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Dez passagens de Jorge Amado no romance Os pastores da noite



          “E, se não fôssemos nós, pontais ao crepúsculo, vagarosos caminhantes dos prados do luar, como iria a noite — suas estrelas acendidas, suas esgarçadas nuvens, seu manto de negrume —, como iria ela, perdida e solitária, acertar os caminhos tortuosos dessa cidade de becos e ladeiras? Em cada ladeira um ebó, em cada esquina um mistério, em cada coração noturno um grito de súplica, uma pena de amor, gosto de fome nas bocas de silêncio, e Exu solto na perigosa hora das encruzilhadas. Em nosso apascentar sem limites, íamos recolhendo a sede e a fome, as súplicas e os soluços, o estrume das dores e os brotos da esperança, os ais de amor e as desgarradas palavras doloridas, e preparávamos um ramalhete cor de sangue para com ele enfeitar o manto da noite.
          Varávamos os distantes caminhos, os mais estreitos e tentadores, chegávamos às fronteiras da resistência do homem, ao fundo de seu segredo, iluminando-o com as trevas da noite, enxergávamos seu chão e suas raízes. O manto da noite cobria toda a miséria e toda a grandeza e as confundia numa só humanidade, numa única esperança.
          Conduzindo a noite apenas ela nascia no cais, palpitante pássaro do medo, as asas ainda molhadas do mar, tão ameaçada em seu berço de órfã, lá íamos nós pelas sete portas da cidade, com nossas chaves pessoais e intransferíveis, e lhe dávamos de comer e de beber, sangue derramado e estuante vida, e em nosso cuidado e saber ela crescia, formosa de prata ou ornada de chuva.”


          “Jesuíno Galo Doido não gostava da polícia. Vítima ele também de investigadores, comissários e delegados, estudara longamente a psicologia dos policiais e concluíra contra eles. Tanta profissão no mundo, costumava comentar, tanto ofício a escolher, folgados uns, suados outros, uns exigindo saber, malícia, inteligência, outros apenas a força bruta e a coragem de pegar no pesado, quando um tipo escolhe o ofício de policial, de perseguir seu próximo, prendê-lo, torturá-lo, é porque não deu mesmo para nada, não serviu nem para recolher lixo na rua. Faltavam-lhe a dignidade e o sentimento de homem.
          No entanto, perguntava excitado a Otália após outra cachaça numa barraca aberta em Água de Meninos, quem manda no mundo de hoje, quais os donos, os senhores absolutos, aqueles que estão colocados acima de governos e governantes, dos regimes, das ideologias, dos sistemas econômicos e políticos? Em todos os países, em todos os regimes, em todos os sistemas de governo, quem manda realmente, quem domina, quem traz o povo vivendo no medo? A polícia, os policiais! — e Galo Doido cuspia seu desprezo com o ranço da cachaça. O último dos delegados manda mais do que o presidente da República. Os poderosos, para manter o povo no medo e na sujeição, foram aumentando o poder da polícia a ponto de terminarem eles próprios seus prisioneiros também. Diariamente a polícia comete as violências, as injustiças, os crimes mais cruéis, levantada contra os pobres e contra os livres. Quem já viu um policial condenado por crime cometido?
          Para Jesuíno, rebelde a todo mando, coração livre e peito ardente, o mundo só será mesmo bom de se viver no dia em que não houver mais soldados de nenhuma espécie nem policiais de qualquer tipo. Atualmente estavam todos os homens, inclusive reis e ditadores quanto mais os pobres desamparados, na dependência da polícia, um poder acima de todos os poderes. Imaginasse ela então esse imenso poder voltado contra um simples pai de família como Zico Cravo na Lapela, bom de bico, sem dúvida, sabendo como ninguém levar um pacóvio na lábia, mas sem a menor possibilidade de resistir à violência. Não desejava senão viver em paz, mas não o deixavam, os tiras haviam tomado assinatura em cima dele, a má sorte também. Por consequência, não devia Otália fazer julgamento apressado, mau juízo de quem era apenas joguete do destino.”


