Autores da coletânea: Victor Mascarenhas, Herculano Neto, Georgio Rios, Ricardo Thadeu, Rodrigo Melo, Ediney Santana, Tom Correia, Kátia Borges, Márcio Matos, Davi Boaventura, Dênisson Padilha Filho e Rita Santana. Fotos: Internet.
"(...) Ninguém no grupo que ele e Bia integravam tinha lido o livro, mas alguém falou que conhecia uma pessoa que parece que tinha lido e comentado que era racista, mas o autor era um reacionário, de direita, conservador, coxinha, capitalista e fascista, como, aliás, eram todos os que pensavam diferente deles. O protesto consistia em invadir o local do debate, jogar uma cabeça de porco morto no sociólogo, impedir que ele falasse e expulsá-lo do evento sem direito a dizer nada ou se defender do que os que não o leram o acusavam (...) a maioria venceu e queria mesmo era cassar a palavra do sujeito, numa atitude que não era lá muito democrática e se assemelhava mais ao que fazia a juventude nazista de Hitler, o Comando de Caça aos Comunistas na ditadura militar ou os integralistas de Plínio Salgado no Estado Novo, do que com a ação de um grupo democrático e libertário que lutava pelo bem da sociedade, como eles afirmavam que eram (...) A verdade é que quase ninguém ali sabia nada sobre o tal escritor e sua obra, assim como não sabia quase nada sobre muitas das coisas sobre as quais protestavam veementemente, embora acreditassem veementemente que sabiam (...)"
Victor Mascarenhas no conto Bomba de efeito moral, p. 22 e 23.
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"Ângela apareceu pela primeira vez logo após o incidente. Ela observou, aparentemente resignada, o próprio corpo ensanguentado na beira do cais antigo e em seguida perguntou para mim: 'por quê?'. Não havia ódio, revolta ou dor em seu curto questionamento, apenas um porquê gélido, tão seco que nem sequer parecia uma interrogação, um porquê de quem não espera resposta, um porquê ferino, pontiagudo, acusador como uma afirmação. Não respondi naquela noite, não respondi dia nenhum. Apenas voltei para casa e me banhei sem pressa, curiosamente não existia nenhum vestígio do ocorrido em meu corpo ou em minhas roupas. Fiquei algum tempo na cama, fumando cigarros sem filtro, com a lâmpada apagada, descartando as cinzas no carpete (...) Na manhã seguinte Ângela estava imóvel, junto à porta (...) mal abri os olhos e o seu 'por quê?' me atingiu de frente, mas ela não iria tirar minha paciência tão cedo, ela que fosse procurar outro desafeto para obsidiar, eu tinha mais a fazer."
Herculano Neto no conto Respostas não vão lhe mostrar, p. 48 e 49.
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"Maravilha! Hoje, teremos sopa, prato ideal para meu propósito. Tivesse ele pedido escargot, por exemplo, bastaria abanar para que eu alçasse voo e fugisse para a mesa mais próxima. Não antes de insistir dez ou trinta vezes, o que, aliás, faz parte da natureza de minha espécie. Nós sobrevivemos. Mas, um caldo de frango é o artifício perfeito para o meu abuso: um pouso suave no canto da louça, um mergulho raso na superfície do caldo ralo e pronto: está feito o protesto! (...) Que ultraje! Uma mosca na sopa. Deve ser o calor que faz no estabelecimento. Já está na hora de instalarem alguns ventiladores a mais nesta joça, a quentura infernal da Capital anula o sabor de interior da galinha da terra. É impossível degustar alguma coisa com parcimônia nesta espelunca, o ventilador de teto parece mais o relógio da morte (...) Todo este clima de epidemia... E ainda temos que aturar, nas rádios, um maluco bradar uma tal de sociedade alternativa (...)"
Georgio Rios e Ricardo Thadeu no conto O dia da caça, p. 77, 78 e 79.
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"(...) viu o rosto do pai, destroçado, e nele viu refletido o rosto do namorado, dois covardes que abriam mão de si por medo do mundo. Não teria festa de aniversário na semana seguinte, quando completaria treze anos, tampouco viajaria com a família. Ficaria com a governanta, uma velha frustrada que a olhava de uma forma diferente agora, como se Ginger tivesse perdido a razão (...) E os dias lentamente se arrastam quando não se tem para onde ir, e assim eles se arrastaram naquela casa grande e de paredes brancas, a casa em que nascera, tão distante de tudo, a casa em que continuava a crescer. Através do espelho no quarto o mundo se descortinava e ganhava sentido, os seios maiores do que há pouco tempo atrás, os lábios, suas mãos a desvendar lugares outrora proibidos, agora essenciais: suas mãos como as de Téo ou as de outro homem, alguém que a abraçasse com força e jeito, sem medos, e a fizesse mulher. Suas mãos como um homem qualquer."
Rodrigo Melo no conto Ninguém a olhar lá do céu, p. 71 e 72.
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"Quando não se deseja não se sente mais medo, a vida passa ser um 'tanto faz'. Aos poucos fui renunciando às batalhas, aos poucos fui concordando com tudo, até que esquecido tanto pelo amor quanto pelo ódio eu entendi a importância de ter nesse momento sobre a mesa uma coleção de sabores que nos livra da trágica aventura de viver."
Ediney Santana no conto Sete canções do inverno, p. 86 e 87.
