Lívia Natália (foto: Priscila Fulô)
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Lívia Natália
Dizem que, debaixo da farda,
tem gente.
E nem precisa escavar profundo.
Dizem que há sangue,
que há entranhas rubras,
e uma pele negra
igual à minha.
Dizem que, debaixo da farda, tem gente.
Ouvi falar que aqueles olhos arregalados
têm medo que a gente saiba que,
debaixo da farda,
tem uma pessoa,
que de manhã é uma pessoa boa,
e sorri, enquanto veste o coturno.
Dizem que a farda é como uma boca,
cheia de dentes
que os desfaz em pedaços.
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Da inutilidade da poesia
Lívia Natália
Para o Prof. Hélio Santos
63 jovens negros são mortos por dia.
23 mil jovens negros são mortos por ano.
Ao menos um morreu agora,
enquanto você lia este poema.
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Aguidavi
Lívia Natália
“Só acredito num Deus que dance.”
Friedrich Nietzsche
Se é por ela que se des/faz o invisível
e a terra se preenche de gestos ancestrais.
Se os atabaques se deitam silentes
com seus Oris de couro saciados de Ejé.
E se, quando dançam, as divindades reverenciam
a força da sua presença,
até o descrente se convence de que
a música é uma espécie de Orixá.
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Praia da ponte
Lívia Natália
Os meninos saltavam da ponte
e nós assistíamos ao espetáculo temeroso da vida
sob a navalha fina do sol.
Os meninos saltam da vida
e nós assistimos passivos ao espetáculo temoroso da morte
sob o olhar frio do revólver.
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Poema de terror
Lívia Natália
Eu
segurei
a minha
bolsa.
Porque ele era negro.
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“A bala silencia a voz de mais um menino preto
E há uma legião de fantasmas pretos, calados e sem consolo.
A bala condena à morte o menino preto
E o tribunal é de rua, e anda fardado.
(...)
A bala nunca dorme, cochila
engatilhada.
Ela fareja os meninos pretos
Até os que ainda nem nasceram.”
“Tudo importa à poeta:
o guarda-chuva perdido,
o telefone que não toca,
o destino das pontes mortas,
para onde vão os amores esquecidos?”
“No ventre terroso e úmido de breu,
os frutos estranhos criaram raízes enormes
e cresceram altivos, como árvores brutas
que à noite entoam lamentos e juram voltar
numa revoada de violentos fantasmas”
Presentes no livro “Sobejos do mar” (Caramurê, 2017), de Lívia Natália, páginas 69, 73, 35, 77 e 61, respectivamente, além dos trechos dos poemas “À bala” (p. 75), “Minimalista” (p. 15) e “Frutos estranhos” (p. 65), presentes na mesma obra.
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