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Quinze passagens do romance O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane

Paulina Chiziane


“Longe é a distância entre o teu percurso e o teu cordão umbilical. Longe é o útero da tua mãe de onde foste expulso para nunca mais voltar. É a distância para o teu próprio íntimo onde nem sempre consegues chegar. Longe é o lugar de esperança e de saudade. Lugar para sonhar e recordar. Longe é o além para onde muitos partem e deixam eternas saudades. O longe é gémeo do perto, tal como o princípio é gémeo do fim. Porque tudo muda na hora da meta. O ali será aqui, na hora da chegada. O futuro será presente. O amanhã será hoje.”


“(...) Ser feliz é mesmo isto: segurar na palma da mão a alma da pessoa amada. Sorrir. Sonhar o sol que há de vir. Ansiar pela noite que há de chegar. Sentir o corpo a vibrar de êxtase. Ouvir mensagens verdes e azuis, do céu, do mar e do palmar.”


“(...) As mãos dadas estavam firmemente seladas. Formavam um nó. Nó górdio. As conchas espalmadas uma na outra com as linhas da vida, da sorte e do destino unidas numa só. Como dois rios num estuário, derramando-se na imensidão do mundo. Mãos dadas massajando o coração de um e do outro. Nas mãos dadas, a confidência. A confiança. A segurança. Das juras de amor, é a expressão mais sublime.”


“O amor apresenta-se com muitas roupagens. Por vezes amam-se as formas. Por vezes os gestos, os atos. Em nome do amor se atrai a graça ou a desgraça. Porque o amor é uma armadilha de rato. Por amor se recolhe a víbora num baú de ouro e se coloca num trono dentro de uma casa. Em nome do amor se atrai a miséria que nos fará cair de vergonha aos olhos do mundo. Pode ser um ladrão, assassino ou drogado. Desde que tenha belas formas e diga amo-te, isso basta para te enterneceres e esqueceres todos os crimes. Em nome do amor o leão veste a pele de cordeiro.”


“Eu tenho o destino do vento, e tenho a vida presa nas teias de uma esperança desconhecida. A rosa dos ventos. Tenho o destino dos pássaros. Voando, voando, até à queda final. Tenho destino de água. Sempre correndo em todas as formas, umas vezes nascente, outras vezes rio. Outras vezes suor e outras lágrimas. Dilúvio. Gota de orvalho na garganta de um passarinho. Sou vapor aquecido pela vida. Sou gelo e neve na câmara de um congelador. Mas sempre água, o movimento é a minha eternidade. Sou um animal ferido por todas as coisas. Pelo cantar dos passarinhos, pelo vermelho dos antúrios, pela floração das violetas. Ferida pelo sonho, pela ilusão. Pela esperança e pela saudade.”


“O branco estava moído num puré de cenoura quando a madrugada chegou. Cansados de tanta luta, sentaram-se lado a lado. Por amar a mesma mulher os dois homens se irmanam, abraçando-se como só a fraternidade sabe abraçar. Sussurrando um para o outro palavras cansadas. O branco, esmagado de dores, suspirava: pode um homem conquistar o amor pela força dos punhos? Ah, Deus meu, por que me trouxeste ao Éden? Por que me puseste diante dos olhos a fruta mais apetitosa da existência, se nem a posso segurar? (...) Do alto, a Estrela de Alba vem e ilumina as suas mentes. Olham-se. Reconheceram em si dois miseráveis, caçadores de borboletas. Arriscando-se a matar e a morrer por algo que nem se apalpa. Apertaram-se as mãos e selaram um pacto, prometendo guardar segredo sobre aquela luta. Não vale a pena tanta guerra. Nas coisas do amor, todas as raças são iguais. Coração preto, coração branco, a mesma loucura, a mesma fantasia, e nas veias o mesmo sangue vermelho. Por que lutamos? Por que nos maltratamos assim tanto?, rendia-se o branco. Fica com ela, se quiseres, mas não me mates. Deixemos que seja ela a decidir com quem fica.”


“(...) tenho ódio dessas brancas piedosas, sempre dispostas a elaborar belos discursos sobre a mulher africana, a sofredora, a analfabeta, a pobrezinha. De onde vêm as estradas, as plantações e toda a sua grandeza? E as casas belas, quem as constrói? E a boa cozinha? E as roupas brancas, engomadas, perfumadas? Das mãos dos condenados como o José, frutos dos partos das mães negras. E o que recebemos em troca? O desdém, o insulto, a marginalidade. Quem somos nós, mulheres negras, neste regime sem esperança? O fim da mãe negra é ficar encostada ao umbral da porta num choro eterno, perante a indiferença do mundo, colocando flores em túmulos imaginários dos filhos que perdemos. (...) os filhos me foram retirados na flor da idade e levados num barco para terras desconhecidas. Talvez estejam vivos. Ou mortos. Sinto que nunca mais voltarei a vê-los. E eram belos, como este José à minha frente. Hoje entendo o sofrimento das cadelas e das cabras quando nós, os humanos, retiramos as suas crias para destinos desconhecidos perante o olhar impotente das progenitoras. Mas um dia virá em que o mundo inteiro se recordará do sofrimento da mãe negra e nos pedirá perdão, pelos filhos que nos roubaram, arrancaram, venderam.”


