Hino a Deus
Bertolt Brecht
1
No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
Mas você reina eterno e invisível
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.
2
Deixou os jovens morrerem, e os que fruíam a vida
Mas os que desejavam morrer, não permitiu...
Muitos daqueles que agora apodreceram
Acreditavam em você, e morreram confiantes.
3
Deixou os pobres pobres, ano após ano
Porque o desejo deles era mais belo que o seu céu
Infelizmente morreram antes que chegasse com a luz
Morreram bem-aventurados, no entanto — e apodreceram
imediatamente.
4
Muitos dizem que você não existe e que é melhor assim.
Mas como pode não existir o que pode assim enganar?
Se tantos vivem de você, e de outro modo não poderiam morrer —
Diga-me, que importância pode ter então que você não exista?
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Se fôssemos infinitos
Bertolt Brecht
Fôssemos infinitos
Tudo mudaria
Como somos finitos
Muito permanece.
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Epístola sobre o suicídio
Bertolt Brecht
Matar-se
É coisa banal.
Pode-se conversar com a lavadeira sobre isso.
Discutir com um amigo os prós e os contras.
Um certo pathos, que atrai
Deve ser evitado.
Embora isso não precise absolutamente ser um dogma.
Mas melhor me parece, porém
Uma pequena mentira como de costume:
Você está cheio de trocar a roupa da cama, ou melhor ainda:
Sua mulher foi infiel
(Isto funciona com aqueles que ficam surpresos com essas coisas
E não é muito impressionante.)
De qualquer modo
Não deve parecer
Que a pessoa dava
Importância demais a si mesma.
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Quando o crime acontece como a chuva que cai
Bertolt Brecht
Como alguém que chega ao balcão com uma carta importante após o horário de atendimento: o balcão está fechado. Como alguém que quer prevenir a cidade contra uma inundação, mas fala uma outra língua: ele não é compreendido. Como um mendigo que bate pela quinta vez numa porta onde já recebeu algo quatro vezes: pela quinta vez tem fome. Como alguém cujo sangue flui de uma ferida e que espera pelo médico: seu sangue continua saindo.
Assim chegamos e relatamos que se cometem crimes contra nós.
Quando pela primeira vez foi relatado que nossos amigos estavam sendo mortos, houve um grito de horror. Centenas foram mortos então. Mas quando milhares foram mortos e a matança era sem fim, o silêncio tomou conta de tudo.
Quando o crime acontece como a chuva que cai, ninguém mais grita “alto!”.
Quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis.
Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de verão.
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Os medos do regime
Bertolt Brecht
1
Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich
Ao ser perguntado quem realmente governava lá, respondeu:
O medo.
2
Amedrontado
O erudito para no meio de uma discussão e observa
Pálido, as paredes finas do seu gabinete. O professor
Não consegue dormir, preocupado
Com uma frase ambígua que o inspetor deixou escapar.
A velha senhora na mercearia
Coloca os dedos trêmulos sobre a boca, para conter
O xingamento sobre a farinha ruim. Amedrontado
O médico vê as marcas de estrangulamento em seu paciente, e cheios de medo
Os pais olham os filhos como se olhassem para traidores.
Mesmo os moribundos
Amortecem a voz que sai com dificuldade, ao
Despedirem-se dos seus parentes.
3
Mas também os camisas-marrons
Têm medo do homem que não levanta o braço
E ficam aterrorizados diante daquele
Que lhe deseja um bom dia.
As vozes agudas dos que dão ordens
Têm tanto medo quanto os guinchos
Dos porcos a esperar a faca do açougueiro, e os mais gordos traseiros
Transpiram medo nas cadeiras de escritório.
Impelidos pelo medo
Eles irrompem nas casas e fazem buscas nos sanitários
E é o medo que os faz
Queimar bibliotecas inteiras. Assim
O temor domina não apenas os dominados, mas também
Os dominadores.
4
Por que
Temem tanto a palavra clara?
5
Em vista do poder imenso do regime
De seus campos de concentração e câmaras de tortura
De seus bem nutridos policiais
Dos juízes intimidados ou corruptos
De seus arquivos com as listas de suspeitos
Que ocupam prédios inteiros até o teto
Seria de acreditar que ele não temeria
Uma palavra clara de um homem simples.
6
Mas esse Terceiro Reich lembra
A construção do assírio Tar, aquela fortaleza poderosa
Que, diz a lenda, não podia ser tomada por nenhum exército, mas que
Através de uma única palavra clara, pronunciada no interior
Desfez-se em pó.
