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Emmanuel Mirdad, 15 anos de Produção Cultural

Emmanuel Mirdad - Foto: Leo Monteiro

Hoje, 13 de setembro, completo 15 anos de produção cultural. Maior feito? A Flica. Maior satisfação? Ter gravado a experiência ancestrodélica com o mestre Mateus Aleluia na The Orange Poem (ouça aqui). Maior prazer? Registrar minhas composições. Próximos passos? Vários. Sonho? Construir a carreira cinematográfica na Aláfia Filmes. Frustração? Já esqueci. Agradecimento? Aos patrocinadores, parceiros, apoiadores, artistas e principalmente ao produtor Marcus Ferreira, sócio por quatro anos na Putzgrillo Cultura (2008-2012) e atual sócio na Cali, por ter topado todas as doideiras que fizemos juntos pela cultura na Bahia – e que continuamos fazendo juntos na Flica.

Conheça o meu portfólio de produtor cultural aqui (que ainda será atualizado pelas produções de 2014 no final do ano).

Aproveito a data para postar uma entrevista que cedi para o projeto Gestão e Produção Cultural na Bahia, realizada pelas alunas da Facom Camila Hita, Gabriela Carvalho e Sandrinalva Silva, no dia 06 de maio de 2014, para a matéria comandada pela professora Gisele Nussbaumer. Confira:


Escritor, compositor e produtor, Emmanuel Mirdad é formado em Jornalismo pela Univesidade Federal da Bahia, mas profissionalmente trabalha na área de produção cultural. Autor de dois livros tornou-se sócio fundador da Putzgrillo Cultura, em 2008. Atualmente realiza a produção da Flica.

1. Quem é Emmanuel Mirdad?

Trabalho com produção cultural há 15 anos. Sou formado em Jornalismo, mas nunca atuei na área. Não que eu não goste, mas a área de produção me chamou mais atenção e eu acabei seguindo por aí. Comecei como agente de shows para bandas de rock independente, cuidando da programação de alguns bares como o Tangolomango Bar e o Groove Bar, na Barra. A partir de 2007 houve de fato uma profissionalização do trabalho, quando fui trabalhar como estagiário na Plataforma de Lançamento, uma produtora de Salvador, do grande mestre Uzêda. Lá tive uma “pós-graduação”, vamos dizer assim, em leis de incentivo e formatação de projetos para parcerias público-privadas. A partir daí, saquei como fazer projetos e em 2008 foi o primeiro ano de colher resultados disso.

A gente ganhou o edital nacional do Oi Futuro para a viabilização da 1ª edição do Prêmio Bahia de Todos os Rocks. Junto com Marcos Ferreira, que é um produtor cultural formado na Facom-Ufba, nós fizemos essa 1ª edição do Prêmio e montamos a Putzgrillo Cultura, que foi a nossa primeira empresa, como sócios. Entre 2008 e 2012, nós realizamos vários projetos patrocinados por leis de incentivo. Em 2013, nós abrimos a Cali, que é a produtora exclusiva do principal produto nosso, a Flica.

De todos os projetos que a Putzgrillo Cultura realizou, Festival Brainstorm, Santo Antônio Jazz Festival, Música no Cinema, gravação e lançamento do CD do Tiganá Santana, entre vários outros, com diversas empresas parceiras como a Multi, a Ginga P, a VDM Entretenimento, o que deu certo mesmo foi a Flica. Então focamos exclusivamente no desenvolvimento desse produto e abrimos uma empresa só para cuidar disso.

Produções de Emmanuel Mirdad: Anos 1999 a 2003
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2. O que você entende por cultura?

Cultura para mim é o fazer. Cultura é a profissionalização das artes. Eu não quero ficar muito no conceito estético, nem semiótico do que seria cultura. Tampouco filosófico ou sociológico. Eu quero afirmar que cultura é trabalho. E cultura é a gama de todas as artes possíveis e a forma como você viabiliza isso. Não consigo pensar cultura, se não pensar cultura enquanto produção cultural, enquanto fazer, enquanto labor. A cultura é identidade dos povos e todos aqueles conceitos acadêmicos, que para mim, são interessantes. Existem diversos estudos, só que eu prefiro, nesse momento aqui, dizer que para mim cultura é trabalho e a forma como a gente consegue viabilizar ou preservar manifestações culturais espontâneas, de uma determinada região. Ou então, a gente viabilizar projetos individuais de artistas ou de grupos.


