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Quinze passagens de Clarice Lispector nas crônicas de 1970



“O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão.”


“Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar, e vejo às vezes que as espumas parecem mais brancas e que às vezes durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isso pela marca que as ondas deixaram na areia. Olho as amendoeiras de minha rua. Presto atenção se o céu de noite, antes de eu dormir e tomar conta do mundo em forma de sonho, se o céu de noite está estrelado e azul-marinho, porque em certas noites em vez de negro parece azul-marinho. O cosmos me dá muito trabalho, sobretudo porque vejo que Deus é o cosmos. Disso eu tomo conta com alguma relutância.”


“Arrume-se direito antes de sair. Mas — e isto é importante — depois procure esquecer a própria aparência. Você já fez o que pôde — agora deixe o barco correr, use a segurança natural de quem sabe que se cuidou. Não fique a toda hora consultando o espelhinho da bolsa, ajeitando os cabelos, empoando-se ou corrigindo o batom. Lembre-se: você não saiu para se linda, você saiu para gostar de ter saído; não saiu para se mostrar: saiu para conversar. Se o rapaz convidou você para sair com ele é porque gostou do seu jeito, do seu modo de ser, de sua aparência. Que essa ideia lhe baste para ter uma segurança simples em si mesma. Porque senão, que é que acontece? Você vai achar que deve ir para o primeiro encontro procurando ser melhor do que é. E o que faz para isso? Erroneamente muda seu penteado para alguma coisa terrivelmente sofisticada, e toma emprestada uma personalidade fabulosa, imagina você, mas diferente da sua. E o rapaz, em vez de encantado, fica surpreendido: marcou encontro com uma, e veio outra.”


“Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa — continuei com meu café — se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em ‘milhares de anos à nossa frente’, deu-me quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.”


“O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo. (...) O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. (...) a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. (...) O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.”


          “— Qual é a coisa mais importante para você como pessoa?
          Zagallo ficou muito pensativo. Seu rosto demonstrava o esforço mais bonito do homem: o esforço de pensar e de se autoconhecer. Senti que estava sendo doloroso para ele escolher e que achava importante escolher. Finalmente disse:
          — É não desejar mal ao próximo.
          Mas tenho certeza de que ele quis dizer algo parecido com isso. Aliado à sua expressão fisionômica, de repente sublimizada, traduzo o que ele quis dizer: amar ao próximo como a si mesmo.
          — O que é amor, Zagallo?
          É provável que ele, como a maioria das pessoas, nunca tenha parado o movimento de vida para reflexionar sobre a vida, e sobretudo para se fazer essa pergunta capital: o que é o amor? Ficamos em silêncio, apesar da pressa, pois Zagallo já tinha sido chamado várias vezes, avisando que os jogadores estavam em campo esperando por ele. Mas o clima entre nós era de paciência. Afinal ele disse:
          — É um sentimento recíproco.”


“(...) o pouco que sei não dá para compreender a vida, então a explicação está no que desconheço e que tenho a esperança de poder vir a conhecer um pouco mais. (...) O belo do infinito é que não existe um adjetivo sequer que se possa usar para defini-lo. Ele é, apenas isso: é. Nós nos ligamos ao infinito através do inconsciente. Nosso inconsciente é infinito. (...) O absoluto é de uma beleza indescritível e inimaginável pela mente humana. Nós aspiramos a essa beleza. O sentimento de beleza é o nosso elo com o infinito. É o modo como podemos aderir a ele. Há momentos, embora raros, em que a existência do infinito é tão presente que temos uma sensação de vertigem. O infinito é um vir a ser. É sempre o presente, indivisível pelo tempo. Infinito é o tempo. Espaço e tempo são a mesma coisa.”


“Entrar no Jardim Botânico é como se fôssemos trasladados para um novo reino. Aquele amontoado de seres livres. O ar que se respira é verde. E úmido. É a seiva que nos embriaga de leve: milhares de plantas cheias de vital seiva. Ao vento as vozes translúcidas das folhas de plantas nos envolvem num suavíssimo emaranhado de sons irreconhecíveis. Sentada ali num banco, a gente não faz nada: fica apenas sentada deixando o mundo ser.”


“O que me salvou da monotonia de Berna (...) foi esperar que a neve parasse e os gerânios vermelhos de novo se refletissem na água, foi ter um filho que lá nasceu, foi ter escrito um de meus livros menos gostado, A cidade sitiada, no entanto, relendo-o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando terminei o último capítulo, fui para o hospital dar à luz o menino. Berna é uma cidade livre, por que então eu me sentia tão presa, tão segregada? Eu ia ao cinema todas as tardes, pouco importava o filme. E lembro-me de que às vezes, à saída do cinema, via que já começara a nevar. Naquela hora do crepúsculo, sozinha na cidade medieval, sob os flocos ainda fracos de neve — nessa hora eu me sentia pior do que uma mendiga porque nem ao menos eu sabia o que pedir.”


“(...) nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa pequena aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade. (...) Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá. (...) Somente na puberdade vim para o Rio com minha família: era a cidade grande e cosmopolita que, no entanto, em breve se tornava para mim brasileira-carioca.”


