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Quinze passagens de Clarice Lispector no romance Um sopro de vida

Clarice Lispector (foto: Folhapress)


“Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. (...) Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a ideia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje.”


“(...) Eis um momento de extravagante beleza: bebo-a líquida nas conchas das mãos e quase toda escorre brilhante por entre meus dedos: mas beleza é assim mesmo, ela é um átimo de segundo, rapidez de um clarão e depois logo escapa.”


“(...) Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não têm pudor, as leis a obedecer, o assassinato — tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus. Tenho medo da lei natural que a gente chama de Deus. O temor. Os suicidas muitas vezes se matam porque têm medo de morrer. Não suportam a tensão crescente da vida e da espera do pior — e se matam para se verem livres da ameaça.”


“(...) O que me sustenta é a necessidade. A necessidade me faz criar um futuro. Porque o desejo é algo primitivo, grave e que impulsiona.”


“Nunca vi uma coisa mais solitária do que ter uma ideia original e nova. Não se é apoiado por ninguém e mal se acredita em si mesmo. Quanto mais nova a sensação-ideia, mais perto se parece estar da solidão da loucura. Quando eu tenho uma sensação nova ela me estranha e eu a estranho. Também não suporto a felicidade aguda e solitária de me sentir feliz. Falta-me serenidade para receber as boas novas. Quando fico feliz, me torno nervosa e agitada. A luz faísca brilhante demais para os meus pobres olhos.”


“A gente existe só para ter alívio? (...) Eu presto atenção só por prestar atenção: no fundo não quero saber. (...) Não quero nada. (...) Deus é abstrato. Esta é a nossa tragédia.”


“(...) Todo o mundo que aprendeu a ler e escrever tem uma certa vontade de escrever. É legítimo: todo o ser tem algo a dizer. Mas é preciso mais do que a vontade de escrever. Ângela diz, como milhares de pessoas dizem (e com razão): ‘minha vida é um verdadeiro romance, se eu escrevesse contando ninguém acreditaria’. E é verdade. A vida de cada pessoa é passível de um aprofundamento doloroso e a vida de cada pessoa é ‘inacreditável’. O que devem fazer essas pessoas? O que Ângela faz: escrever sem nenhum compromisso. Às vezes escrever uma só linha basta para salvar o próprio coração.”


“Esta noite tive um sonho dentro de um sonho. Sonhei que estava calmamente assistindo artistas trabalharem no palco. E por uma porta que não era bem fechada entraram homens com metralhadoras e mataram todos os artistas. Comecei a chorar: não queria que eles estivessem mortos. Então os artistas se levantaram do chão e me disseram: nós não estamos mortos na vida real, só como artistas, fazia parte do show esse morticínio. Então sonhei um sonho tão bom: sonhei assim: na vida nós somos artistas de uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo. Nós somos todos os participantes desse teatro: na verdade nunca morreremos quando acontece a morte. Só morremos como artistas. Isso seria a eternidade?”


“(...) Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o divino impessoal. Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo. Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e só o alcançando na morte. Quanto a mim, que não peço música, só chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranoico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.”


“(...) Eu me dou melhor comigo mesma quando estou infeliz: há um encontro. Quando me sinto feliz, parece-me que sou outra. Embora outra da mesma. Outra estranhamente alegre, esfuziante, levemente infeliz é mais tranquilo.”


“(...) o milagre é uma sensação. Sensação de quê? de milagre. Milagre é uma atitude assim como o girassol vira lentamente sua abundante corola para o sol. O milagre é a simplicidade última de existir. O milagre é o riquíssimo girassol se explodir de caule, corola e raiz — e ser apenas uma semente. Semente que contém o futuro.”


“Quando pequena eu rodava, rodava e rodava em torno de mim mesma até ficar tonta e cair. Cair não era bom mas a tonteira era deliciosa. (...) Ficar tonta era o meu vício. Adulta eu rodo mas quando fico tonta aproveito de seus poucos instantes para voar.”


“Rezo para achar o meu verdadeiro caminho. Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor. Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. Se eu não me amar estarei perdida — porque ninguém me ama a ponto de ser eu, de me ser. Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim. Tenho que valer alguma coisa? Oh protegei-me de mim mesma, que me persigo. Valho qualquer coisa em relação aos outros — mas em relação a mim, sou nada.”


“Meu rosto é um objeto tão visível que tenho vergonha. Entendo as belas mulheres árabes que têm a sabedoria de esconder nariz e boca com um véu ou um crepe branco. Ou roxo. Assim ficam de fora apenas os olhos que refletem outros objetos. O olhar ganha então um tão terrível mistério que parece um vórtice de abismo. Uso batom escarlate nos meus lábios: isto é a minha provocação. Tenho sobrancelhas que perguntam sem parar mas não insistem, são delicadas. Esse rosto-objeto tem um nariz pequeno e arredondado que serve a esse objeto que sou para farejar que nem cão de caça. Tenho uns segredos: meus olhos são verdes tão escuros que se confundem com o negro. Em fotografia desse rosto de que eu vos falo com certa solenidade os olhos se negam a ser verdes: fotografada sai uma cara estranha de olhos pretos e levemente orientais.”


“(...) Ângela é uma curva em interminável sinuosa espiral. Eu sou reto, escrevo triangularmente e piramidalmente. Mas o que está dentro da pirâmide — o segredo intocável o perigoso e inviolável — esse é Ângela. O que Ângela escreve pode ser lido em voz alta: suas palavras são voluptuosas e dão prazer físico. Eu sou geométrico, Ângela é espiral de finesse. Ela é intuitiva, eu sou lógico. Ela não tem medo de errar no emprego das palavras. E eu não erro. Bem sei que ela é uva sumarenta e eu sou a passa. Eu sou equilibrado e sensato. Ela está liberta do equilíbrio que para ela é desnecessário. Eu sou controlado, ela não se reprime — eu sofro mais do que ela porque estou preso dentro de uma estreita gaiola de forçada higiene mental. Sofro mais porque não digo porque sofro.”


Presentes no romance “Um sopro de vida” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 12, 50, 162, 160, 84-85, 154, 111, 169, 14, 54, 53, 61, 139-140, 118 e 46, respectivamente.


Aforismos de Clarice no romance

“Eu te amo tanto como se sempre estivesse te dizendo adeus”

“O que sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio”

“Escrever é uma pedra lançada no poço fundo”

“Quando eu digo te amo, estou me amando em você”

“O que me atormenta é que tudo é ‘por enquanto’, nada é ‘sempre’”

“Eu me lembro do futuro”

“Sou a contemporânea de amanhã”

“Cada minuto que vem é um milagre que não se repete”

“O pior plágio é o que se faz de si mesmo”

“Eu venho de uma longa saudade. Eu, a quem elogiam e adoram. Mas ninguém quer nada comigo”

“Sou um quiproquó em labirinto feito de fios sangrentos de nervos”

“Deus não é o princípio e não é o fim. É sempre o meio”

“A solidão é um luxo”

“Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam”

“A minha alma está quebrantada pelo desejo”

“Entre as marteladas eu ouço o silêncio”

“O cotidiano mata muitas vezes a transcendência”

“Eu gosto tanto do que não entendo”

“Borboleta é uma pétala que voa”

Aforismos presentes no romance “Um sopro de vida” (Rocco, 2020), de Clarice Lispector, páginas 40, 38, 14, 152, 95, 157, 55, 121, 35, 73, 85, 138, 71, 12, 127, 112, 149, 42 e 46, respectivamente. 

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