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"Durante o recesso junino, perdemos contato. Ainda tentei ligar várias vezes de um orelhão defeituoso perto de casa, que funcionava sem engolir as unidades do cartão. Ela nunca estava. No retorno, na primeira manhã, nos reencontramos na cantina. O rabo de cavalo e a pele bronzeada de Glorinha eram um atentado, marcas da alcinha do biquíni destacando os ombros luzidios. Sorrindo, veio ao meu encontro, saturando as cores do ambiente, única fotofobia que alegremente me cegava (...) Começou a mostrar as fotos da sua viagem a Itacaré com o professor (...) Pediu conselhos sobre suas atitudes com o namorado, a coisa mais insuportável que uma garota pode fazer, mas dissimulei. Ainda me mostrou um cartão apaixonado escrito por ele, cheio de pontos de exclamação. O papel me despertou um secreto sentimento de vingança: somente um cretino inábil com as palavras poderia usar tantas exclamações numa frase tão curta. Ela guardou as fotos e saiu. Fiquei lá, sentado. Depois fui caminhando mecanicamente pra sala de aula. As imagens dos triângulos rabiscados no quadro me trouxeram o teorema de Pitágoras à lembrança. Era completamente irracional enfrentar o poder de um cateto maior na disputa pela hipotenusa mais desejada."
Tom Correia no conto Pirro, p. 36, 37 e 38.
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"(...) Salvador ao Sol é uma Aldeia Potemkin. Engana britânicos, franceses e prussianos. Sob a chuva, no entanto, todas as suas estruturas parecem se desfazer em papelão. Saltando poças de lama, pulando entre as marquises dos prédios de outro século, eu caçava abrigo da água, movendo com desajeito o corpo magro (...) eu, o nobre, o filho generoso, o herói do velho, hoje frágil, incapaz de limpar os próprios dentes. Pouco restara do homem que conheci forte e macho a me ensinar a ser. A encher de sabão a minha boca para lavar com violência palavrões, nicotina e esperma. A vida nos moldou, os dois, a foice, como sói acontecer a toda gente. Se há um consolo, este é ser como todos (...) Maldita seja a diferença, dizia meu pai em seus ensinamentos sem o dizer (...)"
Kátia Borges no conto O céu da boca, p. 42 e 43.
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"Cláudio Capita chega em casa usando um boné de aba reta que ganhou no bingo do futebol. É muito tarde, mas Núbia ainda está acordada. Ela ri com discrição, acha o marido ridículo, mas Cláudio está exultante com o brinde.
– De pé a essa hora, amor?
– Esperando você.
– Vou tomar um banho pra te dar um cheiro, tá?
Núbia nem responde. Enquanto Cláudio Capita é arrebatado pelo chuveiro, ela pega o boné e passa a examiná-lo. Acha o objeto horroroso e pensa em dizer ao marido que ele não deveria usar aquilo. Cláudio sai do banheiro cantarolando um dos cânticos da torcida corintiana.
– Gostou, hein amor?
– Bacanérrimo."
Márcio Matos no conto Gols e pizzas napolitanas, p. 18 e 19.
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"(...) seu cansaço é tal que o cérebro parece um cérebro servido à vinagrete – ele de fato desenhou, para a edição de domingo, miolos em uma bandeja de banquete, quase que descrevendo um sonho no qual os convidados devoram sua cabeça, esse sonho se passava em uma sala de jantar babilônica, no centro uma mesa redonda (...) ao redor estão os pais e a irmã e o ex-namorado, o amigo também está, as paredes são chamuscadas, apesar de serem claras, são cheias de candelabros (...) as garçonetes todas vestidas de fraque servindo vinho tinto, comem-se os nacos de seu cérebro em tigelas de porcelana chinesa e ele mesmo se mastiga até sentir enjoado e se perceber decapitado (...)"
Davi Boaventura no conto Nem sei mesmo qual foi aquele mês, p. 59.
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"– Não sei o que você quer com essa decisão, mas volte.
– Voltar? Voltar pra onde e para o quê?
– Veja, não sei pra onde quer ir nem onde vai chegar, mas...
– Eu sei sua opinião, e estou sendo educado em ouvir.
– Essa sua saída assim...
– Que é que tem?
– Parece que você tá entrando numa caverna.
– É, talvez.
– Por que você não volta? Você só rodou 500 Km.
– Você acha que a dificuldade de voltar se mede em quilômetros?
– E você não acha que entrar numa caverna é também um retorno?
– É, talvez."
Dênisson Padilha Filho no conto Continue na linha, p. 92.
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"(...) Sinto que embruteço e essa é a forma de lidar com o mundo. Tenho que ser aquela que resolve tudo, que faz e conversa, negocia, escolhe e decide. Aquela que atravessa a cidade e se multiplica para resolver todos os problemas da ida e da permanência. Que entra em cada vagão dessa vida, buscando um espaço, um refúgio e saídas. Estou virando uma mulher de pedra, rígida, um homem. E hoje sei um pouco o peso que sobrecarrega os ombros de um homem, entendo melhor a sina (...)"
Rita Santana no conto Ondas, trânsitos e trilhos, p. 104.
Trechos retirados da coletânea de contos "Outro livro na estante" (Mondrongo, 2015), com vários autores, organizada por Herculano Neto e Gustavo Felicíssimo, livremente inspirada em canções de Raul Seixas.
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