“(...) o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. É como se eu quisesse uma comunicação mais direta, uma compreensão muda como acontece às vezes entre pessoas. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis”


“Antes de ter submetido meu livro de história infantil ao editor (...), fiz um teste com uma criança de cinco anos, outra de sete, outra de dez e a quarta de 12 anos, todas reunidas num só grupo. A leitura foi feita por um amigo meu que lê bem. Minha história sobre um coelho pensante tocou as quatro idades de modo diverso, e a leitura era frequentemente interrompida por sugestões e perguntas. A menina de cinco anos, que era mais linda que o coelho, interessou-se estritamente pelo mistério da fuga do animal. (...) Passou depois dias desenhando coelhos, e um deles saiu tão bom que foi pendurado no quadro-negro, e de honra, da escola. O menino de sete anos andava na época com problemas, tanto que a mãe recebia recados da professora da escola de que ele andava revoltado. Logo no início da história, interrompeu com desdém (...) O menino de dez anos ouviu com a maior atenção e deu várias soluções, todas viáveis e inteligentes, para a fuga do coelho. O menino de 12 anos nada falou: era o filho da empregada e não ousava manifestar-se. Seus olhos porém brilhavam e de vez em quando ele trocava sorrisos com o menino de dez anos. Para mim valeu por uma noite de autógrafos mais real que as reais: a comunicação se fez, sentimo-nos unidos pelo coelho pensante, pelo calor mútuo, pela liberdade sem medo. Esqueci que eu escrevera a história e entrei completamente no jogo. O que também aconteceu com outros adultos presentes. As noites de autógrafos deviam ser assim.”


“Um dia telefonei para Drummond para lhe dizer que havia sonhado com ele — não me lembro mais do enredo. E ele me respondeu: muito obrigado por deixar que eu visite você nos seus sonhos. Achei linda a resposta. (...) Pois olhe, Drummond, depois daquela vez já sonhei mais duas vezes com você, só que achei que não devia interrompê-lo telefonando-lhe para contar. Você continua, pois, me visitando. Seja bem-vindo. Prometo que o receberei em uma atmosfera translúcida, fosforescente talvez, ou de um escuro cheio de vaga-lumes piscando luz. Não estou fazendo propaganda de minhas noites, mas, modéstia à parte, digo-lhe vaidosa que sonho em cores. Para receber você, prepararei um bosque cheio de frutos, ou uma proximidade com o mais vasto azul dos mares ou uma mesa de toalha branca coberta de comidas de se comer. Meus sonhos estão à sua disposição.”


“Na Itália il miracolo é de pesca noturna. Mortalmente ferido pelo arpão, larga no mar sua tinta roxa. Quem o pesca, desembarca antes de o sol nascer — sabendo com o rosto lívido e responsável que arrasta pelas areias o enorme peso da pesca milagrosa: il miracolo amore. (...) Milagre é lágrima na folha, treme, desliza, tomba: eis milhares de milágrimas brilhando na relva. (...) The miracle tem duras pontas de estrelas e muita prata farpada. (...) Le miracle é um octógono de cristal que se pode girar lentamente na palma da mão. Ele está na mão, mas é de se olhar. Pode-se vê-lo de todos os lados, bem devagar, e de cada lado é o octógono de cristal. Até que de repente — arriscando o corpo e já toda pálida de sentido — a pessoa entende: na própria mão aberta não está um octó gono mas le miracle. A partir desse instante não se vê mais nada: tem-se.”


“(...) na Suíça, plantei um pé de tomates numa lata grande, bonita. Quando começaram a aparecer os ainda pequenos tomates verdes e duros achei inacreditável que eu mesma lhes tivesse provocado o nascimento: eu entrara no mistério da Natureza. Cada manhã, ao acordar, a primeira coisa que fazia era ir examinar minuciosamente a planta: é como se a planta usasse a escuridão da noite para crescer. Esperar que algo amadureça é uma experiência sem par: como na criação artística em que se conta com o vagaroso trabalho do inconsciente. Só que as plantas são a própria inconsciência. (...) Um dos gestos mais belos e largos e generosos do homem, andando vagarosamente pelo campo lavrado, é o de lançar na terra as sementes. (...) E quando os tomates ficaram redondos, grandes e vermelhos? Chegara a hora da colheita. Não foi sem alguma emoção que vi num prato da mesa os tomates que eram mais meus que um livro meu. Só que não tive coragem de comê-los. Como se comê-los fosse um sacrilégio, uma desobediência à lei natural. Pois um tomateiro é arte pela arte. Sem nenhum proveito senão o de dar tomate.”


Presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 273, 281, 306-307, 303, 324-325, 290-291, 309-310, 329, 273-274, 343, 298, 317-318, 342, 352 e 328-329, respectivamente.


Aforismos de Clarice nas crônicas

“O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu”

“O tempo não é a duração de uma vida. O tempo antes de nós é tão eterno quanto o tempo à nossa frente”

“O que é mais fácil de se fazer? Existir, depois que passa o medo”

“A vida é breve para uma arte tão longa"

“Uma das mais intensas aspirações do espírito é a de dominar pelo espírito a realidade exterior”

Aforismos presentes no livro “Todas as crônicas” (Rocco, 2018), de Clarice Lispector, páginas 325, 285, 321, 288 e 278, respectivamente.

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