“(...) viu que os negros eram muito negros. Que os brancos eram muito brancos. Diante dos pretos chamavam-lhe branca. E não queriam brincar com ela. Afastavam-na, falavam mal da mãe e diziam nomes feios. Diante dos brancos chamavam-lhe preta. Também corriam com ela, falavam mal da mãe e chamavam-lhe nomes feios. (...) Um dilema que crescia na sua cabecinha: afinal de contas qual é o meu lugar? Por que é que tenho que me ficar entre as duas raças? Será que tenho que criar um mundo meu, diferente, marginal, só com indivíduos da minha raça? Começou a desenvolver uma raiva contra o pai. Que amou uma preta para transformá-la em mulata. Sentia uma raiva contra a mãe. Que não a fez preta como Maria das Dores e por isso não podia entrar na dança de roda nas esquinas do bairro. Começou a amar Maria das Dores, que era oprimida dentro de casa por causa da sua raça, e porque lhe fazia os penteados mais fantásticos e lhe contava histórias ao adormecer. Viviam sob o mesmo teto, dormiam no mesmo quarto, mas a mãe separava os pratos, os copos, os talheres. Ela questionava-se sem saber que estes momentos a perseguiriam a vida inteira.”


        “— Velho, onde roubaste essa criança?
        — É minha neta.
        — Assim, branca?
        — Juro, palavra de honra que é filha da minha filha.
        — Ah, velho raptor. Sipaio, dá chicotadas ao preto para obrigá-lo a falar a verdade.
        O avô foi chicoteado, quebrado, e ficou muitos meses deitado, com lesões que o levaram à morte. Quebrado ficou também o seu coração de criança. O avô era a pessoa mais maravilhosa deste mundo. E morreu açoitado por ter uma neta de outra raça.”


“O mundo é assim. Buscando o que não tem. Jogando pela janela fora o que tem, para tempos depois revolver mundos e fundos em busca de tudo o que teve e deixou voar. Sonâmbulo, perseguindo distâncias à retaguarda procurando uma raiz perdida no tempo.”


“Suportava em silêncio a cólera que a mãe derramava sobre ela. Era injusto, ela sabia, mas não queria reivindicar. Do ventre daquela mãe ela tinha nascido e não a queria desafiar, porque desafiar uma mãe é desafiar o destino. Daquela boca ouvira o primeiro canto e o primeiro beijo. Não podia contrariá-la. Porque praga de mãe é profecia. Aquela mãe era a sua árvore e a sua sombra. Não podia sacudi-la. Sacudir uma mãe é sacudir o próprio alicerce. Ela sabia que a mãe a amava, perversamente, mas amava-a. Como filha não podia odiá-la. Odiar uma mãe é odiar a sua própria existência. De José, seu pai negro, aprendera que o sofrimento é uma etapa da existência. Que se devia sorrir perante a mais incrível dor. Que se devia aceitar o sacrifício para que a vida continue. Do pai branco aprendera que a alegria é um direito. Que a bonomia gera harmonia. Aprendera que a beleza do mundo é a diversidade, todas as raças, de todo o mundo, porque somos todos filhos do sol.”


“No mundo onde a mulher manda, os filhos são do José, Ab-dul, Ndialo, Charles, Lu Xing, Stephany. A família tem peso de vento, é leve e esvoaça como uma nuvem tecida de sangue de diferentes cores, formas, e texturas. A alegria e a liberdade são filhas do matriarcado, onde se obedece às leis da natureza porque só a mulher conhece o verdadeiro pai dos filhos que tem. Os homens são simples reprodutores, seres menores. (...) No mundo onde o homem manda, os filhos são de um só. A família tem peso de chumbo, tecido por laços do mesmo sangue. Mas é um reino de lágrimas e de sofrimento. Com violência, os homens mantêm as mulheres fiéis à paulada. A violência é produto do patriarcado, porque os homens roubaram o poder às mulheres.”


