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Quinze passagens do livro O diário de Guantánamo, de Mohamedou Ould Slahi



“(...) para um país entregar seus próprios cidadãos a outro país não é fácil. O presidente queria não ter de me entregar. Eu me pergunto por quê. Afinal, isso depois lhe custou o cargo. Entendo que, se os Estados Unidos me capturassem no Afeganistão e me levassem para GTMO por qualquer motivo que fosse, meu governo não poderia ser responsabilizado por eu ter decidido ir para o Afeganistão. Mas sequestrar-me de minha própria casa em meu país e entregar-me aos Estados Unidos, violando a constituição da Mauritânia e as usuais leis e tratados internacionais, não estava certo. A Mauritânia deveria ter pedido aos Estados Unidos que apresentassem evidências que me incriminassem, o que não poderiam, porque não tinham nenhuma. Mas mesmo se os Estados Unidos o fizessem, a Mauritânia deveria ter me tratado de acordo com o código criminal da Mauritânia, exatamente como faz a Alemanha com seus cidadãos que são suspeitos de terem participado do Onze de Setembro. Por outro lado, se os Estados Unidos dizem: ‘Não temos evidência’, então a resposta da Mauritânia deveria ser algo como ‘Foda-se!’. Mas não, as coisas não acontecem dessa maneira. Não me interpretem mal, no entanto: não culpo os Estados Unidos tanto quanto culpo meu próprio governo. (...) Vinte e oito de novembro é o dia da independência da Mauritânia; marca o evento em que a República Islâmica da Mauritânia teria ganhado sua independência dos colonialistas franceses, em 1960. A ironia é que nessa mesma data, em 2001, a independente e soberana Mauritânia entregou um de seus próprios cidadãos, por uma premissa. Para sua perpétua vergonha, o governo mauritano não só violou a constituição, que proíbe a extradição de criminosos mauritanos para outros países, mas também extraditou um cidadão inocente e o expôs à aleatória justiça americana.”


“(...) crime é uma coisa relativa; é algo que o governo define e redefine sempre que lhe convém. A maioria das pessoas não sabe, na verdade, onde fica a linha que separa o que é e o que não é transgredir a lei. Quando se é preso, a situação piora, porque a maioria das pessoas acredita que o governo tem boas razões para essa prisão. (...) É claro que nos Estados Unidos o governo e a política nos últimos tempos vêm ganhando mais terreno em detrimento da lei. O governo é muito esperto; evoca o terror no coração das pessoas para convencê-las a abrir mão de sua liberdade e sua privacidade. Verdade que pode levar algum tempo até que o governo dos Estados Unidos se sobreponha totalmente à lei, como no terceiro mundo e nos regimes comunistas.”


“Acreditei, erroneamente, que o pior tinha passado, e assim fiquei menos preocupado com o tempo que levaria para que os americanos concluíssem que eu não era o cara que eles estavam procurando. Eu confiava demais no sistema de justiça americano e partilhei essa confiança com os detentos de países europeus. Todos tínhamos uma ideia de como funcionava o sistema democrático. Outros detentos, por exemplo, os do Oriente Médio, não acreditavam nisso nem por um segundo e não confiavam no sistema americano. O argumento no qual se baseavam era a crescente hostilidade por parte dos extremistas americanos contra os muçulmanos e os árabes. A cada dia os otimistas perdiam terreno. Os métodos de interrogatório pioravam consideravelmente à medida que o tempo avançava, e como se verá, os responsáveis por GTMO romperam com todos os princípios sobre os quais os Estados Unidos eram estruturados e comprometeram cada grande princípio como o de Ben Franklin: ‘Aqueles que abrem mão da liberdade essencial para obter um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança’.”


          “Uma lenda popular mauritana conta a história de um homem que tinha fobia de galos e quase perdia a razão sempre que se deparava com um galo.
          ‘Por que você tem tanto medo do galo?’, perguntou-lhe o psiquiatra.
          ‘O galo pensa que eu sou milho.’
          ‘Você não é milho. Você é um homem muito grande. Ninguém pode confundir você com um pequeno grão de milho’, disse o psiquiatra.
          ‘Eu sei disso, doutor. Mas o galo não sabe. Seu trabalho é ir até ele e convencê-lo de que eu não sou milho.’
          O homem nunca ficou curado, uma vez que falar com um galo é uma coisa impossível. Fim da história.
          Há anos venho tentando convencer o governo dos Estados Unidos de que eu não sou milho.”