3. Como você avalia as políticas culturais na Bahia nos últimos anos? 

Eu faço parte de uma geração que se beneficiou muito com a mudança do governo em 2008. Com a entrada do novo governo, trouxe diversos benefícios para a nossa área porque abriu uma possibilidade muito grande: a de que novos profissionais pudessem surgir e trabalhar com as leis de incentivo. Principalmente com o Fazcultura e, posteriormente, com a implantação da política dos editais, via os projetos do Fundo de Cultura. Eu quero parabenizar os gestores de cultura que estiveram envolvidos nessa mudança. Especialmente o Gilberto Monte, já que comecei pela música, ele ajudou bastante a consolidar essa mudança à frente da diretoria de música da Funceb. Ele foi um dos caras que correu atrás do patrocínio das telecomunicações, para que tivesse essa possibilidade de investimento maciço, como nós tivemos nos últimos anos com a Oi e a Vivo.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2004
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A gestão Márcio Meireles foi fundamental para o surgimento de diversas empresas que estão atuando no mercado, como a Multi por exemplo. É uma empresa de sucesso hoje em dia, que apareceu justamente por conta dessa abertura de mercado - formada pela Renata Hasselman e duas ex-faconianas: Ana Paula Vasconcelos e Fernanda Bezerra. Avalio que foi fundamental para o surgimento de diversos produtores, fez surgir projetos interessantes que estão conseguindo se manter. Só que o problema da política de edital é que ela não consegue dar sustentabilidade aos projetos.

Ela é só uma política de incentivo, né?! “Pá”, surja! Depois, se virem. As críticas pesadas em relação às políticas de edital são exatamente essas. Só que e o depois? E a segunda edição, a terceira, a quarta edição? E os novos projetos e a galera que está aparecendo agora no mercado, o que é que faz? Você cria uma dependência enorme: das pessoas que criaram a partir desse primeiro momento do edital que querem continuar ganhando editais, que já realizaram, fizeram bem feito e querem continuar nesse processo. Só que tem uma galera, que já está formada, que está se formando, que está aí no mercado, aparecendo com novos produtos e como é que vai atender todo mundo?

Nos últimos editais eu vi várias pessoas que ganharam nos primeiros editais não ganharem mais. Por exemplo, eu mesmo não ganhei o último edital. E vi muita gente chateada com isso. Falei: “cara, tem que dar oportunidade para as outras pessoas”. O grande problema é que o edital conseguiu dar uma oportunidade para as pessoas, só que na política pública de cultura, não se pensou, ou talvez tenha se pensado, mas não conseguiu implantar um sistema que desse sustentabilidade para as pessoas que surgiram, para os grupos que surgiram a partir dessa política de editais. Então, muita gente fica criticando os editais por conta disso. Acho que essa é a grande questão para os gestores de política pública de cultura na Bahia. Os editais são extremamente necessários, são o primeiro impulso para os profissionais na área de cultura.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2005
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4. Qual o papel da iniciativa privada no financiamento da cultura?

Acho que sem a inciativa privada não existe o mercado de cultura na Bahia. A empresa Oi é responsável pelo surgimento da Putzgrillo Cultura. Foi através do edital nacional, da confiança deles que a gente conseguiu fazer o Prêmio Bahia de Todos os Rocks, o Festival Brainstorm e a Flica. A Flica era uma ideia, um projeto interessante que estávamos há um ano correndo atrás de capital. E foi graças ao capital semente.

O que é o capital semente? É o primeiro aporte do patrocinador que fez com que outros patrocinadores percebessem que este era um evento interessante e possível agregador de valor. Se não fosse a iniciativa privada, eu não estaria aqui para poder falar sobre produção profissional de cultura. O Estado é o principal patrocinador de cultura na Bahia, isso todo mundo sabe, é a realidade. Só que o Estado não consegue fazer sozinho, porque é muita coisa. A pasta da Cultura tem um orçamento muito pequeno e uma demanda enorme, porque são diversas manifestações artísticas. Deveria haver um orçamento para cada uma das manifestações artísticas: música dança, cinema, teatro, etc. Não, a realidade é um “bolo doido”, mas ainda assim, o que o Estado faz já é um milagre.

Então, sem a iniciativa privada, a gente não vai conseguir profissionalizar e dar sustentabilidade ao mercado. Tivemos um grande aporte das empresas de telefonia nos últimos anos, isso ajudou a criar diversos projetos. Por exemplo, o Conexão Vivo foi muito bom para muito artista aparecer e gravar disco, fazer show, rodar. Acabou. A Oi patrocinou diversas primeiras edições de eventos, só que com a crise no setor, ela teve que reduzir a quantidade de patrocínios. E a gente não conseguiu agora trazer um novo aporte da empresa privada, para poder dar um plus nesse mercado.

