bate uma sensação de canibalismo] e começo a fazer o relatório do ‘Flica na Rede’ para a FPC. Cinco para o meio-dia. Pronto. Para tudo. Tiro da caixa e coloco o aparelhinho de rádio na sala. 12h em ponto, sintonizo na 107,5, e mãe acompanha o ‘Multicultura’ também. E eis que a minha voz reaparece na Educadora FM; desta vez, para falar sobre o meu romance. Giramundo!”


“(...) o 8 é o infinito de pé, é o infinito a postos.”


“No quarto mês de 2008, dou início a mais uma proposta de produção: o show ‘Organismo’, um encontro de quatro artistas com foco no cancioneiro autoral: Cal, Tiganá, Zanom e eu. Já na 2ª reunião do projeto, sou limado por Cal sem cerimônia, bem pragmático, a inserir no meu lugar o cantor e compositor baiano Carcará. Não tenho outra opção; resta-me ser o produtor executivo. Nos meses seguintes, acontecem reuniões e ensaios, mas o show não estreia e o projeto é arquivado [se não há patrocínio, ou se realiza rapidinho na camaradagem, ou então o empenho vai ser sufocado por zilhões de outros compromissos, ainda mais numa combinação de quatro artistas]. Hoje, eu percebo que o encontro é o que valeu: as risadas a rodo, a troca de informações, de causos e histórias impagáveis, a celebração de lindas canções, o reconhecimento mútuo do talento de artistas ainda desconhecidos do grande público, sem nenhum CD gravado (...) Eu sinto mais afinidade com Tiganá: a sua tranquilidade, a inteligência sagaz & ampla, o humor afiado, o axé que faz do seu abraço uma usina de energia, o talento fora do comum, poliglota & filósofo, composições que surpreendem, o violão que conversa com o íntimo, a voz grave que comprova que o ser humano pode alcançar o extraordinário.”


          “Graças a LucaSande, me formei na Ufba (...) A geração xibiatagem favoreceu e muito, mas se não houvesse o nosso astro quase BBB, o que ostentava um taco de beisebol para receber os calouros e imitava o velociraptor melhor que Jurassic Park, as piadas, risadas & tiradas não teriam a potência e a eficiência que transformaram meninos em homens. Na nossa Varandinha, o torcedor do Baêa esperava o momento exato para transmutar a besteira que um dizia num desfecho surpreendente, numa teoria nova e psicodélica, pura alegria, mística natural.
          Surreal. É muito difícil e assustador aceitar que um ser além como LucaSande, entupido de vida & energia, com um repertório vasto & interminável para nos ajudar a desmitificar o complexo e compreender que o melhor da vida é o grande coração, partiu antes de nós, aos 32 anos, de madrugada, encontrado morto em casa, provavelmente vítima de um aneurisma cerebral ou infarto. O melhor de nós partiu antes de nós.
          Logo ele, por que ele, como é que ele vai antes de mim?”

Emmanuel Mirdad
(foto: Maíra Rebouças)

          “O imperador da razão, a precisão do verbo, a eficiência da análise, o implacável humor, a enciclopédia da linguagem cinematográfica, o jornalista experiente, o crítico estilista, o cachaceiro figuraça, o boêmio ateu, o esganiçador das misérias humanas. O nosso mestre Setaro, de tantas & tantas gerações faconianas, eterno! E o professor desanuviou a minha ignorância e me apresentou o maior cineasta: o italiano Fellini. Até os confins do universo sou-lhe grato por isso! Bravo!
          (...)
          A 1ª vez que vejo Setaro é um divisor de águas na minha vida. Calouro, entro na sala de aula com os colegas, e todos se silenciam ao ver um senhor barbudo, de pernas cruzadas, em silêncio, tragando o seu cigarro até abarrotar os pulmões. Silêncio geral, atônitos todos. Eis que o senhor abre a boca, deixa escapar a fumaça e, entre as baforadas de um caboclo, fala, pausadamente, com a sua voz rouca: ‘Ahhhhh... linguageemmmmm... cinema----toGRÁficaaa...’ Mudou o mundo, mudou tudo.”


“O caixão é maior do que a cova. Os funcionários do Campo Santo tentam uma, duas, três vezes. Nada do esquife descer. Começamos a ironizar. A voz de Setaro passeia com o vento: ‘Vocês não vão me enterrar, hahaha’. Capto o mistério do caboclo e arrumo um jeito: peço aos fumantes presentes que acendam os seus cigarros em homenagem ao professor. Os isqueiros alumiam o começo de tarde no cemitério, e vários faconianos arremessam cigarros acesos na cova, a baforar para o mestre. Evoé: o caixão finalmente é colocado na sepultura, mas não na horizontal, e sim a terra a enquadrá-lo em contra-plongée, com uma salva de palmas e gritos de bravo, Setaro! The End.”