          “(...) Os interrogadores dos Estados Unidos sempre tendiam a mencionar comida e tratamento médico ilimitados para os detentos. Eu não compreendo que outras opções eles teriam! Eu, pessoalmente, tinha sido um detento em países não democráticos, e o tratamento médico era de alta prioridade. O bom senso determina que se um detento ficar gravemente doente não haverá informações, e é bem provável que ele morra.
          Passamos quase dois meses nessas argumentações. ‘Levem-me para o tribunal, e responderei a suas perguntas’, eu dizia à equipe.
          ‘Não haverá tribunal!’, eles respondiam.
          ‘Vocês são uma máfia? Vocês sequestram pessoas, as mantêm trancadas e as chantageiam’, eu disse.
          ‘Vocês são um caso problemático para a aplicação da lei’, disse [----]. ‘Não podemos aplicar a lei convencional em vocês. Só precisamos de evidência circunstancial para fritar vocês.’
          ‘Não fiz nada contra o seu país, fiz?’
          ‘Você é parte de uma grande conspiração contra os Estados Unidos!’, disse [----].
          ‘Você pode fazer essa acusação a qualquer pessoa! O que foi que eu fiz?’
          ‘Eu não sei, me diga você!’”


“(...) Saímos da caminhonete, os guardas carregando minha bagagem, e todos passando direto pelos procedimentos diplomáticos, até a sala de espera. Era a primeira vez que eu cortava caminho ao passar pelas formalidades civis, ao deixar um país e seguir para outro. Seria uma delícia, mas eu não aproveitei. Todo mundo no aeroporto parecia estar preparado. À frente do grupo o interrogador e o sujeito branco continuavam a exibir os distintivos mágicos, levando todos junto com eles. Pode-se dizer que o país não era soberano: ainda era a colonização em seu aspecto mais feio. No chamado mundo livre, os políticos proferem coisas tais como patrocinar a democracia, a liberdade, a paz e os direitos humanos: que hipocrisia! E muita gente ainda acredita nesse lixo de propaganda.”


“Muitos homens e mulheres jovens entram para as Forças Armadas dos Estados Unidos por causa da propaganda enganosa do governo, que leva as pessoas a acreditar que as Forças Armadas são apenas uma grande Batalha de Honra: se entrar para o Exército, você é um mártir vivo; estará defendendo não só sua família, seu país e a democracia americana, mas também a liberdade e os povos oprimidos do mundo inteiro. Ótimo, não há nada errado com isso; pode até ser o sonho de todos os jovens. Mas a realidade das forças americanas é um tiquinho de nada diferente disso. Para ir direto à conclusão: o resto do mundo pensa nos americanos como um punhado de bárbaros vingativos. Pode ser duro, e eu não acredito que o americano médio seja um bárbaro vingativo. Mas o governo dos Estados Unidos aposta até a última ficha na violência como solução mágica de todos os problemas, e assim o país vai perdendo amigos a cada dia, e parece não dar a menor importância a isso.”


“(...) Quando se pensa que a vida está caminhando a seu favor, ela o trai.”


“(...) Diz o provérbio alemão: ‘Wenn das Militär sich bewegt, bleibt die Wahrheit auf der Strecke’. Quando os militares se põem em movimento, a verdade é lenta demais para acompanhar, e assim ela fica para trás. (...) A lei de guerra é dura. Se existe algo de bom numa guerra é que ela extrai das pessoas o que elas têm de melhor e de pior: algumas pessoas tentaram usar a ausência da lei para atingir outras, e algumas tentaram reduzir o sofrimento ao mínimo possível.”


“Entendo a raiva e a frustração dos Estados Unidos diante de ataques terroristas. Mas atirar-se sobre indivíduos inocentes e fazê-los sofrer, em busca de falsas confissões, não ajuda ninguém. Só faz agravar o problema. Eu diria sempre aos agentes dos Estados Unidos: ‘Caras! Tenham calma! Pensem antes de agir! Considerem uma pequena porcentagem de possibilidade de que vocês podem estar enganados antes de ferir alguém irreparavelmente!’. Mas quando alguma coisa ruim acontece, as pessoas começam a desatinar e a perder a compostura. Tenho sido interrogado durante os últimos seis anos por mais de cem interrogadores de diferentes países, e eles têm uma coisa em comum: confusão. Talvez os governos queiram que seja assim, quem vai saber?”


“O PC pertencia à empresa que confiava em mim, e o fato de um país estrangeiro como os Estados Unidos estar examinando o disco e confiscando material era um grande ônus para a empresa. O PC guardava os segredos financeiros de uma empresa, os quais a empresa não queria partilhar com o resto do mundo. Além disso, eu trabalhava para uma empresa familiar, e a linha que dividia a empresa e suas vidas privadas era tênue, o que significava que o computador também continha dados privados que a família não ia querer partilhar com o mundo. E além de tudo isso, no escritório o PC era uma estação partilhada, e qualquer um podia usá-lo, e o usava, e assim havia muitos dados dos quais eu nada sabia, embora estivesse 100% certo de que não havia nenhum crime por trás disso, conhecendo meus colegas, sua dedicação ao trabalho e a sua vida. Eu pessoalmente trocava e-mails com amigos muçulmanos, sobretudo qualquer um dos que deram ajuda financeira ou espiritual às pessoas oprimidas na Bósnia ou no Afeganistão, porque suas mensagens seriam maldosamente interpretadas. Imaginem-se só em meu lugar e pensem em alguém invadindo suas casas e tentando bagunçar toda a sua vida privada. Você receberia bem uma agressão dessas?”


