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Dez passagens do livro de memórias Sul & Oeste, de Joan Didion

Joan Didion (foto: Julian Wasser)


“No Sul eu não conseguia deixar de pensar que, se tivesse vivido lá, teria sido uma mulher excêntrica e cheia de raiva, e me perguntava que forma teria assumido essa raiva. Será que eu teria me dedicado a defender alguma causa ou teria simplesmente esfaqueado alguém?”


          “Os centros turísticos da Costa do Golfo sobrevivem, em certa medida, das apostas ilegais, de cassinos escondidos entre os pinheiros e conhecidos por todos os turistas. A máfia é poderosa na costa.
          As mulheres no brunch, falando sobre a televisão:
          — Eu deixo ligada para ver as séries.
          — Eu preciso ter uma por causa das séries.
          — Eu só ouço rádio quando estou na cozinha.
          Perguntei se ela escutava enquanto dirigia. A bela jovem olhou para mim como se estivesse realmente perplexa.
          — Dirigir para onde? — perguntou ela.”


“Quando se falava sobre ‘um cavalheiro à moda antiga’, havia uma familiaridade com gerações inteiras de comportamento excêntrico, escândalos e arranjos, grandes dramas extraconjugais se desenrolando com o desfile da Legião ao fundo. (...) A maioria dos sulistas é realista em matéria de política: eles entendem e aceitam a realidade do funcionamento da política de uma maneira que nunca fizemos na Califórnia. A corrupção é aceita como modo de vida, mesmo que à vista de todos. ‘Uma pessoa que ganha oitocentos dólares por mês como diretor financeiro do estado tem apenas quatro anos para juntar algum dinheiro.’”


          “(...) Ben C. já havia perguntado que ‘modalidade atlética’ meu marido praticava e por que havia permitido que eu, enquanto fazia uma reportagem alguns anos antes, ‘passasse meu tempo me associando a um bando de hippies maconheiros’.
          — Quem lhe deu permissão? — repetiu ele.
          Eu disse que não estava entendendo o que ele queria dizer.
          Ben C. se limitou a olhar para mim.
          — Quer dizer, quem ia me proibir?
          — Você tem marido, não? — disse ele, por fim. — Esse homem que achei que era seu marido há anos, ele não é seu marido?”


“Por coincidência, aprendi a cozinhar com uma pessoa da Louisiana, onde a ávida preocupação dos homens com receitas e comida não era algo que me causasse estranheza Vivemos juntos por alguns anos, e acho que o momento em que nos compreendemos melhor foi quando tentei matá-lo com uma faca de cozinha. Eu me lembro de passar dias inteiros cozinhando com N., talvez os dias mais agradáveis que passamos juntos. Ele me ensinou a fazer frango frito, a preparar recheio de arroz integral para aves, a picar endívias com alho e suco de limão e a temperar tudo que cozinhava com tabasco, molho Worcestershire e pimenta-do-reino. O primeiro presente que ele me deu foi um espremedor de alho, e também o segundo, porque quebrei o primeiro. Um dia, na Costa Leste, passamos horas preparando creme de camarão, depois tivemos uma discussão sobre a quantidade de sal necessária, e como havia passado várias horas bebendo Sazeracs, ele despejou um punhado de sal na sopa só para provar que tinha razão. Ficou parecendo uma salmoura, mas fingimos que estava ótimo. Atirar o frango no chão, ou as alcachofras. Comprar especiarias para cozinhar os mariscos. Ter conversas intermináveis sobre as possibilidades de um guisado de alcachofras com ostras. Depois que me casei, ele ainda me ligava de tempos em tempos para me pedir receitas.”


“Em junho o ar de Nova Orleans fica carregado de sexo e morte, não uma morte violenta, mas uma morte por decomposição, por excesso de amadurecimento, putrefação, morte por afogamento, por asfixia, por febres de etiologia desconhecida. O lugar é fisicamente escuro, escuro como o negativo de uma fotografia, escuro como uma radiografia: a atmosfera absorve sua própria luz, nunca a reflete, mas a absorve até que qualquer objeto brilhe com uma luminescência mórbida. As criptas acima do solo dominam determinadas paisagens. Na liquidez hipnótica da atmosfera, todos os movimentos desaceleram até se converterem em uma coreografia, todas as pessoas na rua se movem como se estivessem suspensas em uma emulsão precária, e parece que entre os vivos e os mortos há apenas uma distinção técnica. (...) Era um fatalismo que eu acabaria reconhecendo como algo endêmico do tom característico da vida em Nova Orleans. Bananas apodreciam e abrigavam tarântulas. O mau tempo aparecia no radar, e era muito ruim. Crianças tinham febre e morriam, discussões domésticas terminavam em esfaqueamentos, a construção de estradas levava à corrupção e a rachaduras no pavimento por onde as trepadeiras tornavam a assomar. Assuntos de Estado caminhavam para ciúmes sexuais, como se Nova Orleans fosse Porto Príncipe, e todos os homens do rei se voltavam contra o rei. A temporalidade do lugar é operística, infantil, o fatalismo de uma cultura dominada pela selva. ‘Tudo que sabemos’, disse a mãe de Carl Austin Weiss sobre o filho, que havia acabado de matar a tiros Huey Long em um corredor do edifício do Capitólio do estado da Louisiana, em Baton Rouge, ‘é que ele levava a vida a sério.’”