A minha recomendação para os gestores de políticas públicas do Estado é que eles têm que buscar a captação dessas empresas privadas para virem investir tanto no Fundo de Cultura, quanto no Fazcultura, via  editais, via aportes. É preciso uma participação maior das empresas e alguém que esteja à frente da gestão cultural no Estado, se propondo a buscar isso. Pode até ter, mas eu desconheço. O sustento só vai ser viável a partir dessa parceria público-privada.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2006
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5. Qual a sua avaliação sobre a produção nos últimos anos?

O profissional produtor cultural não tem nem representação de sindicato. Estamos na idade da pedra da produção cultural. Temos uma brincadeira de dizer que a geração anterior à nossa foi a “geração sandália de couro”. A geração que agora faço parte é a “geração de terno”; bate na porta da iniciativa privada e tenta captar projetos, provar que cultura é rentável. Esse é o nosso desafio.

Há aquela parcela de projetos culturais que têm que ser atendidos em forma de restauração, na forma de preservação do patrimônio histórico, na forma de preservação das manifestações culturais autênticas, essa é uma linhagem. Há também a linhagem da criação de eventos, da criação de espetáculos teatrais, da produção cinematográfica, da circulação e gravação de artistas musicais. Essa linhagem precisa se aproximar mais do entretenimento, sem perder, claro, a característica cultural. Esse segmento tem que ser vendido ao público e apresentado à mídia, etc., ele tem que ser pensado com as estratégias comerciais. E pensado como estratégia comercial não significa perda da autenticidade enquanto uma manifestação cultural.

O projeto cultural é um produto que precisa ser vendido e isso foi o que a geração nossa aprendeu. A geração anterior era mais espontânea. Era o amigo do artista, era o próprio músico, aquela coisa que ia fazendo e ia fazendo, sabe? O desafio é fazer com que os investidores percebam que a cultura é lucrativa. Isso, inclusive, é interessante porque dentro das próprias empresas, o departamento de marketing - onde se decide para onde vai o aporte financeiro - já tem novos profissionais que estão lá trabalhando e que sabem disso. Se pensava que só entretenimento dava dinheiro. Ainda tem muita gente pensando assim no mercado. Depende da gente, enquanto produtor cultural, fazer com que entendam que podem ganhar também. Como assim?

A responsabilidade social, o benefício de um projeto cultural para uma empresa que patrocina nesse campo. Ela vai ganhar em retorno de imagem. Como que esse produto que você criou vai aparecer na imprensa, a quantidade de público que está lá e está vendo a marca dele, a exposição do patrocinador, etc. Quando apresenta um projeto para um patrocinador e diz “você vai patrocinar esse projeto cultural aqui, que tem uma interferência na cidade, dessa e dessa maneira, que dialoga com a comunidade, que gera benesses e vai criar um legado para aquela região” está agregando valor. Tem diversos produtores culturais que detestam isso, por questões ideológicas. Mas, quem quer ir para esse lado, precisa entender as regras do mercado e como ele funciona. Produção cultural também é business. Então, não se pode ter aquele pensamento sonhador sem dialogar com o que o cara que vai lhe patrocinar quer ouvir. Agora somos os capitalistas da cultura (a “geração de terno”) e isso não é perder autenticidade. Mas estamos ainda na idade da pedra e precisamos ter mais profissionalismo no segmento. Menos paixão e mais profissionalismo é a meta.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2007
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6. Como é que você percebe o impacto das novas tecnologias na produção cultural?

É interessante ver o quanto que a audiência da TV aberta está despencando, enquanto o Youtube está levando patrocinador para lá. As novas tecnologias, as mídias sociais no caso, estão reconfigurando tudo. Estamos no olho do furacão: no início do processo. Ainda não temos como avaliar as consequências. A mídia social revolucionou a produção cultural, disso não tenha dúvida. Ela quebrou o funil, os indicadores acabaram. Tudo pode ser ouvido, tudo pode ser produzido, tudo poder ser difundido. Esse é o grande boom da nossa geração.

Agora qualquer pessoa pode produzir e disponibilizar em tempo real o que está fazendo. Mas, ao detonar o funil, criou um mundo caótico. E a grande questão: como vai ser diante de tanta produção? Como fazer com que a sua produção seja difundida, já que há tanta coisa sendo produzida? Avalio que esse caos de falta de atenção faz com que não se tenha uma consolidação de carreira enquanto artista. Porque, vamos lá: Cascadura lançou um CD duplo chamado Aleluia, patrocinado pelo edital do governo. Foi um dinheiro muito bem empregado, dinheiro nosso, nós somos todos patrocinadores do disco do Cascadura. Pois esse disco do Cascadura foi lançado, todo mundo escutou, só que dois meses depois ninguém estava mais ouvindo. E olha que eles fazem show pra caralho. Por que não estavam compartilhando a música de novo? Porque já tem um outro, um outro e um outro. Como é que se consolida a carreira assim, sem os filtros?

