Nina Rizzi - foto daqui
inverno colorido
Nina Rizzi
o aluno de aline fez uma pintura
abstrata. ele só faz arte abstrata
como uma compulsão. misturou
cores frias à uma quente, nomeou
inverno colorido. com a ternura
nos olhos contemplo a criança
e seu desenho de cinco anos
garrando a imaginar as crianças
do oriente, dos desertos e o que
dizem suas mãos de pintar invernos.
invernos sempre, mas sempre
coloridos.
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PRÓLOGO
Nina Rizzi
Escavo o ancestral impossível — o Belo, o Sublime, a
Verdade —
delicadezas em meio a um espólio de ruínas.
Contemplo o amontoado do passado, do que sobra
o real é o que não se pode ver, o fragmento, a não-adequação;
A constatação do absurdo:
A vida tem a duração de uma tragédia
começa pela manhã, termina com o dia.
De olhos bem fechados, lembro: deserto é esperar.
deserto é desesperar. deserto é dentro. deserto é o melhor
jardim.
Silêncio. A duração do Deserto.
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cartas pedagógicas
Nina Rizzi
o que pode meu livro sobre a mesa?
com as marcas de gordura na borda, não foi lido.
o homem o pegou como desculpa para ver, ainda mais
uma vez, a mulher que não consegue deixar.
dentro das bordas engorduradas
um bilhete, um nome, um telefone.
outro nome que podia ser qualquer outro
e ainda domitilla, carolina
— obrigada por ter cuidado de mim
tão direitinho.
ele que nunca cuidou do que não podia ser
limpo, forte, delgado. engordurou as bordas.
fecho o livro. e tudo.
o farfalhar das páginas, meu duplo.
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candomblé pra nanã
Nina Rizzi
as coisas continuam a me morrer
do barro se seca água, um todo imóvel, vodun
entretantos, rarefeita, piso uma pequena poça, lembrança
uma toda lama, e eu te sinto a me nascer, egun.
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contrapoema ao homem do meu tempo
Nina Rizzi
o homem do meu tempo me maltrata
sei que não sei dar carinho a quem arqueja e freme
há nódoas entre meus dedos, ora caio às fórmulas
como seu soubesse o que devia dizer e foi maldito.
o homem do meu tempo agoniza
e não lhe adianta minha barroca catedral
se lhe tenho de fazer repetir o pater nostrum, assim, em
latim.
talvez do vinho chileno, apareceram varizes em meus
joelhos
cobertas por ásperas elevações, como brotoejas brancas,
sem dor ou comichão
talvez ainda das culpas que não carrego, a moral que
renego.
o homem do meu tempo chantageia e sofre:
— minha mãe só me dava carinho em convalescência.
eu posso ficar nua e lhe mostrar cada uma das marcas
de minhas surras
e se não as guarda meu corpo, carrego na memória.
eu não sou boa, amo o túlio canalha de hilda hilst como
se fosse redenção.
o homem do meu tempo em se punir, manso, me estrangula
e ri:
— tem medo de mim.
quisera uma vez mais ser mulher, sagrada prostituta,
quisera
e eu não, nada.
o homem do meu tempo saca o rivotril
me mete pânico e encharca o corpo cansado, as mãos de
perdidas digitais
as tais marcas de senilidade que me são a mais pura
ternura.
foi-se embora o machão, ele é a colombiana que chora
por gozar
sofre de ansiedade antecipatória o homem que lhe
abandona.
não, ele não teve um ataque, um treco, enfarto
o homem do meu tempo se matou quando descobriu a
vida.
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“o cigarro vai te matar
dizem como anticonselho
minha fé, o que é, se matei
os sabores mais doces, a memória?
nasci ontem
junto de um profundo inominável”
“tenho um pedaço de biscoito no dente 44.
disse isso a uma amiga e ela perguntou: sabia que só
temos 32 dentes?
os dentes são numerados de uma outra maneira.
eu não entendo. nem sei porquê. mas não tem problema
essa dor no meu dente 44 desvia os meus sentidos,
momentaneamente
e quase esqueço das roupas pra lavar jogadas no chão da
cozinha
da tv ligada e muda ao meu lado e a língua que mordi
com algum desespero
(...)
retiro com impaciência nacos de madeira e cavuco
o dente 44, até o fundo
minha boca transborda a dor e sinto suave
de dentro da lateral de dentro do meu pé esquerdo
se mexer a cicatriz.
enxáguo a boca, me olho e sorrio tão mal
o dente vai bem, alguma resina resolverá.
e a realidade se transfere aos idos da memória.
como nunca tivesse tido um dente, mordo o bira do cigarro
e me incendeia tudo que não é mais físico”
“De boca fechada, olhos bem abertos, me examina
o médico rindo com o canto dos estoicos lábios.
Tenho vontade de matá-lo enquanto dispensa
o fumo à minha frente — vai agonizar, mocinha!
Essa decisão não é nada boa, por isso deixo a caneta
de ponta ina — como o salto dez agulha que lhe bateria
à fronte — escorregar por entre os dedos, ao invés de sangre.
Assim sigo mais humana, mentirosa e encardida”
Presentes no livro de poemas “A duração do deserto” (Patuá, 2014), de Nina Rizzi, páginas 89, 126, 40, 68 e 111-113, respectivamente, além dos trechos dos poemas “nouvelle vague” (p. 58), “sem título por falta de sentido” (p. 96-97) e “POEMA DA DESVAIDADE DE ANIVERSÁRIO” (p. 74), presentes na mesma obra.
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