“(...) Há duas coisas que todos os funcionários do governo têm em comum: eles não respeitam os compromissos e nunca começam a trabalhar na hora.”


          “Depois de ouvir todo tipo de ameaça e declarações degradantes, comecei a perder grande parte da conversa entre os árabes e seus cúmplices americanos, e a certa altura mergulhei em meus pensamentos. Tinha vergonha de que meu povo estivesse sendo usado para esse horrível trabalho por um governo que afirma ser o líder do mundo livre democrático, um governo que prega contra a ditadura e ‘luta’ pelos direitos humanos e manda seus filhos para a morte por esse objetivo: que peça esse governo prega em seu próprio povo?
          O que pensaria o americano comum se visse o que seu governo está fazendo com pessoas que não cometeram crime algum contra ninguém? Por mais vergonha que eu tenha sentido daqueles árabes, eu sabia que eles não representam em absoluto o árabe comum. O povo árabe está entre os melhores do planeta, sensível, emotivo, amoroso, generoso, sacrificado, religioso, caridoso e alegre. Ninguém merece ser usado para um serviço tão sujo, por mais pobre que seja. Não, nós somos melhores que isso! Se o povo do mundo árabe soubesse o que está acontecendo neste lugar, o ódio contra os Estados Unidos seria exacerbado e a acusação de que os Estados Unidos estão ajudando ditadores de nossos países e trabalhando com eles se confirmaria. Tenho um pressentimento, ou melhor, uma esperança de que essa gente não fique impune por seus crimes. A situação não me fez odiar árabes ou americanos; apenas me sinto mal pelos árabes e por sermos tão pobres!”


          “Agora eu estava diante de um bando de cidadãos americanos bem comuns. Minha primeira impressão, quando os vi mascando [chiclete] sem parar foi: O que tem errado com esses sujeitos que eles têm de comer tanto assim? A maioria dos guardas eram altos, e com excesso de peso. Alguns deles eram amigáveis, outros, hostis. Sempre que eu me dava conta de que um guarda era mais, eu fingia não entender inglês. Lembro-me de um caubói vindo até mim com expressão carrancuda no rosto:
          ‘Você fala inglês?’, ele perguntou.
          ‘No English’, respondi.
          ‘Não gostamos que você fale inglês. Queremos que você morra lentamente’, ele disse.
          ‘No English’, continuei a responder. Não queria dar a ele a satisfação de pensar que sua mensagem tinha sido recebida. Pessoas com ódio têm sempre algo a arrancar de seus peitos, mas eu não estava disposto a ser esse dreno.”


“Nas várias noites seguintes em isolamento, tive um guarda divertido, que ficava tentando me converter ao cristianismo. Eu gostava das conversas, apesar de meu inglês ser o básico. Meu parceiro de conversa era jovem, religioso e enérgico. Ele gostava de Bush (‘o verdadeiro líder religioso’, segundo ele); odiava Bill Clinton (‘o Infiel’). Gostava do dólar e odiava o euro. Tinha sua cópia da Bíblia com ele o tempo todo, e sempre que surgia uma oportunidade ele lia histórias para mim, a maioria do Velho Testamento. Eu não seria capaz de compreendê-las se não tivesse lido a Bíblia em árabe várias vezes — sem falar que as versões das histórias não estavam tão distantes das do Corão. Eu tinha estudado a Bíblia na prisão jordaniana; pedi um exemplar e eles me deram. Foi muito útil para compreender as sociedades ocidentais, mesmo que muitas delas neguem estar sob a influência de livros sagrados. (...) Não tentei argumentar com ele. Estava contente por ter alguém com quem falar. Ele e eu éramos unânimes em que os livros sagrados, inclusive o Corão, devem ter vindo da mesma fonte. Depois se constatou que o conhecimento que o exaltado soldado tinha de sua religião era muito raso. No entanto, eu gostei que ele fosse meu guarda. Ele me dava mais tempo no banheiro, e até olhava para o outro lado quando eu estava usando o barril.”


Presentes no livro “O diário de Guantánamo” (Companhia das Letras, 2015), de Mohamedou Ould Slahi, páginas 195+201, 159-160, 104, 137-138, 129-130, 152, 416, 221, 109-110, 142, 243, 190-191, 332-333, 78 e 73-74, respectivamente.

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