Essa é a grande questão. Você tem que ficar criando sempre um fato novo, com uma urgência enorme para que as pessoas possam lhe compartilhar. Só que não consolida. As pessoas não estão interessadas em consolidar. Elas estão interessadas em ficar reproduzindo o que está aparecendo enquanto novo. É dificílimo, hoje em dia, você conseguir consolidar carreira para um artista iniciante, porque tem trezentos outros fazendo a mesma coisa. Realmente é um novo imbróglio que temos que pensar como resolver. Ainda bem que tem, né? Porque é melhor do que quando só tinha a mesma panela de sempre.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2008
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7. O que você pensa da política de descentralização da cultura desenvolvida pela Secult-BA?

A territorialização da cultura proporcionada pela equipe que assumiu a gestão cultural na Bahia nesses últimos anos é fundamental. Há muito tempo que se pensa a Bahia enquanto Salvador, tanto que a gente chama ir para Salvador de ir à Bahia. A Bahia é um universo. A Bahia não é Salvador só. Como se o interior da Bahia fosse um imenso limbo, como se não acontecesse nada por lá. Salvador já tem um mundo, um universo gigantesco para contemplar enquanto preservação, enquanto produção. Descentralizar, retirar isso de Salvador e levar para o interior é um abacaxi maior. Você precisa de mais dinheiro ainda para fazer isso. Mesmo assim, com uma pasta com pouco recurso, eles encararam esse desafio. E ainda devem continuar fazendo. Já rende frutos.

Tem uma galera muito boa em Feira de Santana. Tem uma galera muito boa em Vitória da Conquista. Já começa a aparecer uma galera lá pros lados do oeste baiano, de Barreiras. Se continuasse com aquele olhar de que “a capital contemplava o que era a cultura na Bahia”, seria péssimo para a gente, para a diversidade. E a territorialização foi um dos principais pilares dessa revolução provocada pela mudança da gestão, sem dúvida. Inclusive, os nossos profissionais soteropolitanos poderiam perceber as potencialidades do interior para a criação de projetos e aproveitar e fazer isso. Porque fica todo mundo querendo criar coisas só em Salvador. Não, vamos pensar projetos no interior. Tem um exemplo, a gente. O meu grupo criou várias coisas em Salvador, qual deu certo? Foi o de Cachoeira. A territorialização tem que continuar como prática de política pública, independente do governo que esteja.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2009
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8. A partir da sua experiência com a Flica, como é desenvolver um projeto de grande porte no interior do Estado?

O principal desafio de se desenvolver um projeto no interior da Bahia é convencer um patrocinador privado a fazê-lo. A carência de patrocinadores privados voltados para investimentos em cultura na Bahia é tão grande em projetos realizados na capital, imagine como é isso no interior. Você chega para vender um projeto, em qualquer reunião comercial de empresa, você tem que ir para o sul. Tem que ir para São Paulo, às vezes você tem até que ir para Recife, você não vai para Salvador.

Quando você pensa em fazer um projeto no interior, tem que estar com os argumentos muito bem afiados para poder convencer a iniciativa privada a investir no seu evento. “Ah, vamos fazer no Capão porque o Capão é lindo!” Não existe isso. Antes de pensar em criar um projeto para o interior, você precisa ter o know-how daquela cidade. Se não, difícil conseguir tirar do papel. Vai perder seu tempo escrevendo e correndo atrás e não vai dar certo. Você precisa ir lá, averiguar. Ver quem é o prefeito, o que ele pensa, porque você pode precisar de apoio, tanto financeiro, quanto logístico. Você tem que fazer um estudo: quais são as empresas que podem atender em relação a som, luz, palco, estrutura em geral do seu evento. Se você vai precisar levar de Salvador ou se lá na região tenha alguma que atenda isso. Fora isso, temos algumas carências estruturais: leitos e outros serviços da cidade.

Por exemplo, a gente leva 30 mil pessoas para Cachoeira e não tem leitos suficientes para acomodar essas pessoas. Ao longo das edições que você vai fazendo, isso vai sendo melhorado. O profissionalismo enquanto produtor cultural, passa por aí. Se você tiver grana, não sei como, fazer uma pesquisa é importante para saber o quê que as pessoas daquela região querem. Às vezes você não precisa nem fazer uma pesquisa formal, pode fazer uma pesquisa com as pessoas ligadas à cultura naquela cidade: fulano, cicrano... Você pode chamar essa galera para fazer uma reunião, trocar uma ideia com um e outro, porque eles sabem qual é a tendência daquele lugar. E, a partir disso, criar os argumentos que sejam interessantes para o patrocinador privado investir no interior da Bahia, já que é muito difícil.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2010
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9. Como surgiu a Flica e qual a importância dela no contexto atual?