          “Escutou-se então na camarinha o tilintar dos ferros, o som do aço contra o aço, o ruído de espadas uma contra a outra, pois Ogum é o senhor da guerra. Ouviu-se um riso alegre e divertido, e era Ogum, cansado do lento diálogo através do jogo das contas, querendo mais diretamente estar com eles, era Ogum cavalgando uma das feitas, sua filha. Ela rompeu pela porta, saudou Doninha, postou-se no peji, elevou a voz:
          — Decidir já decidi. Ninguém vai ser o padrinho do menino. O padrinho vou ser eu, Ogum. — E riu.
          No silêncio de espanto, Doninha quis uma confirmação:
          — Vosmicê, meu Pai? O padrinho?
          — Eu mesmo e mais ninguém. Massu de agora em diante é meu compadre. Adeus pra todos, eu vou embora, preparem a festa, eu só vou voltar para o batizado.
          E foi-se imediatamente embora, sem esperar sequer a cantiga de despedida. Mãe Doninha disse:
          — Nunca vi disso, é a primeira vez… Orixá ser padrinho de menino, santo tomar compadre, nunca ouvi falar…
          Massu estava inchado de vaidade. Compadre de Ogum, nunca nenhum existira, ele era o primeiro.”


          “E ali, refestelado na areia, comendo o peixe excelente, perguntou a Pé-de-Vento:
          — De quem é esse terreno por aqui?
          Pé-de-Vento considerou a questão, pensativo:
          — Sei não… Tem dono não…
          — Tu já viu terra não ter dono? Tudo tem dono no mundo…
          — Penso que é do governo…
          — Bem, se é do governo é da gente…
          — E é mesmo?
          — Pois tu não sabe que o governo é o povo?
          — Tu acredita que é? O governo é da polícia, isso sim.
          — Tu não entende. Eu sei, já ouvi dizer até num comício. Tu não frequenta comício, é por isso que não sabe…
          — Pra que saber? Que adianta?
          Negro Massu deixava o azeite escorrer pelos cantos da boca, peixada mais gostosa! Lugar melhor pra morar não havia.
          — Tu sabe, Pé-de-Vento, vou ser teu vizinho… Vou levantar aqui um barraco pra mim. Pra botar a velhinha e o menino…
          Pé-de-Vento fez um gesto largo com a mão:
          — Lugar é que não falta, seu mano. Nem folha de coqueiro…”


          “(...) Olhos azulados qualquer menino pode ter, mesmo sendo o pai negro, pois é impossível separar e catalogar todos os sangues de uma criança nascida na Bahia. De repente, surge um loiro entre mulatos ou um negrinho entre brancos. Assim somos nós, Deus seja louvado!
          Benedita dizia ter saído o menino assim branco por haver puxado ao seu avô materno, homenzarrão loiro e estrangeiro, bebedor de cerveja, hércules de feira a levantar pesos e marombas para espanto dos tabaréus. Explicação, como se vê, das mais razoáveis, só as más-línguas teimavam em não aceitá-la e viviam atribuindo pais ao garoto como se não lhe bastasse Massu, um pai e tanto, cidadão direito e respeitado, com ele ninguém tirava prosa, e doido pelo filho. Sem falar na avó, na negra velha Veveva com seu menino nos braços. A própria Tibéria, mulher de julgamento severo e definitivo, pronunciara sua sentença quando desistira de adotar a criança: ficava ela em boas mãos, não podia estar mais bem entregue, pai mais compenetrado, mais doce avó.”


