Kátia Borges - Foto: Sora Maia
Anotações para um poema sobre
Kátia Borges
amo esta mulher que nunca quis me impressionar
com citações de livros
sempre que dói meu coração, sua mão suave
pesa sobre meu ombro
e, mesmo em sonho, quando me perco,
seu rosto manso me acompanha
estou cansada de sentir este aperto no peito
amo esta mulher que diz que passa
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Entre suas mãos
Kátia Borges
Sou especialista em naufrágios
em quinquilharias que não se trocam
por centavos, em coisas mínimas
que brilham e não põem na mesa
nem o pão nem o ócio.
Sou especialista em inutilidades
como o registro do som do aplauso
ao pôr do sol, o verso sobre a aurora,
o rabisco da face desconhecida
no guardanapo, e em tudo que não seja
capaz de prover sustento.
Sou especialista no insustentável
nas asas da ave que queda,
na aerodinâmica dos insetos, no lusco-fusco
da noite deserta, e em conserto
de pisca-pisca para simular discoteca.
Sou especialista em rádios ligados
em estações FM, imagens captadas
graças à palha de aço nas antenas,
músicas tocadas em alto-falantes
de cidades pequenas, encenações
mambembes de teatro.
Sou especialista em naufrágios,
em imaginar modelos de escafandros,
em achar belezas onde só veem
destroços, em mergulhar
sem tanque de oxigênio.
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Mais-valia
Kátia Borges
Meu patrão espia
se me distraio com estrelas
digo que já sei o limite
não do horário
mas do cosmos
e rio por dentro
de seu espanto
O modo como meneia a cabeça
bandeira a meio palmo
como se sentisse pena
de tanto devaneio
Grandes são as hortas
cultivadas no espaço
e o sossego dos equinócios
vê como esta formiga
carrega a folha verde?
Me interessa o estudo
dessas coisas
que a ninguém causa
avaria
Meu patrão espia
o vinco na calça
o nome na etiqueta
não me dizem nada
prefiro tentar ler na palma
aquilo que se escreve
a caneta, o modo
como o cego estala
os dedos, antes de cochilar
no trem, as janelas abertas
que fazem barulho de música
enquanto bato carimbo
nas notas, um bando
de pássaros voa
e seu ninho despenca
Se me pega na porta
espiando o movimento
e não o ir e vir das compras,
meu patrão espia,
dentro há algo de mais-valia
que esta vida ordinária
que se parcela a perder
de vista, enquanto o que arde
em nós esfria.
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Desnorteio
Kátia Borges
Prêmio é esse calo de caneta,
memória do sangue azul da tinta,
quando se faziam, linha por linha,
arrazoados em cadernos.
Ainda hoje sorrio se os vejo
passarem rumo às cestas,
haverá verso melhor no silêncio,
diz quem nunca calejou o dedo.
É preciso que se crie algo novo.
Algo que diga da tarde, não foi azul,
algo que diga do amor, tardou, se foi,
algo que diga de nós, não somos deuses,
ainda que seja beleza esta imagem:
folha que testemunha árvore.
que se gire em torno do próprio umbigo até o vômito,
que a terra gire em torno, que a dança exija volteios,
que o álcool nos deixe meio loucos.
Tudo que é preciso desnorteia.
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Cem modelos de sobrancelhas
Kátia Borges
A cidade sem sua presença,
a arte das ruas e a Baía, tudo
reacende ausências,
e este azul imenso lembra
a travessia na balsa
a viagem de carro
as vilas pequenas
passando e passando,
êta, vida besta,
best-sellers instantâneos
“Cem modelos de sobrancelhas”,
devíamos ter pensado nisso antes –
“a beleza salvará o mundo” –
ou algo sobre a inutilidade
de ainda vermos essas estrelas,
essas estrelas,
extintas há bilhões de anos
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“Tenho esquecido facilmente
documentos importantes por aí,
quase premeditadamente, e de ir
ao trabalho diariamente, inventando
feriados e domingos e sábados,
e de aproveitá-los como se deve,
e de lamentar não tê-los aproveitado.
(...)
Tenho esquecido facilmente
o que guardava na bolsa,
e achado dentro dela
objetos inexplicáveis: chaves
que não cabem em nenhuma
fechadura que eu conheça.”
“O rosto que havia antes,
alguém me rouba aos poucos.
O tempo, não temo o logro,
põe no lugar algum outro
semblante que desconheço.
Me espanta a face no espelho
que do soalho me olha.
Os olhos, bem sei, os mesmos
com que chorei tantas vezes.
Foram, através dos meses,
desabrochando outra cor
perdida em algum genótipo
que nem se acha em meu corpo.”
“Este poema não é o poeta
que o escreve à noite
após ralar oito horas
por um salário de merda
e, no entanto, acerta
como uma flecha sem norte
o pequeno coração
de quem o lê.
Este poema não é o poeta,
tem compaixão, se por acaso
o deseja conhecer.
Não há constelações
entre as contas a pagar
e, no entanto, inventa
pequena luz
que ilumina de súbito
as tuas mãos.”
Presentes no livro de poemas O exercício da distração (Penalux, 2017), páginas 22, 50-51, 44 a 46, 42-43 e 88, respectivamente, além dos trechos dos poemas O rol dos dias (p. 49), Das ventanias que trago no bolso (p. 37) e anotações para
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