Franklin Carvalho (foto daqui)
“Como se não bastasse, logo apareceu Adriano, amante do meu passado sem glória. Ele seguia para casa, o pão debaixo do braço, onde a esposa o aguardava. Vendo-me parada na praça, sentiu-se à vontade para puxar conversa.
— O Aleixo me disse que você está com a chave da prefeitura. E então, vai demorar? Quer que eu volte mais tarde? Deve ter coisa boa aí dentro, um uísque, uns petiscos caros, o prefeito é pessoa de bom gosto...
— Fica com a tua mulher.
— Me interessa mais você, perto da influência. Tiver um cofre aí, aposto que ninguém sabe o quanto está guardado nele. E se notarem diferença, nem vão denunciar.
— Vai dando a volta, Adriano, que sou honesta.
— Mulher nunca arrisca, só tem coragem para parir. Você acha que o dinheiro da prefeitura é do povo?
— E de quem é, então? — perguntei, já aflita com a demora de Aleixo.
— Foi do povo, foi dos comerciantes. Agora é do governo. Depois que o governo tira, não pertence a mais ninguém.”
“(...) um homem conhece todos os quartos de sua culpa, habita esses quartos e os vê cada vez mais apertados, mesmo que o mundo não o perceba recolhido. (...) No local para onde vou não haverá hipocrisia nem será necessária autoridade nem vestes, e todos verão novamente as minhas vergonhas, e isso será o meu céu ou meu inferno. Prefiro algo assim do que as escarpas solitárias e eternas onde a lua doentia faz de tudo um medo, e de cada medo um lobo.”
“(...) as ruas estavam vazias porque ninguém se expõe ao sol do sertão quando ele está almoçando. (...) Sentindo-se indefeso como um bebê, Turíbio mal conseguiu forças para apontar a estranha aparição. Seu braço parecia ter se encurtado, realmente, e de repente tudo sumiu, a visagem havia passado. Ele só não achou que aquilo fosse sonho ou loucura porque logo avistou Ana, que vinha da cacimba do cruzeiro carregando um pote de água na cabeça. Percebeu que não precisaria acordar de uma realidade para outra, então era tudo a mesma vida, verdadeira e enganadora, que providenciava o corriqueiro e o magnífico mais raro.”
“– Pulsos do tempo?
– O tempo não é contínuo, não é linear. É como um líquido que passa entre vasos que não se comunicam. Some de um, aparece em outro e não molha o chão. Soube que seu tio caiu morto e vim esperá-lo. Deveria já ter aparecido aqui, mas com certeza se enfiou em outra época, confiante que não prestará contas.”
“Depois que saiu da prisão João teve o auxílio do padre, que lhe deu abrigo provisório na sacristia. Enquanto as coisas não se esclareciam completamente, e as coisas nunca se esclareceram, para a maioria ele era um assassino, e o herói dos assassinos. O herói dos homens que achavam que vingar traição é a coisa certa, e não só desses homens. De todos os cantos, de madrugada, na hora da ceia, de manhã cedo, onde João estivesse sozinho, vinha alguém lhe encomendar um crime. (...) Muitos queriam comprá-lo como um matador e lhe prometiam partes em fortunas, lanços de gado, terra, o que fosse preciso para que ele disparasse contra seus inimigos. Alguns ofereciam armas, também. Havia planos mirabolantes para acabar com vizinhos e outras histórias que João jamais esquecerá. Nem na cadeia ele conviveu com tanta devassidão, com tanta corrupção, com tanta loucura. Durante todo o tempo em que morou na igreja, conheceu tudo o que a vileza humana pode produzir. (...) Quando João se negava a prestar os favores era destratado, chamado de pessoa ruim, de desalmado, sem coração. Foi mais vilipendiado e perseguido e torturado pela gente que lhe chegava branda do que pelos criminosos que lhe encomendavam o mal.”
“O primeiro dos seus meninos respirou poucos dias e morreu do tétano mal do umbigo. Diziam na época que um homem não deveria ir a enterro de criança sua, pois a visão da morte poderia inibir-lhe a fertilidade. Ascenso, porém, não levou a superstição a sério e acompanhou as mulheres ao cemitério que fica por detrás da capela, e ele mesmo sepultou o bebê junto aos túmulos que miravam o mar. Além da mãe da criança e de algumas outras parentes, seguia também a parteira, uma pobre dona que nunca era remunerada e que ainda assumia responsabilidades sobre a saúde das crianças nas primeiras semanas. (...) Após aquela perda, vieram saudáveis mais sete filhos machos na casa dos Batista, numa escada de garotos duros, fortes e valentes que se domavam uns aos outros, do mais velho para o mais novo, com cascudos, brigas e guerras domésticas. Diante da truculência dos primeiros e de um pai que só intercedia para garantir a sua própria autoridade, os meninos menores, ao se verem em apuros, recorriam a um herói mítico: – Se o irmão mais velho fosse vivo, tu não me bateria desta forma! – E assim dignificavam o santo de casa, que no cemitério sobre o mar se mantinha guardião da esperança.”
“Então ela comentou uma coisa que já dizia há quase um mês, notícia atrasada, repetida pela demência:
– Passou o Aleixo ontem. Disse que fez aniversário semana passada.
– E daí? Ninguém estuda nem trabalha para fazer aniversário. É coisa varejeira, não tem glória nenhuma, nem gradua nem merece prêmio – respondi. Foi a mesma coisa que disse a Aleixo na data que ele queria comemorar.
– É verdade – disse a velha, novamente se repetindo. – É coisa comum, gás que a vaca solta.”
“(...) vejo falsidade em tudo que é lugar, de fracasso em fracasso. E esses jornais velhos no cesto da barbearia, e esses impressos na parede, essas mulheres de calendário, esse talco, esse espelho rachado, essa cadeira que já não gira mais ao comando do pedal, esses preços que vocês praticam, é tudo banhado, galvanizado, recoberto de desfaçatez. Podem espalhar que assim falei, agora não faço mais questão de segredo, passei do tempo das parcimônias. (...) O sol queima as pedras lá fora, chega faz estalar esta rua Barão de Jeremoabo e a praça aqui tão perto. O sol também vem do leste, quente e vermelho. Quem de nós vai começar a botar fogo no mundo?”
Presentes no livro de contos “A ordem interior do mundo” (7Letras, 2020), de Franklin Carvalho, páginas 33, 110+120, 124+130, 98-99, 74-75+79, 52, 47 e 21-22, respectivamente.
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