A Flica surgiu como ideia em 2008. Foi uma ideia de um produtor cultural também formado na Facom, chamado Alan Lobo. Eu abri uma empresa com o Marcus Ferreira, a Putzgrillo Cultura. Enquanto estávamos desenvolvendo o nosso portfólio de produtos, sugeri “pô, vamos fazer a ideia que o Alan teve, fazer uma festa literária, em Cachoeira”. Marcus é cachoeirano, adorou a ideia. Ele apresentou os argumentos para que a cidade fosse interessante de receber esse tipo de evento. Eu convidei o Aurélio Schommer que é um escritor ativista de literatura na Bahia, para que pudesse trazer esse lado mais literário para o grupo formado por mim, Marcus Ferreira, Aurélio Schommer e o Alan Lobo. Nós realizamos a Flica em 2011. O Alan saiu do evento no final de 2012. E agora o evento é realizado pela Cali (Cachoeira Literária) e a Rede Bahia.

A escolha de Cachoeira se deu porque atendia às demandas do que é uma festa literária: a cidade é turística, é histórica. Tem que ter essa característica cultural forte; manifestações culturais, um patrimônio histórico que possa ser visitado. E Cachoeira tem tudo isso. Além disso, Cachoeira é mística, né?! Tem os terreiros na região que tornam a cidade mais atrativa ainda e uma cultura negra muito forte. A maioria dos produtores culturais, quando estão iniciando, pensa em fazer festival de música. A fórmula do festival de música, inclusive, já está esgotada.

A Flica é um segmento interessantíssimo de mercado na cultura porque consegue unir três polos: cultura, educação e turismo. Também tem uma logística maravilhosa. Ela fica a uma hora e meia da capital. Então você desembarca uma atração internacional que é uma estrela do seu evento e, no máximo em duas horas, ela está na cidade. Isso é um diferencial enorme. Em Paraty, a cidade onde acontece a Flip - que inspirou a criação da Flica - , você desembarca a atração internacional e coloca ela quatro horas na estrada, é muito pesado. Cachoeira, além de reunir todos esses aspectos, tem uma prefeitura que compreende o que é o evento. Compreende a importância que ele tem para a cidade, para a região, para o seu povo e é parceira sua desde a primeira edição. Acredito que hoje em dia a Flica é um dos grandes projetos culturais da Bahia, reconhecido por muita gente.

Nada demais não cara, é trabalho bem feito. Não tem nada de excepcional em você fazer a Flica. A fórmula para criarem outras Flicas em outras áreas é simplesmente essa: encontrar o lugar. Primeiro você tem que sacar a demanda que existe. Qual era o grande evento literário na Bahia? A Bienal, ou seja: de dois em dois anos, no esquema feira do livro. Na feira do livro, o foco é a venda e não o encontro com o autor, que é o grande lance da Festa Literária. Havia uma demanda no mercado literário baiano, nas livrarias, nos autores, no público de literatura. E nós identificamos. Tínhamos uma demanda para um evento cultural que tivesse uma inserção midiática muito forte no interior, outro ponto. E o terceiro ponto: você conseguir atender todos esses aspectos da logística para poder montar o evento; aspectos estruturais, fornecedores, material humano para trabalho, etc.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2011
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10. Como se deu a parceria com a Rede Bahia no desenvolvimento do projeto e o que ela representa?

A Rede Bahia sempre mexeu em cultura. A Caminhada Axé, o projeto Pôr do Sol... só que nos últimos anos, esse investimento na área de cultura na Rede Bahia não foi tão presente. Eles acabaram focando no entretenimento, na criação do Festival de Verão. Criação, expansão e sucesso absoluto. É o principal evento de música do Norte-Nordeste e um dos principais do Brasil. Depois a criação do Festival de Inverno, filhote do Festival de Verão. Uma lacuna temporária, onde não tiveram muitos investimentos na área de cultura. E havia essa demanda dos acionistas para que a Rede Bahia, com a sua produtora Icontent, pudesse investir mais forte em cultura.

Rolou uma sincronia. Eles estavam pesquisando, procurando um grande evento cultural que pudesse acontecer na área do Recôncavo. A gente chegou na Rede Bahia, com a proposta da Flica em 2011. Viabilizado o contato pelo Darino Sena, nosso amigo que abriu as portas da Rede Bahia, a gente pode conversar com o João Gomes, que na época era o diretor de entretenimento e eventos da Rede Bahia. Um executivo extraordinário, com visão. Ele percebeu que o projeto daqueles meninos da Putzgrillo Cultura era o que estavam buscando em relação ao Recôncavo. Imediatamente ele disse “eu quero esse projeto, vamos fazer parceria”.

