Primeiro conto
Carlos Drummond de Andrade
O menino ambicioso
não de poder ou glória
mas de soltar a coisa
oculta no seu peito
escreve no caderno
e vagamente conta
à maneira de sonho
sem sentido nem forma
aquilo que não sabe.
Ficou na folha a mancha
do tinteiro entornado,
mas tão esmaecida
que nem mancha o papel.
Quem decifra por baixo
a letra do menino,
agora que o homem sabe
dizer o que não mais
se oculta no seu peito?
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Boitempo
Carlos Drummond de Andrade
Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.
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Mulinha
Carlos Drummond de Andrade
A mulinha carregada de latões
vem cedo para a cidade
vagamente assistida pelo leiteiro.
Para à porta dos fregueses
sem necessidade de palavra
ou chicote.
Aos pobres serve de relógio.
Só não entrega ela mesma a cada um o seu litro de leite
para não desmoralizar o leiteiro.
Sua cor é sem cor.
Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.
Não tem idade — vem de sempre e de antes —
nem nome: é a mulinha do leite.
É o leite, cumprindo ordem do pasto.
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Fim
Carlos Drummond de Andrade
Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira,
na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinheiros-colonos,
sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas
desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.
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Os excêntricos
Carlos Drummond de Andrade
1
Chega a uma fazenda, apeia do cavalinho, ô de casa! pede que lhe sirvam leitão assado, e retira-se, qualquer que seja a resposta.
2
Diz: “Vou para o Japão” e tranca-se no quarto, só abrindo para que lhe levem alimento e bacia de banho, e retirem os excretos. No fim de seis meses, regressa da viagem.
3
Cola duas asas de fabricação doméstica nas costas e projeta-se do sobrado, na certeza-esperança de voo. Todas as costelas partidas.
4
Apaixona-se pela moça, que casa com outro. Persegue o casal em todas as cidades para onde este se mude. O marido, desesperado, atira nele, pela janela. No outro lado da rua, de outra janela, dá uma gargalhada e desaparece: a bala acerta no boneco que o protege sempre.
5
Data suas cartas de certo lugar: “Meio do mundo, encontro das tropas, idas e vindas”. Ao terminar, saúda: “Dãodarãodão-dão” e assina: “Dr. Manuel Buzina, que não mata mas amofina”.
“Boitempo I” está incluído em “Nova reunião: 23 livros de poesia” (Companhia das Letras, 2015), de Carlos Drummond de Andrade, donde esses poemas foram peneirados, páginas 526-527, 519-520, 517-518, 528 e 543-544, respectivamente.
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