“(...) O que faz a festa literária ser esse sucesso esmagador, esse sucesso incrível que provoca nas pessoas, é a experiência literária, a vivência do evento na cidade onde ele está sediado, ou seja, turismo, cultura e educação, que caminham juntos, porque o nosso tipo de evento deixa legado, cria e cristaliza nas pessoas a formação de novos leitores e a apreciação da cultura literária. E nós precisamos estar juntos, próximos, vivenciando a cidade; é assistir os autores na mesa, depois ir para a fila conseguir contato com aquela pessoa que a gente admira, adquirir o autógrafo, tirar uma foto juntos, e depois sair para comer água, para pegar gente, dançar, celebrar a vida; por isso que é uma festa.”


“Eu lembro do cronista Cury: ‘como é que um evento é patrocinado com dinheiro público e cobra ingresso?’. Eu já fiz evento patrocinado com dinheiro público e cobrei ingresso. Hoje, percebo que Cury está certo. Acredito que, entrou dinheiro público, tem que ser de graça. Aí, os meus colegas se retam: ‘como é que você fala um negócio desse, Mirdad... como a gente vai conseguir a sustentabilidade da empresa?’. Não quero advogar contra, mas conceitualmente o correto é não cobrar. Contudo, não conseguimos encontrar a solução para conquistar a sustentabilidade; então, passo o pano: vocês podem continuar cobrando. É um paradoxo. Enquanto a gente não resolve isso, como cortar essa fonte de renda?”


“O pai sente falta do seu caçula; cúmplices no amor ao Baêa, parceiros de torcida, sócios do clube, iam a todos os jogos na Fonte Nova. Os amigos e parceiros de negócios comentavam, em buchichos e risadinhas. Seubrito não rendia assunto, nem puxava briga; sempre soube, desde pequeno, que o filho é gay. Ama-o com a mesma intensidade que a primogênita e, com o passar dos anos, se aproximara dele; Leandro é, mesmo que ele não assuma, o seu predileto. Seubrito é um homem liberal, livre de certas formatações do óbvio, um gentleman da neutralidade, amigo de patrões e operários, de militares e foras da lei, de conservadores e socialistas, de evangélicos e ateus. No começo da sua empresa — aberta com o financiamento do seu pai fazendeiro, coronel do interior, que cobrou a dívida até ser pago —, quando comandava a equipe que ergueu uma ponte no Rio Grande do Norte, Seubrito foi se divertir num brega e, de lá, trouxe para a Bahia a mulher da sua vida, uma sertaneja como ele, apaixonada pelo litoral; uma ‘cabeça de vento’, segundo o apaixonado [Vaninha sempre levada pela maré da boa vida & risadas]. Porém, não faz muitos dias que Seubrito incentivou Leandro a adotar uma criança nordestina antes da nigeriana proposta pelo genro Frank. Do bairrismo, não se liberou.”


“(...) E eu adoro esse jeito de produzir: o amigo grava, à vontade, várias faixas com as vozes principais de ‘À Beira’, ‘Judi’ e ‘Meu Negro’ por completo. Seis, sete, oito faixas. Depois, ele vai relaxar e eu oriento a montagem, frase a frase, das melhores interpretações, de uma maneira negociada com Tadeu [ele pondera por outra opção, às vezes concordo, mas a última palavra é minha]. Ao final, a faixa ‘Frankenstein’ fica tão natural que parece que foi gravada de uma vez só, mas condensa o melhor que o artista sentiu e se expressou durante toda uma sessão, sem se preocupar em parar para corrigir afinação, intenção ou erro na letra. Yeba!”


“Outro livro de contos que gosto muito, também de literatura norte-americana, é ‘Além das montanhas’, do Offutt, que é definido por Mayrant assim: ‘reúne tudo o que se espera de um contista nato: fluência, trama envolvente, movimentação no tempo e no espaço, alternância de narração, descrição e diálogo, uma linguagem ao mesmo tempo funcional e poética, com rasgos filosóficos, representação relevante da vida e do mundo, reflexão e, às vezes, ciframento, desfechos condizentes ou conflitantes com a trama, atmosfera, mistério e ironia’. Uau! O professor resume com perfeição o que deve ser um contista. Quer ser um? Ou então: é um? Copie e imprima esse resumo para memorizá-lo e internalizá-lo.”


