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Cinco poemas e três passagens de Lívia Natália no livro Dia bonito pra chover

Lívia Natália (foto daqui)


Insurreição
Lívia Natália

Seria mais fácil não amar os pessegueiros macios
e nada sorver do seu perfume,
mas os meus dentes querem a carne do seu corpo,
minha língua deseja lamber do seu sumo.

O certo seria plantar a semente e esperar, 
dos laços e nós dos caules finos,
aspergir-se o perfume da fruta vindoura.
Mas meu corpo tem pressa
e não respeita os relógios que inventam o tempo.

Minha natureza é temporã.
Eu sou das fêmeas que vão!
ficar é para quem tem raízes, 
ceder é para quem deseja morada: eu sou o desabrigo.
Quero a fruta furtada do pé.
comer seu gosto ainda verde,
morder suas entranhas ainda duras.

Não sou das que esperam,
sou das que não querem nem chegar,
sou de partir e, no precipício, ainda ser silenciosa,
inteira.
Sou uma destas mulheres que vão.
ficar é raiz.
partir é imensidão.

--------

Anatomia das pedras
Lívia Natália

O caminho não muda jamais,
a dor é a mesma e a memória,
ferida,
lambe o tempo.

A dor me enfeita a ponta dos dedos,
bela, rasga minhas mãos, 
e eu escrevo.

A floresta escura não cessa de ser má:
animais estranhos gritam no breu.
O dia lacrimoso apenas vespera a noite,
ferindo-a com seu ferrão.

Os dias passam e eu navego nas horas
as palavras jogam com o gesto.
Os olhos mortos são irmãos das estrelas
A menina morta é a irmã,
e sua ausência é que colore a escuridão.

--------

NOMALI
Lívia Natália

“O filho que não fiz / hoje seria homem.
Ele corre na brisa / sem carne e sem nome.”
Carlos Drummond de Andrade

Ela não virá.
Sua presença ficará dependurada no céu das possibilidades.
Como a música que leva o seu nome,
ela será bela e fruirá de uma ausência encantada.

Enquanto ela não vier,
flutuará no horizonte uma menina esguia.
Seria aquele o seu nariz?
Teria ela os meus quadris?
Como explicar a ela:
filha, todo amor é por um triz.

Sabemos que ela não virá
e sua ausência preencherá as madrugadas.
Levantaremos com os ouvidos exaustos da ausência
do seu choro
dos meus peitos brotará um leite de esquecimento
e cada dia seu será repleto do silêncio deste nome.

Enquanto ela não vier
seu não-ser devastará a terra
e nada mais que se plante, se erguerá
sem que a sombra desta dor marque as colinas.

Nós seguiremos,
e seremos um para outro o que é feito do vento nas Maresias.
A falta dela preencherá todos os dias
e nosso silêncio perdurará como as pedras que ferem a Água,
até o dia em que,
apaziguada,
ela venha dilacerar o mistério do seu próprio nome.

--------

Ofélia, a louca
Lívia Natália

Enquanto não sarar, 
vai sangrar.
Esta é a gramática de toda ferida.
Como numa ciranda onde dançam as dores —
sem saber se a noite que rói
devora mesmo a borda do dia passado,
ou a possibilidade do amanhã.

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Poema noturno
Lívia Natália

Sinto, em minha garganta, seu falo robusto.
Sinto
             Seu falo
                                  macio
                                                      em minha boca.
E minha língua lambe sedenta
as estrelas que escapam do seu céu.

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“O amor acaba num
final de tarde,
assim, antes das seis
frente ao espelho enquanto se passa o batom.

O amor acaba.

Ele pode acabar quando a gente acorda e tudo que vê é outro corpo
— denso —
dormindo alheio ao desamor que chegou de mala e cuia.

(...)

O amor acaba apesar da beleza que insiste no mundo.”


“Onde dói sempre é noite
e monstros me espiam da escuridão.
Reino sobre as madrugadas
absolutamente lúcida e inteira,
como a flor espezinhada
aspergindo da dor, perfume.

Agora, que todas as dores sangraram,
resta o corpo desfeito de amor,
a posta restante da cama,
a insônia e o silêncio.

Não há voz que troveje pela casa,
os diários apenas contam as horas
e o passado entrelaça as mãos
embalando a dor miúda e sem remédio.”


“Meu corpo é que é feroz:
grita rasgando entranhas
e cuspindo seu desejo insolente
entre minhas pernas.

(...)

Meu corpo tem seu próprio tempo
e o relógio conta as horas de ser e estar
no que nele lateja sedento.

Meu corpo goza do que lhe penetra as entranhas
inventando estradas ladrilhadas de estrelas.”


Presentes no livro “Dia bonito pra chover” (Malê, 2017), de Lívia Natália, páginas 61, 31, 33-34, 37 e 45, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Desenredo” (p. 53-54), “Depois da noite” (p. 19) e “Talho” (p. 27), presentes na mesma obra.

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