          “— Como é mesmo seu nome?
          Outra coisa não parecia estar esperando o sujeito. A gaitada mais solta e cínica, mais zombeteira, ressoou na nave, atravessou a igreja, ecoou no largo, espalhou-se pela cidade inteira da Bahia quebrando vidros, acordando o vento, levantando a poeira, assustando os animais.
          O orixá deu três saltos, gritou anunciando:
          — Sou Exu, quem vai ser padrinho sou eu. Sou Exu!
          Não houve antes nem haverá depois um silêncio parecido. Na igreja, na rua, no Terreiro de Jesus, na ladeira da Montanha, no Rio Vermelho, em Itapagipe, na estrada da Liberdade, no Farol da Barra, na Lapinha, nos Quinze Mistérios, na cidade toda.
          (...)
          Atrasara-se Ogum naquela manhã do batizado, tivera demoradas obrigações na Nigéria e uma festa de arromba em Santiago de Cuba. Quando chegara apressado ao barracão do Axé da Meia Porta, encontrara seu cavalo Artur da Guima montado por Exu, seu irmão irresponsável. Exu ria dele e o imitava, queixava-se de não lhe haverem dado o prometido, uma galinha-d’angola. Por isso preparava-se para provocar o escândalo e terminar com o batizado.
          Como um louco, Ogum atravessou a cidade da Bahia em busca de um filho seu em quem descer para repor as coisas em seu lugar, expulsar Exu e batizar o menino. Primeiro procurou pelo axé, não havia nenhum. Filhas, sim, muitas estavam por ali, mas ele necessitava de um homem. Foi ao Opô Afonjá em busca de Moacir de Ogum, o rapaz andava para as bandas de Ilhéus. Foi noutros terreiros, não encontrou ninguém. Saiu desesperado pela cidade, enquanto Exu fazia estripulias no bonde. O motorneiro era de Omolu, o condutor era de Oxóssi. O soldado de Oxalá, Mário Cravo também de Omolu, ninguém era de Ogum. Ainda agora, no largo, assistira aos destemperos de Exu. Vira como ele enganara a todos, como aplacara as desconfianças de Doninha, ao levantar Veveva do chão com delicadeza e respeito.
          Entrou, na maior das aflições, atrás dele na igreja. Queria falar, desmascarar Exu, tomar seu lugar, mas como fazê-lo se não havia um só cavalo seu, macho, a quem cavalgar?


          “Ele chegara disposto a liquidar rapidamente o assunto, levá-la para a cama fosse como fosse. Mas, diante dela, de sua candura, perdia toda a coragem, nada lhe dizia, desarmado, e com ela saía a passear. Naquele segundo dia foram a uma festa de largo, com quermesse e música de coreto. Quando voltaram ao castelo, Otália novamente se despediu com um beijo ardente.
          Martim estava abismado: quanto tempo iria durar aquilo? Mais tempo, sem dúvida, do que imaginara. Os dias passavam, encompridavam-se os passeios, iam de lugar em lugar na cidade, frequentavam festas, candomblés, peixadas, bailes, de mãos dadas, olhos nos olhos, namorados. No castelo despediam-se. Não dormia com o cabo, mas também, é claro, nunca mais aceitara dormir com um xodó, realizava seu trabalho e acabou-se, não havia homem em sua vida, além de Martim.
          Nem com moça donzela tivera o cabo namoro mais decente. Não era de espantar? Namorando com rapariga de castelo, com mulher da vida, corpo aberto para qualquer, bastava pagar.
          Namoro cada dia mais decente. Com as outras, mesmo as cabaçudas, as carícias iam num crescendo até o derradeiro fim, até ele lhes fazer o benefício. Com Otália era ao contrário. Quando mais a tivera, fora no primeiro dia, de carícias ousadas, sentindo-lhe o peso do seio, a curva da bunda, o calor das coxas. Ela continuava a entregar-lhe a boca com avidez e apertar-se contra ele na hora da despedida, mas era tudo.
          Quanto mais passava o tempo, porém, mais retraída ficava ela em referência aos assuntos de cama. Crescia a confiança entre eles, o doce amor, uma intimidade de sentimentos, mas não progredia a marcha para o leito de Otália, para seu corpo desejado. Quando muito Martim, durante os longos passeios ou na alegria das festas, nos bailes da Gafieira do Barão, conseguia roubar-lhe um beijo, cheirar seu cangote, tocar-lhe de leve o seio, brincar com seus lisos cabelos.”


