Vejo Ferreira Gullar e me lembro de meu pai; cara de carranca e cabelos grandes, magro, filopoeta e contestador. São contemporâneos de nascimento, dos longínquos anos 30; nos 80 anos do poeta maranhense, estive presente na inesquecível mesa festa dedicada a ele na Flip 2010, e a poucos metros do futucador José Ribamar, só pude lembrar-me do sergipano Ildegardo, que fará 80 logo mais em outubro.
Dentro da Noite Veloz, sabiamente recomendado ainda no colégio, apresentou-me o trabalho de Gullar, mas foi Poema Sujo que me chocou e formou meu gosto por poemas para muito além da forma e prepotência; é o jorro que importa, os enquadros que fotografam o que todo mundo vê, mas quase ninguém eterniza.
Recentemente fiz um teste; na prateleira de “poesia” da Livraria Cultura, pus-me a ler diversos poetas, e o único livro que comprei, satisfeito com o que rapidamente li, foi Em Alguma Parte Alguma, o mais recente do ilustre José Ribamar, o Ferreira Gullar. Abaixo, seguem pílulas que captei na primeira leitura desta bela obra.
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O poema antes de escrito não é em mim mais que um aflito silêncio ante a página em branco.
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O poeta que grita, erra, e como se sabe, bom poeta (ou cabrito) não berra.
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O poeta não revela o oculto: inventa, cria o que é dito (o poema que por um triz não nasceria)
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O poeta inventa o que dizer e que só ao dizê-lo vai saber o que precisava dizer ou poderia, pelo que o acaso dite e a vida provisoriamente permite.
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Meu assunto por enquanto é a desordem, o que se nega à fala, o que escapa ao acurado apuro do dizer; a borra, a sobra, a escória, a incúria, o não caber.
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Por mais que diga e porque disse, sempre restará no dito o mudo, o por dizer, já que não é da linguagem dizer tudo.
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A fala é só rumor e ideia; não exala odor (como a pera) pela casa inteira. A fala, meu amor, não fede, nem cheira.
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A mais dura parte de mim dura mais do que tudo o que ouço e penso, mais do que tudo o que invento e minto; este osso, dito perônio, é, sim, a parte mais mineral e obscura de mim, já que à pele e à carne irrigam-se o sonho e a loucura.
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Que a sorte me livre do mercado e que me deixe continuar fazendo (sem o saber) fora de esquema meu poema inesperado.
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A parte mais efêmera de mim é esta consciência de que existo... e mais estranho ainda me é saber que esta consciência dura menos que um fio de meu cabelo.
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A poesia é, de fato, o fruto de um silêncio que sou eu, sois vós, por isso tenho que baixar a voz porque, se falo alto, não me escuto.
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Bananas azedam em suas roupas negras e ali na polpa, o açúcar acelera a vertigem em direção ao caos, ou seja, a uma aurora outra, sem luz, quando a forma se desfaz em água chilra.
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Indiferente ao suposto prestígio literário e ao trabalho do poeta à difícil faina a que se entrega para inventar o dizível, sobe à mesa o gatinho; se espreguiça e deita-se e adormece em cima do poema.
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Do fundo das gavetas, de dentro de pastas e envelopes, do fundo do silêncio encardido em folhas de jornal de um tempo ido, ali regressa à luz, puído, o murmúrio inaudível das vozes no mofo impressas mudas ainda que plenas de retórica.
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O homem é uma aflição que repousa num corpo que ele de certo modo nega, pois que esse corpo morre e se apaga.
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Assustado e mudo, bem menor que um ínfimo grão de poeira, contudo, sou capaz de apreender, no meu íntimo, essas incontáveis galáxias, esses espaços sem fim, essa treva e explosões de lava. Como tudo isso cabe em mim?
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E então me digo: se o mundo dura tanto e eu tão pouco, importa pouco se ele não for eterno.
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Onde o morto deitou-se quando vivo, na cama de hospital, não resta rastro, nem resta mesmo a cama, os lençóis que o leito foi desfeito e refeito para outros que ali morreram sem deixar marca.
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O futuro não está fora de nós, mas dentro, como a morte que só nos vem ao encontro depois de amadurecida em nosso coração. E no entanto, ainda que unicamente nossa, assusta-nos.
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Verdade é que cada um morre sua própria morte, que é única porque feita do que cada um viveu.
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Infinita é a mistura de carne e delírio que somos e, por isso, ao morrermos, não perdemos todos as mesmas coisas, já que não possuímos todos a mesma quantidade de sol na pele, a mesma vertigem na alma, a mesma necessidade de amor e permanência.
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Íntegra do poema Nem Aí..., e fragmentos dos poemas Fica o Não Dito por Dito, Desordem, Reflexão Sobre o Osso da Minha Perna, Off Price, Perplexidades, Falar, Bananas Podres 5, Falas do Mofo, Uma Pedra é Uma Pedra, Universo, A Relativa Eternidade, Vestígios e Rainer Maria Rilke e a Morte, todos integrantes do livro Em Alguma Parte Alguma (2010), de Ferreira Gullar, editora José Olympio. Compre o seu aqui.
Em Alguma Parte Alguma
Release
Após dez anos da publicação de seu último livro de poemas, Muitas vozes, Ferreira Gullar entrega ao público, agora, este Em alguma parte alguma, em que dá prosseguimento à reflexão poética sobre a existência. Este difere dos livros anteriores, no desenvolvimento de novos temas e, sobretudo, pelas questões que suscita na realização do poema.
É ele mesmo, o autor, quem costuma assinalar, como característica de sua produção poética o fato de que, sem que o busque deliberadamente, cada um de seus livros de poemas difere do outro, bem mais do que costuma ocorrer num mesmo autor. Faz questão de assinalar que não planeja seus livros de poemas, sendo eles, portanto, resultado da própria indagação poética e da reflexão sobre a vida e sobre seu trabalho de poeta.
Ferreira Gullar afirma que o seu poema nasce do “espanto”, quando inesperadamente depara-se com um aspecto inesperado do real e, a partir daí, vão se sucedendo os poemas, até que a motivação se esgote. Isso explica a recorrência de determinados temas, que, tempos depois, voltam a ganhar atualidade.
Nestes últimos anos, a obra de Ferreira Gullar, já consagrada pela crítica e pelos leitores, foi distinguida com prêmios de alta significação na vida cultural, como o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e, este ano, com o Prêmio Camões, a mais alta distinção que se concede a escritores de língua portuguesa. Gullar foi também indicado para o Prêmio Nobel de Literatura, em 2002 e 2004.
O livro pelo próprio autor
(retirado daqui)
"["Em Alguma Parte Alguma"] predomina uma certa relação entre ordem e desordem. Eu escrevi no limite da ordem, ou seja, no limite da desordem. A maneira de fazer os poemas foi diferente, mais desordenada.
Comecei a escrever sem saber o que iria acontecer, sem planejar nada, sem preconceber. A poesia foi para mim uma grande aventura. Ao contrário dos outros livros, em que os poemas já nasciam quase prontos, já que ficava sempre refletindo e elaborando antes de escrever. Já hoje começo sem saber o que vai acontecer. Tanto que o primeiro poema, que abre o livro, tem o nome "Fica o Não Dito por Dito". Eu tô dizendo que, já que não posso dizer o que quero dizer, faz de conta que eu disse"
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Comentários
jorrar palavras apenas é derramar o sentimento para que se perca. e aí não adianta mais chorar, nem ter chorado.
Ferreira Gullar é foda. também gosto muito.