        “— Ah, Soares, deves estar enganado. Um preto é um preto, um branco é um branco, Foi Deus que fez o mundo e colocou as coisas assim como estão, E se acontecer essa liberdade de que tanto falas, quem vai lavrar o palmar? Quem vai colher o coco? Quem irá lavar em barrela as minhas saias brancas e corá-las ao sol? Quem cuidará das minhas hortas? (...) Se dividires as terras com todos esses pobres, o que ficará para nós? Que liberdade é essa que nos tira os nossos privilégios? Não, Soares, não quero liberdade nenhuma. (...) Essa conversa das liberdades faz-me lembrar o meu pai e os condenados do cais. Toda a hora falando em liberdade. Conversa de pobres e de pretos, Soares, quem te ouve falar assim pode até pensar que está diante de um desses terroristas do regime. Ah, Soares, eu quero só estar contigo, não quero liberdade nenhuma!
        (...)
        — Não te compreendo (...) Somos ambos emigrantes, Delfina. Eu, da Europa para esta Zambézia. E tu saindo de dentro de ti para parte nenhuma. Nenhum de nós tem poiso seguro. Vítimas do tempo, procuramos o respiradouro do mundo. Entre superioridades e inferioridades nos amamos.”


“A multidão vê a mulher nua sentada num trono de barro, beira do rio. Na posição de lótus, colocando a sua intimidade na frescura do rio. Vê-lhe o interior desabrochado, como um antúrio vermelho com rebordos de barro. Vê-lhe as tatuagens no seu ventre de mulher madura. Vê-lhe o corpo esguio, pequeno, recheado à frente, recheado atrás, esculpido por inspiração divina. Vê-lhe a pele macia, de café torrado. Os lábios gordos como um tutano, cheios de sangue, cheios de carne. Olhos de gata. Vê- lhe o cabelo e sobrancelhas macias e fartas como novelos de seda, com gotas de água escorrendo sobre as costas, como contas de lágrimas, na grinalda de uma noiva. (...) Atiraram-lhe pedras por todos os lados onde passou. Expulsaram-na com paus e pedras, como um animal estranho que invadia propriedades alheias. As vozes queriam que ela desaparecesse. Mas desaparecer para onde se ela não tinha onde ir? Compara as pessoas aos chacais, aos abutres. Não vê diferença. Há uma pessoa no abismo pedindo ajuda. A sociedade humana apressa-se a atirar paus e pedras, a pisar a mão com que te expressas por teu último desejo. (...) A mulher nua levanta a cabeça. Balança os olhos entre o céu e o horizonte na visão clarividente dos poetas. (...) Ela olha para a multidão, com os olhos no limbo. Deve estar a ouvir a música do amor. Deve estar a viver paixões secretas que lhe vêm do outro lado do mundo. Talvez veja imagens em movimento. Ou sombras falantes. Dentro dela deve haver sentimentos, pensamentos, vozes, sonhos, histórias, canções de embalar, que se apresentam numa amálgama, causando-lhe confusão na mente.”


“(...) O ser humano é parasita por excelência. Rasga o ventre da mãe e suga-o quando é pequenino. Parasita o bolso do pai quando é menino. Busca o prazer e a transmigração cavalgando outro corpo quando é adulto. Suga os animais e os vegetais para manter o seu sustento.”


Presentes no romance “O alegre canto da perdiz” (Dublinense, 2018), de Paulina Chiziane, páginas 19, 315, 86, 70, 13, 47, 97-98, 245-246, 244, 147, 247, 268, 225-226, 08-09 e 131, respectivamente.


Aforismos de Paulina Chiziane em “O alegre canto da perdiz”

“Na vida nada é princípio, nada é fim. Tudo é continuidade”

“A eternidade é um instante”

“Onde há um desejo, há um caminho”

“Amar é mergulhar no corpo alheio e flutuar até o infinito”

“O ventre da mãe é o único ponto de partida para todos os caminhos do mundo”

“Quem fala de si sempre mente”

“A vida só tem encantos quando alguém a excita”

“A água nunca esquece o seu caminho”

“Dentro das mentes assustadas, os mitos surgem como a única verdade, para explicar o inexplicável”

“Onde existe um ser humano há sempre uma família”

“Os seres humanos se juntam em grupos e inventam muralhas contra a solidão”

“Confortar o outro é confortar-se”

“Não há pessoas feias quando há dinheiro”

“Sem a contribuição dos negros, a colonização não teria sido possível”

“Viver é chegar e partir”

Aforismos presentes no romance “O alegre canto da perdiz” (Dublinense, 2018), de Paulina Chiziane, páginas 23, 101, 52, 83, 30, 44, 209, 72, 08, 322, 152, 43, 117, 177 e 92, respectivamente.

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