“Artur da Guima deu seu acordo. Com certa relutância, pois, como já se informou, era homem discreto e tímido, vivia no seu canto, de onde só saía para jogar, incorrigível nos dados, perdendo quase sempre mas incapaz de refrear-se. Seu Ogum vinha poucas vezes, levava meses sem manifestar-se, apenas reclamava uma obrigação de quando em quando, comida para sua cabeça. Mas, em compensação, quando descia era esporreteado de todo, alegre, cheio de conversas, de natural muito amigueiro, a saudar e a abraçar os conhecidos, seus ogãs e as figuras do candomblé, cheio de risadas, de descaídas de corpo, dançando como gente grande, enfim, era um Ogum de primeira, de arromba, não era um santo qualquer, era uma beleza de santo e quando ele descia todo o terreiro o saudava com entusiasmo. Artur da Guima exigia a presença de Doninha na cerimônia: só mesmo ela, com seus poderes, seria capaz de controlar esse Ogum vadio e ruidoso, solto de repente nas ruas da Bahia, pisando as lajes de uma igreja, servindo de padrinho num batizado. (...) se o nome dado como o do padrinho fosse Artur da Guima esse seria para sempre oficialmente o padrinho da criança mesmo não o sendo em verdade, estando apenas ali como cavalo de Ogum. Mas apenas umas quantas pessoas o sabiam e, com o passar do tempo, o fato seria esquecido, o menino cresceria e para ele seu padrinho havia de ser Artur da Guima. Não era mesmo? (...) O próprio Artur da Guima concordou. Deviam dar o nome de Ogum, isso sim. Mas, como fazê-lo? Mais uma vez Jesuíno Galo Doido solucionou a questão. Ogum não era santo Antônio? Pois então: era só dar o nome completo, Antônio de Ogum. O único senão era o fato de Inocêncio conhecer Artur da Guima. Curió, a quem o sacristão devia a saúde e a ilibada reputação, ficou encarregado de procurá-lo e expor-lhe o assunto.”


“Quem não sabe das transformações operadas pelo amor no caráter dos homens? O triste fica alegre, o extrovertido transforma-se em melancólico, o otimista em pessimista e vice-versa, o covarde ganha coragem e o indeciso faz-se decidido. No entanto jamais alguém pensou ver um dia o cabo Martim, cuja inteireza de caráter era tão citada e cuja fidelidade às convicções era arraigada, falando em emprego. Abandonando princípios e convicções, alarmando seus amigos, desiludindo muitos admiradores, criando perigoso precedente para a juventude a iniciar-se na vida na Rampa do Mercado, em Água de Meninos, nas Sete Portas. Como enrijecer o caráter desses adolescentes quando o cabo, o exemplo mais admirado, rompia com seu passado, descia tão baixo? Como aceitar tal boato — o cabo em busca de trabalho — a não ser que, como sugeriu Massu, de tanto amor houvesse ele enlouquecido e não fosse mais senhor de seus atos e palavras.”


“Embora evitasse qualquer referência ao passado, nunca falasse no assunto, fora Galo Doido casado em outros tempos, há muitos anos. Sabia-se não ter sido feliz sua vida matrimonial, cochichavam-se histórias, tenebrosos segredos. A única coisa certa era não ter mais Jesuíno esposa e lar quando surgira nas ruas da Bahia. Do casamento, segundo as más-línguas, só lhe restava um defunto às costas, cadáver de rapaz moço, amante de sua mulher. Se isso é verdade ou invenção, jamais se soube. Se verdadeira a informação, nunca sentiu Galo Doido necessidade de arriar seu defunto no chão, embora por um momento, para respirar que fosse. Não, jamais quis dividir sua carga com os amigos, se é que a carregava. E, no entanto, um defunto pesa, é fato comprovado, quem não sabe disso? Mesmo se morreu de morte natural e está em paz em seu caixão, quanto mais se foi cosido a facadas, o punhal pejado de ódio, como contavam do tal despachado por Galo Doido. Cada punhalada pesa mais de cem quilos. Sete vezes cem são setecentos, difícil deve ser conduzir um defunto assim, às costas, pela vida afora. Já pensaram? O dia inteiro com os braços do finado em torno ao pescoço do vivente, as mãos sobre o peito a apertá-lo, curvando-lhe o lombo, embranquecendo-lhe os cabelos, comprimindo-lhe o coração. Um dia o desgraçado não aguenta mais, larga o defunto no chão, na hora menos pensada, numa mesa de bar, na cama de uma mulher desconhecida, no mercado cheio de gente, no meio da rua. Mesmo com perigo de cadeia ou de vida, de vingança de parentes.”


Presentes no romance “Os pastores da noite” (Companhia das Letras, 2009), de Jorge Amado, páginas 11-12, 49-50, 154, 193, 137, 181 a 183, 199-200, 160 e 168, 34 e 73-74, respectivamente.

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