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Da complacência da natureza
Bertolt Brecht
Ah, a jarra de leite espumante inda busca
A boca babosa e sem dentes do velho senhor.
Ah, na perna do assassino que foge
Esfrega-se o cão à procura de amor.
Ah, o homem que fora da aldeia abusa da criança
Ainda recebe dos olmos a sombra gentil.
E suas pegadas sangrentas, bandidos, graças
À poeira cega e risonha ninguém viu.
E também o vento, aos gritos náufragos no mar
Mistura o sussurro da folhagem na orla
E levanta cortês o avental pobre da moça
Para que o forasteiro com sífilis a aprecie melhor.
E à noite o gemido fundo e lascivo da mulher
Cobre o choro da criança no canto do quarto.
E na mão que bateu no menino cai carinhosa
A maçã da árvore mais exuberante de um ano farto.
Ah, como brilha o olho claro da criança
Vendo o pai deitar à terra o boi e sacar o punhal!
E como arfam as mulheres o peito onde mamaram seus filhos
Vendo as tropas cruzarem a vila ao som da banda marcial.
Ah, nossas mães têm seu preço, nossos filhos se aviltam
Pois os marujos do barco que afunda anseiam qualquer pedaço de chão
E o moribundo só implora do mundo poder ainda lutar e
Alcançar o canto do galo e enxergar da aurora o primeiro clarão.
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Quem se defende
Bertolt Brecht
Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.
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Perguntas de um trabalhador que lê
Bertolt Brecht
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída —
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
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O vizinho
Bertolt Brecht
Eu sou o vizinho. Eu o denunciei.
Não queremos ter aqui
Nenhum agitador.
Quando penduramos a bandeira com a suástica
Ele não pendurou nenhuma bandeira.
Quando lhe falamos sobre isso
Ele nos perguntou se no cômodo
Onde vivemos com quatro crianças
Ainda há lugar para um mastro de bandeira.
Quando dissemos que acreditamos novamente no futuro
Ele riu.
Nós não gostamos quando o espancaram
Na escada. Rasgaram-lhe o avental.
Não era necessário. Temos poucos aventais.
Mas agora ele se foi, há sossego no edifício.
Já temos preocupações demais
É preciso ao menos haver sossego.
Notamos que algumas pessoas
Viram o rosto quando cruzam conosco. Mas
Os que o levaram dizem
Que agimos corretamente.
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Por muito tempo procurei a verdade
Bertolt Brecht
1
Por muito tempo procurei a verdade sobre a vida dos homens entre si
Esta vida é muito complicada e difícil de compreender
Trabalhei duramente para compreendê-la, e então
Disse a verdade, como a encontrei.
2
Quando havia dito a verdade tão difícil de encontrar
Era uma verdade comum, que muitos disseram
(E nem todos acham tão difícil).
3
Pouco depois vieram pessoas em grande número, com pistolas distribuídas
E atiraram cegamente em todos que não tinham chapéus por serem pobres
E a todos que haviam dito a verdade sobre eles e os que os financiavam
Expulsaram do país no décimo quarto ano da nossa meia-República.
4
Tomaram-me minha pequena casa e meu carro
Que eu havia ganho com muito trabalho.
(Meus móveis ainda pude salvar.)
5
Ao cruzar a fronteira pensei:
Mais que de minha casa preciso de verdade.
Mas preciso também de minha casa. E desde então
A verdade é para mim como uma casa e um carro.
E eles me foram tomados.
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A queima de livros
Bertolt Brecht
Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros! E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!
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Quando me fizeram deixar o país
Bertolt Brecht
Quando me fizeram deixar o país
Lia-se nos jornais do pintor
Que isto acontecia porque num poema
Eu havia zombando dos soldados da Primeira Guerra.
Realmente, no penúltimo ano da guerra
Quando aquele regime, para adiar sua derrota
Já enviava os mutilados novamente para o fogo
Ao lado dos velhos e meninos de dezessete anos
Descrevi em um poema
Como um soldado morto era desenterrado e
Sob o júbilo de todos os enganadores do povo
Sanguessugas e opressores
Conduzido de volta ao campo de batalha.
Agora que preparam uma nova Grande Guerra
Resolvidos a superar inclusive as barbaridades da última
Eles matam ou expulsam gente como eu
Que denuncia
Seus golpes.
