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Dez poemas de Liana Ferraz no livro Sede de me beber inteira

Liana Ferraz (foto: Bob Wolfenson)

[aniversário]
Liana Ferraz

Acho que número é coisa ruim pra gente
contar vida
Acho até que a gente deveria comemorar outra
coisa nos aniversários.
Talvez a volta ao redor do sol.
Que é a mesma coisa mas não é.
Porque número é um negócio que serve pra
pesar batatas.
Número é negócio que serve pra contar
catálogos
Número é negócio estreito demais pra caber
vida.
Imagina que a gente comemora mais uma
volta ao redor do sol. e que aventura imensa é
estar aqui orbitando juntos mais um pouco.
Imagina se a gente passar a contar não os anos
mas as histórias.

Talvez a gente perdesse o medo de envelhecer
e quisesse ver passar os ciclos histórias sem a
pressa da meta número.

A gente espreme a vida em números.
Mas a vida escapa sempre.
E vence.

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sem título
Liana Ferraz

Será que você me ama o suficiente pra amar o
jeito como eu dobro minhas camisetas?
Será que sente ternura ao olhar o restinho de
café na xícara de manhã?
Será que sorri quando encontra pela casa um
pedacinho de papel com a minha letra?
Será que você me ama o suficiente pra amar o
que eu deixo de rastro?
Não meu cheiro ou meu corpo ou meu sorriso
ou meus cabelos.
Falo de amar mesmo na ausência. De amar no
que vai ficando por aí de mim.
Me amar na fotografia. Bem demorado.
Bebendo cada pedaço daquela pessoa que
eu era. E que fomos. Um dia. Bebendo pra
aumentar a sede de mim. Aumentar a sede pra
quando eu entrar pela porta.
Ou será que agora você vai olhar o jeito
como eu dobro a camiseta e achar que eu faço
isso errado?
Ou que eu deveria ter recolhido a xícara
de café?
Ou que sempre esqueço a lista do
supermercado e deixo de comprar o que
precisamos?
Ou que na fotografia eu finjo ser o que não sou?
E aí você vai encher o copo demorado.
Enchendo pra quando eu entrar pela porta
ser a gota d’água.
Responda, meu amor:
o amor que você sente por mim ama ou odeia
os meus rastros?

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sem título
Liana Ferraz

Nos gostam mortas
Essa é a verdade
Nos gostam geladas e caladas
Obedientes
Nos gostam domesticadas e reclusas em tons
pastel
Nos gostam amestradas de não constranger
maridos
Nos gostam assim compartilhando
amenidades
Em oração pela sabedoria do marido pela
saúde dos filhos.

Nos gostam assim ajoelhadas:
As esposas em devoção
as amantes em ação
Nos gostam assim.

Na verdade, não nos gostam assim
Porque não nos gostam.
Gostam de um espectro de subserviência
Assombrando casas e genomas
Passado de geração em geração.

À mulher que deseja quebrar esse ciclo
Resta a quebra abrupta
A abertura explosão
Da boca dizendo não.

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sem título
Liana Ferraz

Multidões costumam ser os meus lugares mais
solitários
É que, de repente, eu me vejo fingida,
personagem de mim.
Impulsionada por um desejo de pertencer
de parecer de estar mais feliz do que eu estou.
Mais disposta, mais alegre.
Acontece, às vezes, de nascer do fingimento
uma verdade e eu me sentir ali no meio
abraçada e tranquila.

Mas tantas tantas vezes esse personagem de
mim que fala sem parar para não dar brecha
para os desesperos e as inseguranças
termina o dia com mil rostos abraços olhares na
memória e um vazio de faltar nessa memória a
pessoa que mais queria ter encontrado:
eu mesma.

--------

[a morta pelo marido]
Liana Ferraz

pela foto se vê que era abusada estava
implicando estava dando sopa dando motivo
dando o que falar
Aí a morta precisa dar explicações.
Mas a morta não fala
Aí pedem explicações às fotos da morta.
E se lá em algum momento lá em alguma festa
e se lá em alguma bebedeira aparece a morta
no “escândalo”
enterra-se a compaixão junto com a morta
Que mulher precisa de “atestado de mulher
direita” para não ficar sendo assassinada
depois da morte pra não ficar sendo
apunhalada violentada.
Para morrer mulher e gerar compaixão é
preciso ter sido pura discreta boa moça mãe
de família.
Assim fica dado o recado
Espalhado pelo ar
Mulher que não quer ser morta
Precisa se resguardar
Assim fica dado o recado achado o motivo
Que morte de mulher nunca é culpa do marido
É sempre alguma coisa que ela fez de
descabido
Para garantir que mulheres sejam
Sempre domesticadas
A mulher mesmo morta
Segue sendo julgada
E condenada.

