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Os melhores trechos do doc A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos



“A minha mãe vive no pôr do sol e todos os dias mergulha no fundo do mar.”


“Aquilo que o ser humano não consegue explicar, inventa.”


“O mar despreza os meus problemas. Mas ele tem tanto com que se preocupar (...) São tantas as ondas que tem de criar todos os dias. São tantos os peixes que o usam como casa. São tantas as almas que ficarão aqui para sempre. Não tem tarefa fácil, o mar (...) Sei que ele já estava cá antes de nós e que, quando nós já formos tão velhinhos que não nos sobra nada mais do que morrer, ele vai ficar aqui. Deixa-me sempre muito espantado como é que uma coisa tão infinita consegue entrar por nós adentro.”


“Os outros filhos parecem rios. E lembro-me daquela frase: ‘Toda a gente fala da violência dos rios que tudo arrastam, mas ninguém fala da violência das margens que os comprimem’.”


“Um dia, Jacinto, perguntou a Triz o quanto gostava dele. Triz respondeu: ‘Experimenta contar as penas dos pássaros, os grãos de areia, as estrelas do céu, as ondas no mar. Experimenta enumerar as escamas de todos os peixes, os pelos de todos os animais, as ervas dos campos que te rodeiam, as árvores e os seus frutos, e conta o número incalculável de tantas outras coisas incalculáveis’. ‘Isso é impossível’, disse Jacinto. ‘Impossível? Não. Mas é muito’.”


“Por vezes, Catarina esmoreça e faltava-lhe a clareza do olhar da mãe, sobrando-lhe apenas a convicção de que as mães eram os únicos deuses que não tinham descrentes em terra.”


“(...) passei pelo cozinheiro aqui da barca. Perguntei-lhe: ‘E o que é que é o jantar hoje, ó Tavares?’. ‘Arroz de corações, Sr. Tenente’. Instintivamente e lívido, levei a mão no peito, não fosse o diabo tecê-las. Lembrei-me depois que, mesmo que o Tavares se metesse na indigna tarefa de me arrancar o coração, não encontraria nada. Porque o meu coração ficou em terra, convosco.”


“O domínio do mar no mundo é tal que o nosso planeta Terra deveria ter sido batizado de Oceano.”


“Observava cada rosto e imaginava o terror daquelas pessoas quando do mar chegaram homens de outras terras que diziam que aquele lugar agora lhes pertencia. E sacando de chicotes e penas, os portugueses começaram logo a escrever por cima deles. Jacinto não conseguia deixar de pensar: ‘Não se pode descobrir um continente onde já vivem milhões de habitantes’.”


“(...) entre o choro e a ira, o Jacinto disse-me que jamais aceitará que o dever é mais importante que o prazer. Quando o tentei abraçar, ele disse-me: ‘Mãe, todos os dias a rota da Terra muda, como se nos dissesse que também nós temos de mudar’.”




“Os mistérios habitavam nos detalhes.”


“(...) sabia ter a paciência e a sabedoria das árvores. A relação que tinha com Henrique era semelhante àquela que tinha com Deus. Embora não se visse, Beatriz sentia-o por toda a casa.”


“Quando os meus olhos pousavam nela, todo o meu corpo de pássaro encontrava a felicidade e a calma que só as mães nos sabem dar.”


“Conheço melhor as minhas mãos do que conheço o meu rosto. Todos os dias estas minhas fiéis cúmplices acordam as minhas manhãs no mundo. Dão-me banho, secam-me e, morosamente, lançam-se às ondas do meu cabelo. (...) Desenganem-se aqueles que pensam que as mãos nos pertencem. Nós pertencemos às mãos. São elas que sabem quando podar as árvores do nosso jardim (...) são elas que, já cansadas do dia, me seguram a cabeça enquanto eu vejo os sorrisos dos nossos pássaros.”


“Às vezes, os olhos de Tereza pousavam demoradamente sobre a tomada do quarto. As tomadas, as fêmeas, estavam presas às paredes das casas, sem se poderem mexer. Mas sem as tomadas, não existia a luz, o aquecimento da casa, as máquinas de secar ou as máquinas de barbear. Já as fichas, podiam passear-se pela casa toda, podendo entrar nas tomadas que bem lhes apetecesse.”


“As mãos das mães, cheias de naufrágios passados, mas onde existem flores que nascem todos os dias. Nas mãos das mães há sempre sono e há sempre tempo.”


“Dá-me a capacidade de ter coisas que são só minhas, por mais solitário que, por vezes, possa ser. Dai-me tempo e a coragem para esperar, mesmo não sabendo porquê. Dai-me a coragem para saber que, às vezes, não vai correr tudo bem, porque, às vezes, as coisas não correm bem. Dai-me a capacidade de ser também o meu avesso e, no fim, quando já tiveres fechado todas as lojas, quando já tiveres desligado a música de todos os cafés, quando já não existirem mais pessoas nos escritórios e quando as ruas começarem a ficar mais cheias da sua solidão, deixai-me morrer de pé, como as árvores.”