Hoje eles fazem a projeção de comunicação, também são realizadores e fazem o evento junto com a gente. Graças à força desse complexo comunicacional conseguimos expandir tão bem esse negócio. Os patrocinadores, quando fazem uma edição, já querem fazer de novo porque é um projeto que deixa legado. La crème de la crème dos projetos culturais é isso; você criar um projeto de responsabilidade social que interfira na comunidade e não seja predatório.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2012
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11. Como você avalia a questão da profissionalização na área de produção cultural? E quais são as principais necessidades no mercado baiano?

Eu já trabalhei como produtor cultural, produtor executivo, assistente de produção, coordenador de produção, coordenador geral, dono de evento, enfim, passei por todo esse leque. Profissão extremamente complexa, meu amigo. Às vezes, quando a gente vai para a faculdade, não tem ideia do tamanho do universo com o qual vai tratar. Geralmente o que impulsiona a pessoa a ser produtor cultural é porque ele tem alguma ligação artística; ou porque ele próprio é um artista ou queria ser um artista e não consegue ser. Não tem problema nenhum você não ter esse talento, cada um tem o talento da sua área. Então, movido por tal sentimento a gente vai buscar profissionalização. Só que quando chega lá falta muita coisa.

Não tenho propriedade para dizer especificamente do curso de produção cultural na Facom porque eu não fiz o curso. Eu tenho como dizer a partir das pessoas que fizeram esse curso, do meio e de quem já trabalhou comigo. Acho que falta muito de experiência prática para o curso de produção, principalmente falta matérias de administração. Claro que há aquela linha de produtores que não estão afim de ser administradores porque não querem ser donos de evento nenhum, não querem ser empreendedores, querem ser trabalhadores. Você pode simplesmente se especializar enquanto produtor executivo da feitura do evento; sacar de palco, som, lidar com técnico, aquela coisa toda, ser praticamente um técnico. Mas um profissional que se especializa enquanto produtor cultural tem que ter uma formação generalista da produção cultural. Você tem que sacar de todos os processos.

Vamos dizer que esteja no lugar de coordenador: precisa saber o que cada um dos produtores estão fazendo, onde é que estão errando. E, se você for o trabalhador, você tem que sacar o que o seu colega responsável por aquela tarefa está fazendo errado. Tem que chamar a atenção do seu coordenador, ou resolver. O profissional de produção cultural precisa de uma formação ampla, não só teórica. Eu fico vendo que a gente discute muito comunicação na universidade, até porque a universidade é a discussão do conhecimento, não é um curso técnico. Mas falta um braço prático no curso de produção cultural mais atuante. Os profissionais, eles aprendem na marra, no fazer do dia a dia, em cada coisa que aparece. E você, estudante de produção cultural, vai ter que sacar que precisa entender de contabilidade sim e de gestão financeira, gestão de recursos, de capacidade de negociação com os fornecedores.

Eu acho que falta uma consciência do produtor, que vai se tornar e está se tornando um profissional, de que ele precisa entender de muita coisa. É diferente do jornalista. Ele precisa ter muito conhecimento teórico para ser um bom jornalista; conhecer muita coisa para poder ter propriedade em um assunto que vai estar lidando. Já o profissional de produção cultural é mais complexo. Além de ter todo esse conhecimento de comunicação e de ciências sociais - para avaliar as manifestações artísticas, entender o trato humano, entender o que é que aquela região está precisando para evoluir pelo viés cultural - precisa ter uma gama de conhecimento técnico prático. Se ficar naquela de chegar no evento mandando mensagem no celular, tirando foto com famoso, no deslumbre... não pode. O mercado é exigente, precisamos profissionalizar o evento e não trabalhar com algo que seja legal porque lida com artistas famosos, porque é bom estar no meio. Não tem nada haver com isso. Trabalho, trabalho, trabalho.

Produções de Emmanuel Mirdad: Ano 2013
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12. Como avalia o mercado de trabalho para o profissional de produção cultural?

O produtor cultural tem que sambar para conseguir trabalho, né? Porém, como ele lida com um universo muito amplo, ele tem como trabalhar em vários lugares e de várias maneiras. Eu vejo produtor cultural cuidando do marketing de grandes empresas. Vejo produtor cultural formado que atua como relações públicas, ou como assessor de imprensa. Cultura é um universo, são diversas áreas de atuação e cada área possui uma especificidade.

