Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo)
"Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória."
"Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão avassaladora pelo velho, pelas rugas que ele trazia na pele, pelo cansaço dele, pela cópula que ela esperava e espreitava durante dias e dias. Era tão bom contemplar aquele falo adormecido, preguiçoso, sapiente de tanto corpos-histórias do passado. Era como vivenciar uma duvidosa e infiel fé, sustentada por uma temerosa esperança de que o milagre não acontecesse. E foi no corpo do velho que ela melhor executou o ritual do amor. Pacientemente penteava ou ouriçava, com os dentes, os embranquecidos pentelhos do corpo dele. E de noite, depois de muitas noites, quando a pedra envergonhada e soturna se desabrochava em flor, ambos cavavam o abismo do abismo encontrando o nada como realidade única e, então, é que aconteciam as juras de amor. E o velho vinha lento, calmo, cuidadoso, cioso do fundo caminho que ele teria de adentrar. Ela também calma, apenas retesando suavemente os finos véus sanguíneos, bordados nas paredes vaginais. Ele chegava e ela silenciando os gritos se quedava embevecida diante do quase nada de um átimo de prazer. O amor é um tempo de paciência?"
"(...) Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?"
"(...) Era tentador. Deixar a favela. Deixar a miséria. Deixar a família. As rezas de Vó Lidumira lhe irritavam profundamente. A velha rezava por tudo e por nada. E ele não via milagre algum. Não via nada de bom acontecer com ela ou com a família. A avó nascera de mãe e de pai que foram escravizados. Ela já era filha do 'Ventre Livre', entretanto vivera a maior parte de sua vida entregue aos trabalhos em uma fazenda. A mãe e as tias passaram a vida se gastando nos tanques e nas cozinhas das madames. As irmãs iam por esses mesmos caminhos. E ele, ele mesmo, estava ali, naquele esfrega-esfrega de chão de supermercado."
"Um dia quem abriu a porta de supetão foi D. Esmeraldina. Estava brava. Se a menina quisesse deitar com homem podia. Só uma coisa ela não ia permitir: mulher deitando com homem, debaixo do teto dela, usando quarto e cama, e ganhando o dinheiro sozinha! Se a menina era esperta, ela era mais ainda. Queria todo o dinheiro e já! Duzu naquele momento entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro. Entendeu o porquê de tantas mulheres e de tantos quartos ali. Entendeu o porquê de nunca mais ter conseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca D. Esmeraldina ter cumprido a promessa de deixá-la estudar. E entendeu também qual seria a sua vida. É, ia ficar. Ia entrar-entrando sem saber quando e porque parar. (...) Dona Esmeraldina arrumou um quarto para Duzu, que passou a receber homens também. Criou fregueses e fama. (...) Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas. Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida."
"(...) o rapaz perguntou docemente sobre aquela barriguinha que estava crescendo. Ela, envergonhada, contou-lhe que estava esperando um filho. Que ele a perdoasse. Que ela havia tomado uns chás. Que ela conhecia uma tal de Sá Praxedes... Quando acabou a falação e olhou para Tonho, o moço chorava e ria. Abraçou Natalina e repetia feliz que ia ter um filho. Que formariam uma família. Natalina ganhou preocupação nova. Ela não queria ficar com ninguém. Não queria família alguma. Não queria filho. Quando Toinzinho nasceu, ela e Tonho já haviam acertado tudo. Ela gostava dele, mas não queria ficar morando com ele. Tonho chorou muito e voltou para a terra dele, sem nunca entender a recusa de Natalina diante do que ele julgava ser o modo de uma mulher ser feliz. Uma casa, um homem, um filho... Voltou levando consigo o filho que Natalina não quis."
"(...) O homem sentou-se a seu lado. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. (...) Maria viu, sem olhar, que era o pai de seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de uma outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? (...) Não arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também. Ficava, apenas de vez em quando, com um ou outro homem. Era tão difícil ficar sozinha!"
"Ana estava feliz. Só Davenga mesmo para fazer aquilo. E ela, tão viciada na dor, fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sofrimento. Davenga ali na cama vestido com aquela pele negra, brilhante, lisa que Deus lhe dera. Ela também, nua. Era tão bom ficar se tocando primeiro. Depois haveria o choro de Davenga, tão doloroso, tão profundo, que ela ficava adiando o gozo-pranto. Já estavam para explodir um no outro, quando a porta abriu violentamente e dois policiais entraram de armas em punho. Mandaram que Davenga se vestisse rápido e não bancasse o engraçadinho, porque o barraco estava cercado. Outro policial do lado de fora empurrou a janela de madeira. Uma metralhadora apontou para dentro de casa, bem na direção da cama, na mira de Ana Davenga. Ela se encolheu levando a mão na barriga, protegendo o filho, pequena semente, quase sonho ainda."
Presentes no livro de contos "Olhos d'água" (Pallas, 2015), de Conceição Evaristo, páginas 57, 62, 16-17, 92, 34, 46, 40 e 29-30, respectivamente.
Seleta dos contos
01) Luamanda
02) Olhos d’água
03) Quantos filhos Natalina teve?
04) Maria
05) Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos
06) Duzu-Querença
07) O cooper de Cida
08) Ana Davenga
09) Di lixão
10) Os amores de Kimbá
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