“(...) a linguagem dos pássaros só se revela àqueles que deixam de ter corpo.”


“No dia em que Triz morreu, eu disse pela última vez a primeira palavra que disse na minha vida. Respirei fundo e disse de forma a só eu ouvir: ‘Mãe’.”


“Os mortos não sabem que estão mortos. A morte é uma questão dos vivos. (...) os dias em que algo tão grande acontece, como o dia em que uma mãe morre, nunca se tornam memórias. Ficam para sempre presos em nós, como se fossem sinais que nascem na nossa pele para nunca mais saírem. São demasiado dolorosos para atravessarem o nosso cérebro. Por isso, mantemo-los na pele.”




“Embora estivéssemos em plena primavera, quando perdemos a minha mãe, sobre o nosso mundo abateu-se um outono igual à tristeza que sentíamos. Todos os dias, o sol nascia. Todos os dias, continuava a haver uma manhã, uma tarde e uma noite. E todos os dias os rios continuavam a atirar-se para o mar, sem medo que ele transbordasse. E, para nós, era tudo demasiado triste. Éramos uma natureza morta. Observávamos o mundo como se estivéssemos dentro de um quadro. E fora dele, a vida teimava em continuar.”


“A minha mãe não era só mãe, era uma árvore. (...) Quando a minha mãe morreu, deixamos de poder balançar nos seus ramos e caímos por terra. Todos. Nunca me esqueci de como era ver o mundo, empoleirado nos seus braços.”


“Mãe, tu é que foste com os pássaros, mas é de ti que me lembro sempre que vem a primavera.”


“Sê do tamanho daquilo que vês e não do tamanho daquilo que sentes.”


“(...) Minutos antes de zarparmos, recebemos a tão almejada correspondência. Estávamos a duas semanas sem correio e sabes lá Beatriz como isso pode levar o mais sensato dos homens às loucuras mais inqualificáveis (...) Nos dias em que se recebem cartas, há um silêncio sepulcral que se abate sobre o navio. Mas quando o vento muda, consigo desvendar nas entrelinhas da quietude as palavras mais comoventes de famílias que, como a nossa, aprenderam a lidar com o ofício da saudade.”


“Todos os dias, a rotina é a mesma, mas o meu corpo já começa a sentir nos ossos quando o tempo muda. Ainda me comove o clarim que acorda o dia, puxando o sol para cima do mar. Depois destes anos todos, ainda me impressiona a forma como a bordo destes navios frágeis procuramos as pequenas coisas que fazemos em terra, como se ao fazê-lo o mar se tornasse mais humano. (...) Não vemos terra há duas semanas e começo a sentir o meu olhar a afiar-se enquanto fixa o horizonte. E não sou o único. Juntamente comigo estão 150 homens que o olham, pensando que, naquela linha que separa o mar do firmamento, cabem todos aqueles que amamos.”


“Catarina nunca pensou que um dia poderia vir a nutrir ciúmes das nuvens e dos picos das montanhas, que desafiavam as alturas numa relação de intimidade com o céu. Mas estava medida no tamanho do seu corpo, que já não servia para as coisas que sentia. Entre ela e aquilo que via, cabiam todas as mães do mundo. E quando olhava fixamente as cumeadas, perturbava-a pensar na facilidade com que o tamanho colossal das montanhas entrava nos seus olhos estreitos, como se a vissem por dentro.”


“Abri a porta de casa. Fechei-a devagar, para que nem o silêncio a ouvisse. Todos dormiam. Apanhei o primeiro autocarro para o sítio que fosse mais perto do céu. Existiam muitas coisas que não percebia, mas sabia que o céu era o lugar para onde a humanidade atirara tudo aquilo que não compreendia. Deus, os mortos, o infinito e os óvnis viviam todos nesse espaço desconhecido, dividindo-o de forma civilizada, para caberem todos. Se o céu era o sítio onde começava o incógnito, a paisagem era aquilo que fazia a ponte entre o conhecido e o desconhecido. Entre o visível e o invisível. E eu queria muito ser invisível. A paisagem não pertence a ninguém, diz-se, mas, quando a vi, dei-lhe os meus olhos.”


“Quando eles sobem às árvores, sei que os meus olhos só veem a probabilidade da queda. Mas, nos deles, existe só a promessa de voarem. Mãe, que já viste tantas mães antes de mim, dá-me um coração do tamanho de uma baleia que, com calma, submerge nas tempestades. Ou um coração alto como as copas das árvores para, ao longe, poder sempre acompanhar o voo dos meus filhos, que não têm medo do vento.”


“Jacinto cresceu a acreditar que, um dia, poderia viver um bocadinho acima do chão, nesse sítio onde os pássaros existem sem o peso e a gravidade das coisas da terra.”


Presentes no documentário português “A Metamorfose dos Pássaros” (2020), da diretora e roteirista Catarina Vasconcelos.

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