foto: Edilson Barreira, interferido por Mirdad
Nos áureos facon'anos da comunicação, Wladimir Cazé era o cabra que carregava uma caixa de sonhos espinhentos; pequenos frascos revolucionários das Edições K, sua breve incursão editorial (veja aqui) com outro sequelado de apreço: o insano Patrick Brock. Aproximei-me de Wlad em 2004, quando ele fez parte do evento Agente Laranja Gueto Cultural (minha primeira incursão na seara da produção), com sua caixa de espetos, tentando vender algo enquanto o rock e a psicodelia (The Orange Poem e convidados) rolavam no finado Tangolomango Bar.
Anos depois, nos aproximamos de novo, a meu convite (de novo), pra tentar montar uma revista literária em Salvador. Poucas reuniões no café do TCA depois (participavam do quarteto de ingênuos também o Mayrant Gallo e o Alan Lobo), a Camelo só ganhou nome e mais nada.
E agora, amigo de blogs, emails e encontros ocasionais, Wladimir Cazé me chega com o seu mais novo livro, Macromundo, recém-lançado em Salvador pela editora Confraria do Vento. Devorei em alguns soluços sua obra poetrante, e não deixei escapar a chance de pilular este agreste poeta dos instantâneos. Deliciem-se, em overdose, favor:
"...
O solo é avesso a remanso
A hora é árida
O céu é flácido
Farelos
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Era um ovo branco
e abriu-se a porta
que escancara o escuro
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Pedras como bonecos sem cara
O animal de estimação ameaça
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Quem pode reclama
a falta que faz
um pouco de luz
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O sarcedote
detonou o totem
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Fogos de artifício
coágulo opala
Fugaz espetáculo
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O suor se antecipa
O rumor estufa a lua
Desce as escadas
além
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Sentinela a noite
Atalaia os ermos
Guarda o detalhe
que não pulsa ainda
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E nem a lã ou seda que o céu põe
como ataque incessante de unha
é tatuado em pedra ou em pele
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Maior que um deserto
morada e masmorra
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espaços sem luz, sem vento
pedaços de planetas extintos
cavando órbita no espaço oco
mas nada impede o avanço certeiro
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outro lugar, outro
existir de gente
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numa esfera de fogo
a esmo, sem rumo
orbitante o homem
vibra, queima e morre
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O urubu sombrio
cata com o bico
a carne da galinha velha
na monótona mortalha espalhada
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Uma ave de origami
montada com guardanapo
ganha vida de repente,
no palito de dente empalada
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O vento sopra
sobre a rocha
onde a concha
dobra o som
dentro: outro
sopro venta.
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Com as patas para cima,
a barata feminina
sossega, extenuada,
após erótica batalha
------
Eremita dos interiores
de si mesmo,
íncola na caverna
um caracol itinera
degraus de mármore,
moroso, mole.
------
Então eles começam a roer os livros.
..."
Todos estes fragmentos são partes de poemas que estão no livro Macromundo (2010), de Wladimir Cazé, editora Confraria do Vento, com ilustrações de Iansã Negrão e posfácio de Sandro Ornellas. Preço: R$ 20. Compre diretamente com o autor: wladimircaze@gmail.com
foto: Margarida Neide
Wladimir Cazé
Pernambucano de Petrolina/PE, que viveu em Salvador/BA e São Paulo, e hoje está radicado em Vitória/ES, Wladimir Cazé vem publicando poesia e folhetos de cordel desde 2004. Participou do 4º Mayo de Las Letras, em San Miguel de Tucumán, Argentina (2008), do 13º Festival Internacional de Poesía, em Cartagena de Índias, Colômbia (2009) e da 3º Festa Literária de Porto Alegre-FestiPoA (2010).
Integra o coletivo de escritores Corte, que promove recitais e debates sobre literatura em Salvador. O trabalho de Cazé vem ganhando espaço no cenário da poesia brasileira, tendo sido abordado na edição especial “Bravo! Bahia” da revista Bravo!(janeiro de 2010) e nos cadernos de cultura de jornais como o Jornal do Brasil (RJ), Correio da Paraíba e A Tarde, entre outros. Mantém o blog www.wladimircaze.blogspot.com.
Contatos: wladimircaze@gmail.com / (27) 8818-1144.
O INFINITO E O COTIDIANO
NOS POEMAS DE "MACROMUNDO"
“Um corpo estelar corre / ao encontro de outro corpo / cavando órbita no espaço oco.” Com versos como esses (do poema “Valsa”), o livro Macromundo, de Wladimir Cazé (lançamento da editora Confraria do Vento, 2010, 64 páginas, R$ 20,00), acrescenta uma nova dimensão ao primeiro trabalho do poeta, Microafetos, de 2005. Ao drama das coisas ínfimas e dos minúsculos animais tão constituídos de linguagem quanto qualquer pessoa, soma-se agora o comportamento dos grandes movimentos cósmicos, dos corpos inanimados soltos no universo infinito, vazio, silencioso e, portanto, capaz de conter ou espelhar sensações ou experiências humanas.
Nos textos de Macromundo, há traços dos deslocamentos que caracterizam a vida atual e de matérias-primas como o cinema, a fotografia e a pintura, além de uma leitura atenta da poesia contemporânea e de uma revisitação do legado de diversas tradições poéticas brasileiras, desde o modernismo e a poesia dita marginal até a produção poética dos anos 90.
No poema “Porvir”, por exemplo, nota-se a tensão entre tempo e eternidade de Murilo Mendes; em “Caracol”, a visão peculiar da natureza de Manoel de Barros; em “Minuto Último”, o excesso cortado a lâmina de João Cabral. Em todo o livro, o elemento humano se apresenta em harmonia ou em tensão com a natureza; a diluição do humano num mundo de objetos é mostrada através da alternância entre a personificação dos seres inanimados e a despersonificação dos homens.
“Como a poesia não se prende a fins mercadológicos, ela se dispõe a uma reinvenção constante de seus próprios fundamentos, ocupando setores de experimentação que foram de certo modo abandonados por outras linguagens literárias”, reflete Cazé, que preparou, em parceria com o produtor e compositor Heitor Dantas, versões sonorizadas de três poemas de Macromundo (“Caracol”, “Barata” e “Valsa”) – as faixas podem ser escutadas aqui. Na mesma linha de trânsito entre linguagens, além da palavra e da música, Macromundo conta com ilustrações criadas pela designer Iansã Negrão (responsável pelas imagens do primeiro livro de Cazé, Microafetos).
O livro foi lançado no Rio de Janeiro (março), em Porto Alegre (abril), Vitória (maio) e Salvador (maio), este em lançamento conjunto com o livro de microcontos Nem Mesmo os Passarinhos Tristes, de Mayrant Gallo.
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Mirdad e Cazé