          “(...) estreio as publicações de 2017 no Facebook com uma imagem sem legenda: uma foto horizontal de uma das pontas da ilha Pitcairn [não achei crédito], mexida em P&B, que parece o dorso de um lagarto deitado no oceano, com uma palavra destacada em vinho, de uma ponta a outra do retrato, ‘ἱεροφάντης’, que significa ‘hierofante’ em grego. Quem viu, deve ter pensado: ‘que diabo é isso?’. Doido, doido...
          Defino a premissa ‘filosófica’ do projeto de romance: ‘É bom onde não estamos’. Diferente de ‘oroboro baobá’ [‘ontem é hoje, amanhã é hoje, tudo o que nos forma é hoje’], não é minha. Em 2015, leio o conto ‘Uma crise’, do mestre russo Tchekhov, e me encanto com um diálogo [pg. 94 do espetacular ‘O beijo e outras histórias’] em que o personagem Vassíliev pergunta de onde a senhora vem; ela responde, ele comenta que é uma boa terra, e ela arrebenta: ‘É bom onde não estamos’. Uau! O tradutor Schnaiderman abre uma nota para explicar que é um provérbio russo. Guardo o bendito (...) Giramundo, 2017, ao analisar o que quero escrever sobre Pitcairn, percebo que se trata de uma história ‘a grama do vizinho é mais verde’, sobre a esperança humana de que existe um lugar, além donde se mora, em que a felicidade poderá ser vivenciada, os sonhos, a mudança, a cura, etc. Ou seja, ‘é bom onde não estamos’. Vou lá no arquivo e resgato o provérbio, a torná-lo a premissa ‘filosófica’ de ‘O hierofante da ilha Pitcairn’. (...) Agora, é só aguardar o momento de escrevê-lo. E o estampido do vulcão da alegria ecoa no meu canto do mundo. É o Olodum, em segundos: ‘Avisa lá que eu vou chegar mais tarde, oh, yes’.
          Não vou chegar mais. ‘O hierofante da ilha Pitcairn’ não vai ser feito. Ia contar a história de seis pessoas; três moradores da ilha e três estrangeiros. Os que moram fora, querem chegar a Pitcairn, para modificarem as suas vidas ou encontrarem um novo sentido ou se isolarem num lugar remoto em busca de fugir de algo que os sufoca, enquanto dois moradores querem sair da ilha, não aguentam mais viver no isolamento [uma é vítima de estupro e a outra é uma contestadora libertária], e o outro não quer sair, mas será obrigado a. Todos têm vínculos históricos ou com o motim do Bounty, ou com a descoberta da ilha e fundação da comunidade, ou com o julgamento dos estupros em 2004.”


“Eis a fonte das mil inspirações, tríade que me sustenta como artista: ler livros, ouvir músicas e assistir a filmes. E, no cap. ‘Cinéfilo’, afirmo que ser cinéfilo também me gabarita como escritor profissional. Pois agora, amplio: todas essas séries estão, cada qual numa medida peculiar, no fundamento em que ergo o romance ‘oroboro baobá’ [e no que veio depois]: ‘Game of Thrones’, ‘The Walking Dead’ [1ª à 4ª], ‘Breaking Bad’, ‘Lost’, ‘Rick and Morty’, ‘Twin Peaks’, ‘Billions’, ‘Anne with an E’, ‘Black Mirror’, ‘The Sinner’ [1ª], ‘Dark’ [1ª], ‘Olhos que Condenam’, ‘O Avanço da Fênix’, ‘BoJack Horseman’, ‘Downton Abbey’, ‘Outlander’, ‘House of Cards’, ‘Vikings’, ‘Marco Polo’, ‘Fargo’, ‘Atlanta’, ‘Narcos: México’, ‘Mr. Robot’, ‘Dear White People’, ‘Boneca Russa’ e ‘River’.”


“‘Goza que eu te escuto’ seria-um-romance sobre um amante que ajuda as mulheres a melhorarem ou superarem os relacionamentos, enquanto transam & gozam com ele. Yeba! No último capítulo de ‘O enigma de Mutujikaka’, programo: ‘E eu acabo um e já penso no próximo. Vamos transar, meu povo! O próximo livro do romancêro vai ter um monte de putaria. Sexo vende’. Ou seja, ‘Goza que eu te escuto’ era para começar a ser escrito um ano depois que o planejei. O que aconteceu? ‘O lampião e a peneira do mestiço’ fura a fila e enterra viva a putaria que finalmente poderia conquistar leitores para mim. Será? 2022 à beira do fim, enquanto escrevo essas linhas, penso que poderia retomá-lo, não como romance, e sim como memórias...”


Presentes no livro de memórias “O lampião e a peneira do mestiço” (2023), de Emmanuel Mirdad, páginas 188, 08, 18, 417, 105-106, 112, 202, 335, 347-348, 325-326, 249-250, 12 a 14, 43-44, 45-46, 55-56, 65-66, 67, 79-80, 81, 94-95, 111, 321-322, 35-36, 184-185, 351, 320-321, 349, 350, 26-27, 20-21, 166-167, 171, 322, 415, 244-245, 124, 390, 252 a 254, 205-206 e 268, respectivamente.

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