          “Na farmácia, uma moça estava conversando com a mulher atrás do balcão.
          — Vou fugir e me casar — disse ela.
          — Com quem? — perguntou a mulher da farmácia.
          A jovem amassou o canudo de papel.
          — Eu vou me casar — disse ela, teimosa. — Não importa com quem.”


“Havia uma rifa sendo realizada entre os presentes no almoço, e o primeiro prêmio era um revestimento de madeira projetado para as paredes de um cômodo. As mulheres realmente queriam aquele revestimento, e também queriam o conjunto de facas de trinchar, o baralho, o par de sapatos Miss America, o espelho de maquiagem com luzes embutidas e a xilogravura de Jesus Cristo. Relembraram quem entre elas havia ganhado os prêmios da rifa no ano anterior, e a sala foi tomada pela inveja nostálgica que sentiam umas das outras. Garotinhas com sandálias e vestidos de verão brincavam nos fundos do salão, esperando pelas mães, que agora, em pleno sorteio, se comportavam como crianças. (...) Era surpreendente desconcertante constatar como aquelas pessoas estavam isoladas do que era normal na vida americana em 1970. Toda a informação que recebiam era de quinta mão e ia sendo mitificada pelo caminho.”


“Quando penso em Nova Orleans agora, me lembro principalmente de sua densa obsessão, de sua vertiginosa preocupação com raça, classe, legado histórico, elegância e ausência de elegância. Ao que parece, todas essas preocupações envolvem distinções que a ética da fronteira ensina as crianças do Oeste a negar e a deliberadamente não mencioná-las, mas em Nova Orleans essas distinções são a base de muitas conversas e são o que dá a essas conversas sua peculiar crueldade e inocência infantil. Em Nova Orleans também se fala de festas e de comida, as vozes se elevando e baixando, nunca constantes, como se falar sobre qualquer coisa pudesse manter a natureza selvagem distante. Em Nova Orleans há a sensação de que a natureza selvagem está muito próxima, não como a natureza redentora da imaginação do Oeste, mas algo repulsivo, velho e malévolo, a ideia da natureza selvagem não como uma fuga da civilização e de seus descontentamentos, mas como uma ameaça mortal a uma comunidade precária e colonial em seu sentido mais profundo. O efeito é vívido e avarento e intensamente egocêntrico, um tom bastante comum em cidades coloniais e que constitui a principal razão por que acho essas cidades estimulantes.”


          “No centro dessa história, há um segredo terrível, um grão de cianureto, e o segredo é que a história não importa, não muda nada, não faz nenhuma diferença. Segue nevando na Sierra. O Pacífico segue estremecendo em sua bacia. As grandes placas tectônicas se movimentam umas contra as outras enquanto dormimos e acordamos. Cascavéis na grama seca. Tubarões sob a ponte Golden Gate. No Sul, eles estão convencidos de ter banhado sua terra de sangue com a história. No Oeste, não acreditamos que nada do que fazemos pode banhar de sangue a terra, mudá-la ou afetá-la.
          Como chegamos a isso?
          Estou tentando encontrar meu lugar na história.
          Passei a vida buscando a história e ainda não a encontrei.”


Presentes no livro de memórias “Sul & Oeste” (HarperCollins Brasil, 2022), de Joan Didion, traduzido por Marina Vargas, páginas 67, 56, 79 e 81, 38, 31-32, 29 a 31, 74, 51-52, 42 e 116, respectivamente.


Aforismos de Joan Didion em “Sul & Oeste”

“Eu estava condenada à não convencionalidade”

“Para ser a mulher que desejava ser, precisava rejeitar veementemente muitas das coisas que tradicionalmente davam prazer as mulheres: cozinhar”

“Os esportes são o ópio do povo”

“Um mundo de superfícies polidas, interrompidas ocasionalmente por um clarão de excentricidade tão profundo que tornava impossível qualquer tentativa de interpretação”

“A morte segue sendo algo natural e sempre presente no Sul, de uma maneira que já não é nas partes urbanizadas do país, onde os cemitérios são parques de sepultamento e foram relegados a terrenos não utilizados ou inutilizáveis, longe da vista.”

Aforismos presentes no livro de memórias “Sul & Oeste” (HarperCollins Brasil, 2022), de Joan Didion, traduzido por Marina Vargas, páginas 117, 102-103, 78, 37 e 88, respectivamente.

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