--------

sem título
Liana Ferraz

eu não sei morrer
não mesmo.
há tanto tempo tenho medo da morte que acho
até que nasci com ele.
o medo da morte.
tenho medo de sentir saudades demais.
ou de nem sentir nada.
saudades até de puxar água da pia com o
rodinho depois de lavar a louça.
sob a perspectiva da morte, fica bem bonita a
vida. cheia de sentido. desse tipo tato mesmo,
sabe?
como quando a gente toma um copo d’água
com muita sede. ou faz xixi com muita
vontade.
sentidos de alívios e de partos.
como quando nascem felicidades sem avisar
a gente.
sob a perspectiva da morte, tudo fica bem
bonito. mas aí a gente traz a saudade junto
com a beleza. e fica tudo bem bonito e triste.
como se eu já estivesse sentindo a água
e a falta da água junto.
é um jeito de olhar a vida. e a morte. como
a água e a sede e a falta. como lados de uma
figura geométrica e infinita.
um cristal!
eu penso demais nisso. acho.
penso todo dia. olho para meus pedacinhos de
vida e me reconheço mais quando escrevo do
que quando olho no espelho.
o corpo parece um pretexto pra vida.
ao mesmo tempo que é a vida em sua
complexidade de redes desconhecidas
e profundas.
mas não esse corpo de que a gente quer arrancar
pelos e rugas. outro corpo. porque esse
primeiro é corpo ilusão. corpo de quem, no
fundo, acha mesmo que é de fora pra dentro a
eternidade.
que bom que eu temo a morte com tanta
rotina nesse temor! que bom!
isso já me livrou de escolher vender meu
tempo por lençóis de muitos fios.
isso já me livrou de, por pressão social, deixar
de estar com minha filha pra acumular o
suficiente pra pisos de mármore.
ou lápides de mármore.

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sem título
Liana Ferraz

Nas pequenas coisas. Nas coisas minúsculas,
estão inseridos deveres infinitos para
as mulheres.
Estudar muito e organizar gavetas.
A casa em ordem e a conta bancária em dia.
Uma pele descansada e disposição para dormir
quatro horas por noite e continuar disposta.
O pensar em mil coisas ao mesmo tempo e
achar que isso é natural.
A fada do dente e a consulta no pediatra.
Revelar as fotos e pensar como comprar
orgânicos sem falir.
Ser fitness mas nem tanto amorosa mas nem
tanto maternal mas nem tanto independente
mas nem tanto ousada mas nem tanto rica
mas nem tanto.
Experimente dizer:
Vou descansar um pouco.
Sem ter que listar as coisas que você fez
Ou sem ter que estar doente ou com dor
de estômago.
Experimente dizer:
Vou tirar um cochilo.
E vá.
E lá, lembre-se, ser mulher que dá conta de
tudo é bom pra todo mundo.
Menos pra você.

--------

sem título
Liana Ferraz

Eu me pego imaginando lugares.
Que já fomos ou vamos.
Que são hoje memória. Ou projeto.

Será que você pensa em mim assim?
Como quem escreve num diário?

Fico pensando nas datas e nos detalhes.
Cuidando da memória que a gente vai ter.
Cuidando da saudade.
Cuidando das histórias que vamos contar
depois.

Eu cuido das palavras inúteis.
Que não levam pra frente nem pra trás.
Mas que dão colo.

Às vezes eu acho que fico me revezando em
todos os papéis nessas coisas de carinho.

Enquanto isso você cuida dos seus papéis.
Com a importância de quem carimba selos de
vida ou morte. Utilidades e metas e pressas.
E acho que lá, nos seus papéis, não estou nem
no rascunho.
Nem na notinha de rodapé.
Ou estou como tarefa. Tarefa a ser cumprida.
E eu queria estar como poeminha improvisado.
Como escapadinha no tempo relógio.

Sabe, acho que tenho feito papéis demais
nessas coisas invisíveis.
Essas coisas de carinho e de sonho.

Vai ver é por isso...
Tão cansada...
Tão sozinha...
Vai ver é por isso que eu me sinto tão cansada.
Carregando assim. Por nós dois. Todas as
coisas invisíveis do amor.

--------

[cuidado]
Liana Ferraz

Se você tivesse devolvido a pergunta saberia

Quando eu perguntei do que você tem medo
e você disse nada eu queria muito ouvir

E você?

Teria dito que tenho medo de um câncer
silencioso devorando o peito e de quem me
daria a mão numa sessão de quimioterapia.

Teria dito que meu maior medo é a nudez de
sentir que preciso ser cuidada por alguém com
mãos ágeis para o amor e para suportar o peso
do meu corpo entorpecido.

Teria dito que sou uma casca delicada. Uma
película e que disfarço bem e por isso é
também culpa minha que você não tivesse
notado o terror estampado nos meus olhos
naquele dia em que fui abandonada chorando
uma morte nossa.

Eu não gosto de ficar nua da autonomia.

--------

[labirintite]
Liana Ferraz

Eu sou uma mulher para não casar

Por favor, peça-me em descasamento e jure
não me amar para sempre.
Não quero amor imperecível como óleo de
soja, sal ou qualquer coisa dessas que ficam
úmidas de tão guardadas.
Não ponha um anel no meu dedo.
Diga que me ama só de vez em quando
Eu canso.
Sou mulher para não casar.


Presentes no livro de poemas “Sede de me beber inteira” (Planeta do Brasil, 2022), de Liana Ferraz, páginas 205, 113-114, 188, 79, 172-173, 202-203, 167, 139-140, 174 e 156, respectivamente.


Aforismos de Liana no livro

“Liberdade é coisa feita sob medida: a do outro nunca nos serve”

“Ao lembrar que o universo é tão imenso, resolvi ficar bem pertinho de mim”

“Felicidade não é lugar que se habita, é lugar que se atravessa”

“O tempo passa lento, mas acaba rápido”

“Se eu tapar os buracos por onde a vida escapa, como é que ela vai entrar?”

“Você poderia gostar do meu modo caótico de priorizar invisíveis”

“Eu sou o que movimento”

“A natureza das coisas é permanecer partindo”

“Acho que as estrelas são feitas da gente olhar para elas”

“Sei nadar porque sei viver e a vida é a gente conviver com nossos mares”

Aforismos presentes no livro de poemas “Sede de me beber inteira” (Planeta do Brasil, 2022), de Liana Ferraz, páginas 31, 55, 39, 73, 127, 59, 30, 204, 143 e 222, respectivamente.

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