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O governo como artista
Bertolt Brecht
1
Na construção de palácios e estádios
Gasta-se muito dinheiro. Nisso
O governo se parece com o jovem artista que
Não teme a fome, quando se trata
De tornar seu nome famoso. No entanto
A fome que o governo não teme
É a fome de outros, ou seja
Do povo.
2
Assim como o artista
O governo dispõe de poderes sobrenaturais
Sem que lhe digam algo
Sabe de tudo. O que sabe fazer
Não aprendeu. Nada aprendeu.
Sua formação tem falhas, entretanto
É magicamente capaz
De em tudo interferir, tudo determinar
Também o que não compreende.
3
Uma artista pode, como se sabe, ser um tolo e no entanto
Ser um grande artista. Também nisso
O governo parece um artista. Dizem de Rembrandt
Que ele não pintaria de outra maneira, se tivesse nascido sem mãos
Assim também pode-se dizer do governo
Que não governaria de outro modo
Tivesse nascido sem cabeça.
4
Espantoso no artista
É o dom da invenção. Quando ouvimos o governo
Descrevendo a situação, dizemos
Como inventa? Pela economia
O artista tem apenas desprezo, e bem assim
É notório como o governo despreza a economia. Naturalmente
Ele tem alguns ricos patronos. E como todo artista
Vive do dinheiro que arrecada.
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Por que deveria meu nome ser lembrado?
Bertolt Brecht
1
Outrora pensei: em tempos distantes
Quando tiverem ruído as casas onde moro
E apodrecido os navios em que viajei
Meu nome ainda será lembrado
Juntamente com outros.
2
Porque louvei as coisas úteis, o que
No meu tempo era tido como vulgar
Porque combati as religiões
Porque lutei contra a opressão ou
Por um outro motivo.
3
Porque eu fui a favor dos homens e tudo
Coloquei em suas mãos, honrando-os assim
Porque escrevi versos e enriqueci a língua
Porque ensinei o comportamento prático ou
Por qualquer outro motivo.
4
Por isso achei que meu nome ainda seria
Lembrado, em uma pedra
Estaria meu nome, retirado dos livros
Seria impresso nos novos livros.
5
Mas hoje
Concordo em que seja esquecido.
Por que
Perguntariam pelo padeiro, havendo pão suficiente?
Por que
Seria louvada a neve que já derreteu
Havendo outras neves para cair?
Por que
Deveria haver um passado, havendo
Um futuro?
6
Por que
Deveria meu nome ser lembrado?
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Não necessito de pedra tumular
Bertolt Brecht
Não necessito de pedra tumular, mas
Se necessitarem de uma para mim
Gostaria que nela estivesse:
Ele fez sugestões
Nós as aceitamos.
Por uma tal inscrição
Estaríamos todos honrados.
Presentes no livro “Poemas 1913-1956” (Editora 34, 2012), de Bertolt Brecht, tradução de Paulo César de Souza, páginas 13, 343, 24, 128, 198-199, 44, 73, 166, 123, 98-99, 192, 101, 203-204, 132-133 e 340, respectivamente.
Aforismos de Brecht no livro
“Quem não dá o pão ao faminto quer a violência”
“Quando a ferida não dói mais, dói a cicatriz”
“Aquele que ri apenas não recebeu ainda a terrível notícia”
“A montanha em nada crê, e conosco não se ocupa”
“De que serve a bondade, se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados aqueles para os quais eles são bons?”
“A reputação de um único general significa: dez mil cadáveres”
“De que serve a liberdade, se os livres têm que viver entre os não livres?”
“Um bom propagandista transforma um monte de esterco em local de veraneio”
“Tudo entreguei ao assombro, mesmo o mais familiar”
“A corrente impetuosa é chamada de violenta, mas o leito de rio que a contém ninguém chama de violento”
“Não havia pensado em como nos apressamos em obscurecer a escuridão, e em como preferimos crer no sem-sentido a procurar a causa suficiente”
“Meu avô já vivia no novo tempo, meu neto viverá talvez ainda no velho. A nova carne é comida com os velhos garfos”
“As [obras] duradouras estão sempre para ruir; as planejadas com grandeza são incompletas”
“Nossos inimigos dizem: A luta terminou. Mas nós dizemos: Ela começou”
“O mundo não segue seu plano: é só uma gota no oceano”
Aforismos presentes no livro “Poemas 1913-1956” (Editora 34, 2012), de Bertolt Brecht, tradução de Paulo César de Souza, páginas 74, 64, 212, 169, 129, 151, 129, 196, 250, 140, 169, 294, 85, 106 e 78, respectivamente.
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