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Seis passagens de João Ubaldo Ribeiro no romance O albatroz azul

João Ubaldo Ribeiro - foto daqui


“Sentado na quina da rampa do Largo da Quitanda, as mãos espalmadas nos joelhos, as abas do chapéu lhe rebuçando o rosto pregueado, Tertuliano Jaburu ouviu o primeiro canto de galo e mirou o céu sem alterar a expressão. Ignora-se o que, nessa calmaria antes do nascer do sol, pensam os grandes velhos como ele e ninguém lhe perguntaria nada, porque, mesmo que ele se dispusesse a responder, não entenderiam plenamente as respostas e dúvidas mais fundas sobreviriam de imediato, pois é sempre assim, quando se tenta conhecer o que o tempo ainda não autoriza. Ao olhar para o alto, talvez esteja confirmando artigos da sabedoria que seus longos anos lhe ministraram, da qual fazem parte segredos impossíveis de serem contados, porquanto não se prestam a isso, mas devem entrar sem palavras na mente e no corpo e apenas o viver lhes dá acesso. Os que têm estudo explicam a claridade e a treva, dão aulas sobre os astros e o firmamento, mas nada compreendem do Universo e da existência, pois bem distinto do explicar é o compreender e quase sempre os dois caminham separados. Que Tertuliano goza de familiaridade com os seres, visíveis e invisíveis, que povoam cada estação do dia e da noite, não sente mais medo do tempo e seu único real desejo é desejar sempre o que Deus deseja para ele, isso se sabe e se respeita, pois é da lei. E seu pensamento é percebido firme como os rochedos e corrediço como as águas.”


“Velho como está, então lhe é possível lembrar tudo do instantinho em que nasceu. Foi menos que um relâmpago, foi uma faísca voadora que sumiu sem chegar a cintilar, uma fresta entreaberta e fechada simultaneamente, com nenhuma duração. Mas ele já viveu o bastante para estar seguro de que, naquela passagem, soube tudo – passado, presente e futuro, os três embolados, sem antes nem depois. Todavia, esse conhecimento se esfumaça e se extravia no infinito, as vistas do nascido se desregulam e só o que ele sente é a primeira dor das muitas que virão, a dor fria do primeiro ingresso de ar no peito. Levantando-se para passar na Fonte da Bica, como todos os dias, Tertuliano imaginou que tudo o que iria ocorrer naquele começo de dia já era sabido e ressabido em algum lugar, de alguma forma. Até mesmo que naquele dia ia lhe nascer um neto homem devia estar assentado e não por qualquer adivinhação, das mais comuns às mais abalizadas.”


“(...) pois tudo nesse mundo é possível e o que hoje é mentira amanhã pode ser verdade ou o contrário.”


“O sol amanhece sobre as águas silenciosas da baía e todos os matizes faíscam por cima das ondas, dos topos das árvores, do casario suspenso entre as brumas da aurora, dos campanários, das velas de um saveirinho aqui e acolá. Os cheiros são uma mistura almiscarada de maresia, peixe fresco, comida de tabuleiro e mingau, café torrado, bosta de vaca, lama do mangue, melaço de cana, aromas de flores. O que se ouve são barulhos enganosamente próximos, trazidos pelos ecos sobre as colinas, descampados e coroas, gritos dos pescadores que, depois de passarem a noite nus, trabalhando no meio do mar, agora celebram ter peixe para vender e embicam ruidosamente as canoas para a rampa do Mercado, atitos de bem-te-vis e sanhaços, zumbidos de moscas, a lambida sonolenta da água nos costados dos barcos apoitados, o zizio de uma faca sendo amolada na pedra.”


“(...) Geralmente é melhor ser herói, apagando o incêndio e salvando gente do fogo, do que ser somente cuidadoso e nunca deixar que venha o incêndio. Todo mundo se lembra do herói, ninguém se lembra do cuidadoso; o herói abiscoita todas as recompensas e o cuidadoso tem sorte se receber um abraço, porque só se conhece o fogo depois do incêndio.”


“E ele seria mesmo tão sábio quanto estimava? Talvez sim, talvez não. Talvez sim, por conseguir tudo o que quer. Talvez não, por pagar por isso o preço da esperteza, qual seja o de desconfiar do próximo e buscar em tudo o proveito que pode tirar, assim permanecendo sempre sozinho e até mesmo sem consorte verdadeiro e sem nada verdadeiramente repartir, sem aquilo que só tem graça repartido. Podiam muitos, ou quase todos, ter isso na conta da sabedoria, mas não, o esperto não é sábio, antes sabido. O sabido sempre está sujeito a encontrar um mais sabido e por isso vive sempre em guarda e nunca tem paz. E, como a sabedoria dele não traz paz, mas inquietação e um excesso de dúvidas, não é sabedoria, é esperteza mesmo.”




Presentes no romance O albatroz azul (Nova Fronteira, 2009), páginas 09-10, 10-11, 175, 236, 192 e 221, respectivamente.

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