O profissional, enquanto produtor executivo, depende que existam eventos para que ele esteja atuando. Como a quantidade de eventos não suporta a quantidade de profissionais do mercado, o que lhe garante no emprego é um bom trabalho. Nós sempre renovamos com quem trabalha legal, com quem manda ver, com quem está ali e faz tudo que tem que ser feito. Horrível para quem quer trabalhar, mas a gente sempre renova com o produtor competente, não troca. Só trocamos quando o profissional não quer mais trabalhar, ou quando não tem mais como porque está com a agenda cheia, mudou de Estado, ou porque fez uma merda muito grande. Isso acaba limitando também o mercado para novos profissionais. E se a gente não chamar aquele profissional e chamar um novo, aquele que botou para lenhar no seu evento vai ficar sem emprego. É um problema muito grande. Uma sugestão quando você tiver a oportunidade de trabalhar em um evento enquanto produtor executivo é: arrebente. Os coordenadores, os donos de evento se comunicam entre si. “Você tem quem indicar aí?”.

Produções de Emmanuel Mirdad
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13. Como você avalia os espaços culturais no Estado e quais são as principais carências?

Os espaços culturais tem um problema cíclico e sempre em voga: eles não duram muito. E tem aquele problema do sucateamento dos espaços culturais do governo, embora, nos últimos tempos, eles têm sido renovados e reaproveitados. Eu enxergo que não tem como o espaço cultural durar muito tempo, porque o público não é fiel. Algo que a gente vai enfrentar sempre, essa rotatividade de espaços culturais. O que não pode acontecer é quando um fecha e não abre mais, não aparecer outro. Avalio que não vai haver uma política de sustentabilidade desses espaços culturais tão ou mais eficaz que o Ponto de Cultura. Foi a melhor forma que o governo encontrou para incentivar o espaço cultural, para que ele não seja fechado porque a demanda privada não foi acionada. Talvez ela não tenha sido acionada de uma maneira eficiente, compreendendo que é interessante aportar recursos ali.

Nos espaços de entretenimento, os recursos existem porque são eventos de alto lucro. Ao meu modo de ver, dentre todas as nossas carências no mercado de produção cultural é melhor investir na preservação de patrimônio histórico e na preservação de manifestações culturais espontâneas, investir na criação de novos eventos e na sustentabilidade dos eventos existentes, do que investir na sustentabilidade de espaços culturais. Eu acho que dentro de uma escala de prioridade, a prioridade de se manter um evento,  uma manifestação, um patrimônio é maior do que você ter o investimento na manutenção dos espaços culturais, porque os espaços se renovam.

Discografia de Emmanuel Mirdad
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14. O que você pensa sobre a gratuidade do acesso a produtos e bens culturais? E em relação ao valor dos ingressos em Salvador? 

A Flica é 100% gratuita, sempre foi e sempre será. Eu lembro do meu amigo Ricardo Cury que sempre questionou “como é que um evento é patrocinado com dinheiro público e cobra ingresso?”. Eu já fiz evento patrocinado com dinheiro público e cobrei ingresso. Hoje em dia percebo que o Ricardo Cury está certo. Acredito que se entrou dinheiro público, tem que ser de graça. Aí vem os meus colegas e falam “como você fala um negócio desses Mirdad, como a gente vai conseguir a sustentabilidade enquanto empresa?”. Não quero advogar contra os meus colegas, mas conceitualmente o correto é não cobrar. Mas enquanto não conseguimos pensar como ter essa sustentabilidade, eu acho que se deve continuar cobrando. Tem esse paradoxo. Enquanto a gente não resolve como sustentar os novos produtores e as empresas, como cortar essa fonte de renda? Na prática, não tem como ainda.

A Flica, ao optar pela gratuidade, seguiu uma estratégia de marketing do evento. Quando você chega para o patrocinador e diz “meu evento é 100% gratuito”, você entra em outro patamar. Está lidando com a estratégia de venda enquanto projeto de responsabilidade social. Diversos patrocinadores adoram quando você diz que o seu evento é gratuito. A gente consegue fazer uma Flica assim, ela sendo sustentável com essa estratégia. Outra coisa é: como é que você vai para a rua lutar por um Brasil gigante, contra a corrupção e chega no cinema e pica-lhe uma carteira falsa, qual é a coerência disso? Infelizmente, quem está fazendo evento que se cobra ingresso tem que atochar o preço mesmo. Enquanto não houver um respeito em relação a isso e uma fiscalização mais efetiva, eu acho justo os produtores culturais aumentarem o preço para poder garantir que aquela meia entrada pelo menos fosse a entrada correta que aquele cidadão deveria ter pago. Quando a gente cria um orçamento, se contabiliza que precisa tirar x por cento da bilheteria, tem que atingir o x por cento.

Livros de Emmanuel Mirdad
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15. Qual sua opinião quanto a organização da classe artística baiana?

