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Cinco poemas e três passagens de Alba Liberato no livro Ditos do povo, ditos do coração

Alba Liberato (foto daqui)


Quem vê cara vê coração
Alba Liberato

Sendo a boca gula e fala
o que ela peça
porquanto meça
expressa verdade,
a boca exala hálitos
ardência e demência
ou cala e silencia
em nome da escuta
ato de receber
palavra por palavra
de alguém
bem querer.

E o nariz à caça
laça cheiros, perfumes
aspira emanações
aceita, rejeita
primitivas heranças
da escala animal
salivares matanças
faro oriental.

Os olhos, chama
o olhar clama, consome
tudo pelos olhos se come
sem termo de medida.
O êxtase do amor
a luz do perdão
pelos olhos se elevam
em perpétua louvação
ceia apostólica
espírito e pão.

Sendo a cara
concentração de prodígios
ilha de maravilhas
os olhos janelas da alma
alma, janela do coração
a cara é revelação.
Quem vê cara
desmascara
vê coração.

--------

Nossas almas em panos limpos
Alba Liberato

Quisera ser lavadora de almas
limpando danos como limpo panos
meus danos alvejando em puro anil
como em cuidados limpo panos rotos.

Quisera com sabão e bucha
no lajedo esfregando panos
almas lavassem mágoas de anos
como nódoas tiro dos panos.

Quisera à beira de águas correntes
pudesse minh’alma lavar na vertente
largando as dores ao sabor do rio
o acre e o doce retirar dos fios.

Alma lavada recebendo perfumado corpo
cheiro escorreito
conforto ao toque dos fios
abrigo de coração a eito
dócil a fértil plantio.

Mudar rumo e escopo
dos tocos
brotar prumo pós-estio
limo de húmus tomando vazios
árvore refolhando flores
copa a lançar ramagens
larga generosa fronde
do olho d’água
ao deságue do rio.

--------

Mares nunca dantes navegados
Alba Liberato

Tal lhanuras derramassem das alturas
a oceanos abissais no sextante mensurados
em plana terra medieva
planas palmas amassaram tuas carnes.
O tato delas se apossasse
o tato nelas apontasse
a finura do gesto acolhedor
que inaugura toques
que a pele experimentou jamais.

Descoberta, territórios descomunais
antiga topografia. Assim mãos se adestraram
em tarefa essencial, aquela
sem utilidade alguma
a que de todas as necessidades
atende uma. Querer bem.
Querer bem é tudo que se tem
que se pega cheira ouve vê fala
e navega
é tudo que convém.

Querer bem.
Manufatura, detalhes esculpidos
no costado de nave sem encontro casual
carranca espantando espíritos maus
ventos calculados serenando tempestades
calmaria esparramada nas alegrias
oceano a ligar continentes já formados
cordilheiras, profundos vales
rios em torrentes, calmos arroios
lagos espelhando o redondo céu
abóbada sobre duas bandas encaixadas
terra arredondada.
Nova geografia.

--------

Cuia
Alba Liberato

Um dia colhido por mãos vazias
o espectro do outro aninharia
nas palmas em cuia.
E ali reviveria esperto agora
remotas reminiscências.
Histórias.
Um dia fossem distas
permaneceriam as duas almas
ressonância de coisas ditas
permanência de gestos de lisura
sustento do sedento ser
goela aberta
onde a cuia entorna a dose
de carinho e afeto
farinha e rapadura.
Memórias.

--------

De onde menos se espera vem
Alba Liberato

De onde menos se espera vem
lugar definido
Nem

De onde menos se espera vem
em todo lugar
Quem

De onde menos se espera vem
lugar lavorado
Bem

--------

“A casa tem quem a limpe
realce seu cheiro, pague as contas
rosário de contas que doem
como martírio
datas para vencer inclementes
acocho de penitente.
Casa morde mesmo sem ter dente.

Casa tem que ter pé de limão
despachar lombrigas
dores lancinantes na barriga
até química tem
e cala em gestos de mímica
tudo que entre eu e você
é imperfeição, veleidade
futrica.

Lugar de revelação
de escondimentos
de ficar à vontade
por estar sem vontade
de ser feliz.

Casa é onde se vive por um triz
endereço que permanece em giz no muro
enquanto pouso em gaiola de ouro
que é o que a casa é.

Ela requer amores sabores
a casa tem suas comidas
precisa de socavão pros trastes
de silêncio pras hastes pendidas
que retornam do campo de batalha
e nela recebem unguento de feridas
toques do amanhecer
beijos de despedida
os melhores abraços
bem-querer.

Casa é refúgio que se tem
no jeito que se apresenta, qualquer piso
do solo ao céu.
A casa é amparo do bem
o conforto que se tem
sem restar ao léu.

A casa é meu corpo
escopo, largo espectro
experiências nunca vãs
sem puro acaso
onde minha alma
busca seus orgasmos.”


“Converte corpos
em poeira celeste
constante movimento
vida criada
estando materializada
é certo
do chão não passa.

Em cada retorno atende
legado primeiro
tornar ao pó
que do pó se refaça
projeto de amor
ordem mais alta
página inédita
perpétua humanidade
que a terra mãe abraça
acalenta satisfaz alimenta
e do chão o homem não cai
mas do chão
o homem não passa.”


“Não há marcas
que o tempo não apague
ante as parcas, a qualquer hora
derradeira, o breve amplíssimo lapso
tempo avivado às golfadas
súbito: cessamento
as marcas apagadas
ao móvel andar de areias
o carinho das águas.

O imenso o infindo o oceano
resvalando sobre si mesmo
em si volteando correntes
mornas salgadas
gélidas vertentes
corpo inerte
pele recobrindo ossada.”


Presentes no livro “Ditos do povo, ditos do coração” (Domínio Público, 2021), de Alba Liberato, páginas 35-36, 55-56, 53-54, 51 e 21, respectivamente, além dos trechos dos poemas “Santo de casa não faz milagre” (p. 25-32), “Se cair do chão não passa” (p. 37-40) e “Não há marcas que o tempo não apague” (p. 41), presentes na mesma obra.

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