Tenho mais propriedade para falar na área da música e da literatura. Falando dos escritores, acho muito bacana o que acontece: diversos escritores nos lançamentos dos livros dos amigos, dos colegas. Inclusive, há lançamento de livros em que 80% do público é escritor. Fazem questão de prestigiar o amigo, comprar um livro.

No caso dos músicos, eu posso falar do rock: essa última geração me surpreendeu porque foi uma geração que, na verdade, não é nem mais rock. É tudo, é música independente. Eu vejo muitos músicos se apoiando, tocando música do outro e isso foi uma melhora porque antes, nos anos 2000, não existia. Nessa geração nova, a geração de Maglore, Pirigulino, vejo as bandas alimentando esse sentimento de tocar música e divulgar o trabalho do outro e estar presente nos shows. Em outros segmentos como o samba, as pessoas sempre foram unidas. Hoje em dia há uma cumplicidade muito grande das pessoas se ajudando e isso deve continuar.

Composições de Emmanuel Mirdad
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16. Qual a importância da critica na área da cultura para você e como avalia a crítica na Bahia hoje?

A crítica baiana está de luto. Perdemos recentemente João Carlos Sampaio - era nosso melhor crítico cinematográfico em ação na Bahia - , uma pessoa fantástica que deixou diversos órfãos. A crítica cultural como um todo, enfim, nos grandes jornais, perdeu espaço progressivamente. Era muito difícil você ter alguém com o talento e a sagacidade como João Carlos Sampaio.

Por conta da facilidade nos processos de registro, gravação e produção de conteúdo, a crítica nunca esteva tão necessária como agora. Hoje em dia, com uma câmera dessa que estão me filmando aqui, a pessoa faz um filme. A facilidade de se produzir criou todo um universo gigantesco de produção que não consegue ser consumida. Não adianta, no caos da internet tudo está ali e nada está ali se não há público para consumir. A crítica é o canal que vai dizer “consuma isso, consuma aquilo, ou não consuma”. A gente precisa, cada vez mais, de filtros diante dessa produção.

Por mais que não concordemos com alguns críticos, porque a vaidade estraga bastante o trabalho e tem gente falando muito besteira por aí. Também tem críticos demais hoje em dia. Críticos de facebook proliferados sem nenhum tipo de fundamento. Então você tem o caos na crítica também; críticos de quinta categoria que nunca foram críticos, mas estão lá criticando tudo. Todo mundo hoje critica tudo sobre todas as faces. A crítica especializada, o profissional de jornalismo que estudou pra caramba e precisou ver muita coisa, consumir muita coisa e, além disso tudo, ter a destreza para expor esse conteúdo, ele é um profissional extremamente necessário. Estudem para isso, se preparem, precisamos da crítica, ela é o filtro da produção cultural.

PS – Essa pergunta foi feita antes da morte do mestre
André Setaro, descanse em paz.

Resumo da entrevista em vídeo

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17. O quê e/ou quem (projetos / espaços / instituições) você destacaria em termos de gestão cultural na Bahia e por quê?

Aqui em Salvador, eu gosto de destacar o trabalho do Teatro Solar Boa Vista. Chico e a galera que está empreendendo aquilo ali, tem feito um trabalho fantástico. Rola muito show dinamizando o espaço em brotas que é: lindo, histórico, de fácil acesso (de todo lado da cidade se chega lá) e com uma programação maravilhosa. Gosto também do trabalho do Teatro Gamboa Nova. Sempre com peças interessantes de gente que está começando, shows musicais de gente que precisa de acesso e que geralmente não tem.

Existe uma carência grande de teatros na cidade. Muita gente começa no teatro Gamboa Nova: Tiganá Santana é um exemplo disso. A gestão do pessoal do Sesi, maravilhosa. Fazem a Varanda do Sesi, no Rio Vermelho. Importantíssimo para a produção da música popular brasileira. A nova música popular brasileira produzida em Salvador e na Bahia passa pela Varanda. Gosto de destacar também o trabalho que se está fazendo lá no Teatro Plataforma, muito bacana. As sessões de produção feita pela galera dali, passando por lá mesmo. E tem muita gente por aí fazendo coisa interessante que eu posso estar esquecendo aqui agora. Gosto de destacar também o pessoal de Feira de Santana com o maravilhoso trabalho Feira Noise e vários eventos passando por lá, a galera de Joílson e companhia. Muita gente fazendo cultura que merece destaque hoje. Precisamos é de mais patrocinadores.

* Entrevista realizada por Camila Hita de Aguiar, Gabriela Carvalho e Sandrinalva Silva, no dia 06 de maio de 2014, no Condomínio Solar das Mangueiras – Barra, em Salvador.

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